sexta-feira, 5 de maio de 2023

Dvar Torá: O que desqualifica para a liderança hoje em dia? (CIP)


Minha prédica de hoje está em diálogo com os temas que a rabina Tati desenvolveu no comentário dela [1], por isso eu recomendo fortemente que as pessoas leiam-no quando puderem para enriquecer a conversa que estamos estabelecendo.

No seu comentário, a rabina Tati trata de uma passagem particularmente problemática da parashá desta semana:

ה׳ falou a Moshé: Fale com Aharón e lhe diga: Nenhum homem da tua descendência em todos os tempos que tiver um defeito será qualificado para oferecer a comida de seu Deus. Ninguém que tenha um defeito será qualificado: nenhum homem que seja cego, ou coxo, ou tenha um membro muito curto ou muito longo; nenhum homem que tenha uma perna quebrada ou um braço quebrado; ou que seja corcunda, ou anão, ou que tenha uma protuberância no olho, ou que tenha cicatriz de furúnculo, ou inflamação das gengivas ou testículos esmagados. Nenhum homem entre os descendentes de Aharón, o sacerdote, que tiver um defeito será qualificado para oferecer a oferta queimada de ה׳; tendo defeito, não poderá oferecer o alimento de seu Deus. Ele pode comer do alimento de seu Deus, tanto do santíssimo quanto do santo; mas não entrará atrás da cortina nem se aproximará do altar, porque tem defeito. Ele não profanará estes lugares sagrados para mim, pois eu ה׳ os santifiquei. [2]

A rabina Tati, incomodada com o teor do texto, um incômodo do qual eu compartilho, pergunta: “Assim fala Deus dos Seus filhos? Pode Deus ser preconceituoso? Não somos todos criados à Sua imagem e semelhança? O amor divino não é incondicional? Somos só aquilo o que se vê? Moshé tinha dificuldade na fala e ninguém esteve mais perto da presença divina do que ele.” 

O incômodo não é apenas dos rabinos desta geração. Ainda que o tom da crítica seja mais ameno e que tenhamos que ler nas entrelinhas, percebam como a seguinte história talmúdica oferece uma critica incisiva das regras estabelecidas na nossa parashá: 

Rabi Elazar, filho de Rabi Shimon, veio de Migdal Gedor, da casa de seu rabino, e ele estava montado em um burro e passeando na margem do rio. E ele estava muito feliz, e sua cabeça estava inchada de orgulho porque ele havia estudado muito a Torá. Ele se deparou com uma pessoa extremamente feia, que lhe disse: ‘Saudações a você, meu rabino’, mas o rabino Elazar não retornou sua saudação. Em vez disso, Rabi Elazar disse a ele: ‘Pessoa sem valor, quão feio é aquele homem. Todas as pessoas da sua cidade são tão feias quanto você?’ O homem disse a ele: ‘Eu não sei, mas você deveria ir e dizer ao Artesão que me fez: Quão feio é o vaso que você fez’. Quando Rabi Elazar percebeu que havia pecado, desceu de seu burro e prostrou-se diante dele, e disse ao homem: ‘Pequei contra você; me perdoe.’ O homem lhe disse: ‘Não te perdoarei até que você vá ao Artesão que me fez e diga: Que feio é o vaso que Você fez.’ Ele caminhou atrás do homem, tentando apaziguá-lo, até chegarem à cidade. O povo de sua cidade saiu para cumprimentá-lo, dizendo-lhe: ‘Saudações a você, meu rabino, meu rabino, meu mestre, meu mestre.’ O homem disse a eles: ‘Quem vocês estão chamando de meu rabino, meu rabino?’ Disseram-lhe: ‘A este homem, que caminha atrás de você.’ Ele lhes disse: ‘Se este homem é um rabino, que não haja muitos como ele entre o povo judeu.’ Eles lhe perguntaram: ‘Por que você diz isso?’ Ele disse a eles: Ele fez isso e aquilo comigo. Eles disseram a ele: ‘Mesmo assim, perdoe-o, pois ele é um grande estudioso da Torá.’ Ele lhes disse: ‘Por causa de vocês eu o perdôo, contanto que ele não se acostume a se comportar assim.’ [3]

Está estabelecido, então, que tanto para os rabinos de hoje como para os rabinos do Talmud, uma pessoa não deve ser julgada pela sua aparência física. A rabina Julia Watts Belser, no entanto, destaca que os rabinos do Talmud mudaram o foco das exclusões mas não acabaram com elas: daqueles que tinham alguma deficiência física para aqueles que tinham dificuldade de compreensão ou discernimento. Ela escreve: “Os sábios temiam e estigmatizavam a surdez, deficiências da fala, deficiências intelectuais e cognitivas, que eles percebiam como algo que tornava uma pessoa incapaz de participar do sistema de santidade que eles criaram.” [4] Seu ponto é que cada geração estabelece um padrão de acordo com o qual suas lideranças são validadas — na época bíblica, era a capacidade e perfeição físicas, na época do Talmud, a capacidade intelectual e de articulação oral.

Em nossos dias, aprendemos que esses atributos não são nem necessários, nem suficientes. Conhecemos líderes com atributos físicos impecáveis ou com dons de oratória invejáveis cuja capacidade de liderança ou cujo comportamento ético nos desapontaram de forma profunda. Ao mesmo tempo, passamos a reconhecer a capacidade de liderança de pessoas que, de acordo com estes parâmetros adotados no passado, teriam sido desconsideradas, pessoas cujas imperfeições são óbvias e salientes — e cujas qualidades são igualmente óbvias e salientes.

No seu comentário, a rabina Tati menciona Moshé, cuja dificuldade na fala não o impediu de se tornar um dos maiores líderes do povo judeu. Em nossos tempos, penso em Stephen Hawking, cuja fragilidade física não preveniu que ele fosse reconhecido como uma referência fundamental na física teórica, e em Greta Thunberg, um exemplo de jovem ativista, que se descreve tanto como como uma ativista ambiental quanto como uma ativista pelos direitos dos autistas. Ela disse: “Fui diagnosticada com síndrome de Asperger, TOC e mutismo seletivo. Isso basicamente significa que só falo quando acho necessário. Agora é um desses momentos.” [5]

Estes são apenas dois exemplos. Pelos parâmetros antigos, teríamos perdido suas imensas contribuições — será que hoje temos novos parâmetros pelos quais julgamos e validamos as contribuições de nossas lideranças?

Não é uma discussão nova: será que líderes — em qualquer ramo de atividade — devem ser julgados apenas pela qualidade do seu trabalho ou há parâmetros mais amplos que devem ser considerados?

Recentemente, um movimento de protesto de torcedores e, especialmente de torcedoras, do Corinthians levou Cuca, o técnico que tinha sido recém contratado, a pedir demissão menos de uma semana depois de aceitar o cargo. O protesto das torcedoras vinha do fato de que ele foi condenado pela Justiça suíça na década de 1980 pelo estupro de uma menina de 13 anos e nunca chegou a cumprir sua pena. [6] Uma falha técnica ética desta proporção justifica o “cancelamento” (para usar um termo da moda) de um técnico premiado, cujo talento não é questionado por quase ninguém?

No mundo rabínico, temos exemplos similares, mas cujas consequências foram muito distintas. Shlomo Carlebach era um rabino que navegava entre a ortodoxia Chabad e o mundo Renewal. Autor de algumas melodias mais cativantes da liturgia judaica, inclusive de músicas que cantamos aqui no Cabalat Shabat da CIP. Quando eu cheguei aos Estados Unidos para estudar, em 2005, já escutávamos acusações de assédio sexual contra ele. Após o início do movimento #metoo, ganhou força o fluxo de mulheres que o acusavam. Uma pessoa pesquisando o assunto contou mais de 15 mulheres que diziam ter sido vítimas de abuso sexual por parte do Carlebach. [7] Ao mesmo tempo, enquanto boa parte da Ortodoxia rejeita o canto de mulheres, especialmente na sinagoga, Shlomo Carlebach encorajou muitas mulheres a cantarem na bimá e ordenou mulheres rabinas muito antes de outros setores da Ortodoxia. Sua filha, Neshama Carlebach, uma renomada cantora e compositora, em resposta às acusações, escreveu um artigo que ela começa da seguinte forma: 

Minhas amigas, venho humildemente perante vocês. Sou grata por ter o privilégio de compartilhar o que espero que seja uma contribuição para a conversa que estamos travando neste momento de transformação. Reconheço que quem eu sou - meu próprio nome - pode dificultar o recebimento de qualquer coisa que eu queira oferecer. Ainda assim, nossa tradição nos ensina que silêncio é consentimento, e não posso ficar calado diante de tanta dor. Minhas irmãs, eu ouço vocês. Eu choro com vocês. Eu ando com vocês. Estarei com vocês até o dia em que o mundo se comprometer com a cura e a integridade para todas, para as inúmeras mulheres que sofreram os males do assédio e da agressão sexual. [8]

Em outros trechos do artigo, ela escreveu: “Eu vi a música do meu pai curar a vida de alguém diante dos meus olhos e li sobre como essa mesma música desencadeou uma dor profunda em outras pessoas. (…) Aceito a plenitude de quem meu pai era, com falhas e tudo. Estou com raiva dele. E me recuso a ver seus defeitos como a totalidade de quem ele era.” Há sinagogas que se recusam a cantar melodias escritas por Carlebach; há outras que as usam sem atribuir autoria e há também que prefira não misturar a qualidade da obra com as imperfeições do seu criador. A Central Synagogue de Nova York estabeleceu uma moratória de um ano no qual não tocaram qualquer melodia composta por Shlomo Carlebach; ao final deste período, convidaram Neshama Carlebach, que passou a ser o destino de críticas e de boicotes pelas ações de seu pai, para cantar, junto com o chazán da sinagoga, uma melodia escrita pelo pai.

Quais são nossos parâmetros para validar nossos líderes? Em algum momento, aqui em São Paulo “rouba mas faz” era o epíteto pelo qual conhecíamos um político no qual muitos nos recusávamos a votar. Hoje, a mesma frase é usada sem qualquer pudor para classificar em quem votamos. No mundo corporativo e nas nossas referências culturais, a genialidade é frequentemente acompanhada de características indesejadas, de um ego hipertrofiado, de arrogância e de agressividade no trato inter-pessoal, atributos que são “aceitos” como o preço a ser pago pela genialidade. Há parâmetros capazes de desqualificar uma conduta mesmo que o executivo traga grande lucro para sua companhia, que o artista seja brilhante ou que o médico consiga tratar situações clínicas em que outros teriam falhado? 

Somos todos pessoas imperfeitas, cheias de defeitos, alguns que apenas nós mesmos conhecemos. Algumas das nossas falhas atrapalham a nós mesmos, podem até incomodar a outras pessoas, mas não as degradam, não as desumanizam, não lhes causam traumas profundos. E há falhas éticas e morais cujas enormes consequências recaem sobre os outros e têm impactos que, muitas vezes, nem conseguimos estimar.

Em tempos bíblicos, a falta de perfeição física desqualificava para o exercício de liderança. Na época do Talmud, era a falta de perfeição intelectual e cognitiva que fazia este papel. Hoje, rejeitamos estes parâmetros como flagrantes violações da ideia central do judaísmo de que somos todos criados à imagem Divina, dotados de uma dignidade inalienável. Precisamos, no entanto, de novos parâmetros para que alguém possa acessar posições de liderança. 

Chegamos à época em que profundas falhas de caráter e violações éticas não devem mais ser toleradas como justificáveis, nem mesmo para pessoas cujas contribuições em seus campos de atuação sejam imensas. É hora de dizer “דַּי”, "dai", “basta”, e começarmos a verdadeiramente valorizar o comportamento decente, respeitoso, humano e construtivo.

Shabat Shalom 

 

[1] https://cip.org.br/abracar-as-diferencas-e-se-comprometer-com-a-inclusao-parashat-emor/

[2] Lev. 21:16-23.

[3] Talmud Bavli Taanit 20

[4] Julia Watts Belser, “Reading Talmudic Bodies: Disability, Narrative, and the Gaze in Rabbinic Judaism”, p. 9-10

[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Greta_Thunberg

[6] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/04/28/sentenca-que-condenou-cuca-por-ato-sexual-com-menor-ha-34-anos-e-confirmada.ghtml

[7] https://www.timesofisrael.com/after-metoo-some-congregations-weigh-changing-their-tune-on-shlomo-carlebach/

[8] https://blogs.timesofisrael.com/my-sisters-i-hear-you/






quinta-feira, 20 de abril de 2023

Porque gravidez não é doença, nem fonte de impurezas


Não foram raras as vezes em que ouvi pessoas estabelecendo uma relação entre a palavra hebraica para “compaixão”, rachamim, e a palavra para “útero”, réchem, e, a partir daí, comentarem que o Divino não tem gênero, incorporando aspectos masculinos (como o poder, guevurá, e o julgamento, din) e femininos (como a compaixão, rachamim). Deixando de lado o essencialismo que considera o poder e a justiça atributos inerentemente masculinos, enquanto a compaixão seria uma qualidade inerentemente feminina, poderíamos considerar que a tradição judaica teria uma visão positiva da maternidade e da capacidade de gerir outra vida dentro de seu próprio corpo.


Em algumas passagens bíblicas, claramente, esta expectativa é confirmada. Em Isaías 66:13, por exemplo, Deus se apresenta como uma mãe para o povo judeu, afirmando “Como uma mãe consola seu filho, assim eu os consolarei; Você encontrará conforto em Jerusalém”. 


Em outras passagens da Torá, no entanto, a maternidade é vista de forma crítica. Quando o fruto proibido é comido, o castigo da mulher é expresso desta forma: “Duplicarei e reduplicarei as dores da sua gestação; você dará a luz com dor, contudo seu desejo será para o seu homem e ele governará sobre você.” [1] Ao invés de ser vista como um momento maravilhoso no qual nova vida está sendo criada, a gestação é apresentada neste texto como um evento doloroso, em particular o culminar deste processo, o parto.


Na parashá-dupla desta semana, Tazría-Metsorá, a questão da maternidade volta a ser endereçada sem que a maravilha da gestação da vida seja reconhecida. Pelo contrário: o tom das instruções relaciona a participação feminina no processo reprodutivo como uma fonte de impurezas e culpa. De um lado, temos questões relativas ao estado de impureza ritual de mulheres durante o seu fluxo menstrual (e nos dias subsequentes) [2], parte indissociável do processo reprodutivo. De outro lado, o tratamento dado a parturientes, novamente as relaciona à impureza ritual, indicando o número de dias que elas devem permanecer isoladas de objetos rituais, a depender de se o bebê tiver sido um menino ou uma menina. Além disso, ao final do período elas deviam oferecer um sacrifício de chatáat, uma oferta pela purificação de uma transgressão. [3] Com a destruição do Templo no ano 70 EC e o decorrente abandono dos sacrifícios animais pelo judaísmo rabínico, estas práticas perderam a relevância mas a visão que enxerga na gravidez e no parto obstáculos que representam perigos e desafios ainda se mantém em práticas judaicas contemporâneas. Ainda hoje, muitos sidurim e rabinos indicam que uma mulher que acabou de dar à luz deve dizer bircat hagomêl, a benção que alguém diz depois de ter passado por uma doença séria ou por uma cirurgia. 


É necessário e urgente que tenhamos a coragem de olhar criticamente para estes textos e para estas práticas. A rabina e teóloga Rachel Adler, a respeito das passagens nesta parashá-dupla escreveu “Sagrado não precisa significar inerrante; basta que o sagrado seja inesgotável. Nas profundezas da Tua Torá, eu procuro Você, Eheyeh, criador de um mundo de sangue. Rasgo a Tua Torá verso a verso, até que esteja quebrada e sangrando assim como eu." [4]


Gravidez não é doença. O ciclo reprodutivo feminino não é fonte de impurezas. Ainda que hajam riscos envolvidos na gravidez e no parto, estes são momentos a serem desfrutados e celebrados, situações em que a parceria entre Deus e humanos se torna clara e visível [5] e nossas práticas rituais devem refletir esta postura de estarmos maravilhados e incrivelmente felizes quando uma criança nasce. 


Que neste shabat possamos nos alegrar e maravilhar com a vida e com uma tradição religiosa que nos surpreende e nos provoca e na qual o questionamento e inovação não são apenas aceitos, são também valorizados.  




[1] Gen. 3:16

[2] Lev. 16:19-26

[3] Lev. 12:1-8

[4] Lifecycles 2: Jewish Women on Biblical Themes in Contemporary Life, , p. 206

[5] Veja, por exemplo, BT Nidá 31a



sexta-feira, 14 de abril de 2023

Dvar Torá: Silêncios que enaltecem e silêncios que destroem (CIP)


Faz uns anos, eu fui convidado a participar da cerimônia de 70 anos da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Em meio a várias outras autoridades religiosas citando passagens de suas escrituras sagradas, eu me aproximei do púlpito com minha cópia do Pequeno Príncipe para ler a passagem em que a raposa ensina ao príncipe que “o essencial é invisível para os olhos.” [1]

Eu conto essa história porque hoje eu vou citar nossa grande filósofa Rita Lee, que em “Jardins da Babilônia” cantou: “Pra pedir silêncio eu berro, pra fazer barulho, eu mesma faço.” [2] No tema do oxímoro, hoje eu vou gastar os próximos 15 minutos sem parar de falar sobre o silêncio.

Não sei se vocês já se deram conta, mas há vários tipos de silêncio — ou pelo menos há várias formas de interpretar o silêncio. Se durante a prédica, a comunidade inteira está em silêncio pode ser um sinal de atenção e engajamento ou o oposto deles, e a única forma de descobrir qual tipo de silêncio é, é olhando nos olhinhos de vocês e tentando “ler” as mensagens não verbais que vocês emitem. Há o silêncio que indica aceitação e o que expressa a mais profunda oposição. Quando as pessoas ficam profundamente magoadas, muitas vezes é através do silêncio que elas respondem, mas o silêncio também pode indicar parceria e cumplicidade, como eu testemunhei recentemente em um casamento, no qual os olhares que os noivos trocavam em silêncio sob a chupá falavam muito mais do que um milhão de palavras poderiam.

Na tradição judaica fala-se muito em defesa do silêncio — o que, pelo menos,  cria precedente histórico para a minha prática de falar sem parar sobre o silêncio. No livro de Provérbios, tradicionalmente atribuído ao rei Shlomô, diz-se em uma passagem que “mesmo uma pessoa tola será considerada sábia se se mantiver calada” [3]; em outra passagem do mesmo livro, é dito que “a pessoa tola não almeja a compreensão, apenas revelar seus pensamentos.” [4] Em Pirkei Avot, Rabi Akiva diz que “uma cerca protetora ao redor da sabedoria é o silêncio” e vários comentaristas explicam que a construção estranha da frase é para deixar claro que o silêncio é a única proteção possível para a sabedoria. [5] Outros comentaristas indicam que, além de proteger a sabedoria, o silêncio também permite que escutemos uns aos outros com maior atenção. No Talmud, os Rabinos afirmam que “o silêncio é apropriado para uma pessoa sábia, ainda mais para um tolo.” [6] Para quem já viu uma coleção do Talmud e seus 63 tratados, que nas minhas estantes equivalem a uma enciclopédia com 44 volumes, é no mínimo curioso que o silêncio fosse tão valorizado.

Na parashá desta semana, há uma situação de silêncio que vem sendo debatida pelos nossos sábios sem que seja estabelecido um consenso sobre  de qual tipo de silêncio se tratava. De forma pouco explicada e muito debatida, Nadav e Avihu, dois cohanim filhos de Aharón são tragados pelo fogo Divino em resposta a um “fogo estranho” que eles tinham ofertado [7]. Na sequência, o texto afirma apenas que “וַיִּדֹּם אַהֲרֹן”, “Aharón silenciou”. [8]

A reação de Aharón, o pai que perdeu seus filhos, choca pela passividade. Quando Sará soube da quase morte de seu filho Itschak, diz o midrash que sua alma fugiu do seu corpo. Quando Iaacóv ouviu que seu filho Iossêf tinha sido devorado por um animal selvagem, rasgou suas roupas, pôs pano de saco nas suas costas e guardou luto por seu filho por muitos dias. Mas Aharón ficou em silêncio.

Os comentaristas procuraram compreender o silêncio de Aharón. Há quem diga que seu coração se tornou pedra e que ele não tinha mais a capacidade de dizer nada, sua alma havia partido. [9] Por outro lado. há outros comentaristas que dizem que sua espiritualidade elevada permitiu que ele estivesse na mais completa calma, justificando a decisão Divina de levar seus filhos. [10]

E o nosso silêncio hoje, também pode ser interpretado de múltiplas formas? Dentro do mundo judaico, Ellie Wiesel foi um dos intelectuais que se dedicou a estudar o silêncio. De um lado, ele não permitiu que Orson Welles, o celebrado diretor de “Cidadão Kane” transformasse seu livro “A Noite” em um filme, argumentando que ele tinha escrito silêncios entre suas palavras e o cinema não deixava espaço para esses silêncios.” [11] O livro é um relato autobiográfico da experiência de Wiesel nos campos de extermínio nazistas, no qual ele afirma: 

“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que converteu minha vida numa noite longa e trancada a sete chaves. Nunca esquecerei aquela fumaça. Nunca esquecerei os rostinhos das crianças cujos corpos vi se transformarem em espirais sob um firmamento calado. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha fé para todo o sempre. Nunca esquecerei o silêncio noturno que me tirou por toda a eternidade o desejo de viver. Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram meu Deus e minha alma, em que meus sonhos assumiram a face do deserto. Nunca esquecerei, ainda que fosse condenado a viver por tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.” [12]

O mesmo homem que impediu que seu livro virasse filme para proteger o silêncio que o texto continha dedicou sua vida à militância contra o silêncio que permitiu aquela atrocidade, mesmo na presença de pessoas poderosas. Em uma cerimônia na Casa Branca na época em que Ronald Reagan era presidente, ele protestou contra sua intenção de visitar um cemitério na Alemanha onde vários soldados SS estavam enterrados. “Seu lugar é com as vítimas dos SS”, ele disse ao presidente. Quando Clinton era presidente, ele o alertou que, como judeu, não podia aceitar o genocídio acontecendo na Iugoslávia naquela época. 

Wiesel jurou “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação” e talvez essa seja a linha que diferencia o silêncio produtivo, que favorece a escuta, daquele que permite que atrocidades sejam cometidas com o consentimento tácito implícito na nossa inação. 

“Devemos tomar partido”, ele disse. "Neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, não o atormentado. Às vezes devemos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está em risco, as fronteiras nacionais e as sensibilidades tornam-se irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres sejam perseguidos por causa de sua raça, religião ou opiniões políticas, esse lugar deve – naquele momento – tornar-se o centro do universo”. [13]

Na segunda-feira à noite, marcaremos o início de Iom haShoá, a data no calendário judaico em memória às vítimas da atrocidade nazista. A data escolhida no calendário faz referência ao Levante do Gueto de Varsóvia que, em 1943, desafiou os nazistas que esvaziavam o gueto de seus moradores e os enviavam para os campos de extermínio, um ato de coragem que neste ano comemora 80 anos e que homenagearemos na CIP no Cabalat Shabat do dia 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.

Vivemos tempos difíceis. Uma matéria no Estadão de hoje fala que, de acordo com um levantamento da Universidade de Tel Aviv, houve em 2021 um aumento dramático de ataques antissemitas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, onde há estatísticas disponíveis também para 2022, o aumento foi de 36% com relação a 2021, que já tinha sido o ano do tal “aumento dramático”. [14] O mundo, em grande parte, tem se calado frente a este aumento de crimes de ódio contra judeus.

Aqui no Brasil, os ianomamis foram as vítimas de um projeto premeditado de eliminação aos qual assistimos ao vivo e a cores pela TV, na grande maioria, em silêncio.

Todos os dias, nas ruas das nossas grandes cidades, pessoas pretas são mortas em números assustadores. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas pretas mortas por policiais aumentou 5,8% de 2020 para a 2021, enquanto para pessoas brancas o número caiu 30,9%. Dessa forma, 84,1% das vítimas fatais de intervenções policiais eram pretos ou pardos, porcentagem significativamente superior ao seu número na população. [15] Nossa reação, de forma geral, foi o silêncio.

Como disse Elie Wiesel, “o silêncio encoraja o torturador, não o atormentado”. Mesmo que nossos corações, assim como o de Aharón, tenham se tornado pedras calejadas com tanta violência, é hora de sairmos de nossa dormência. Falecido em 2016, Wiesel precisa da nossa ajuda para continuar cumprindo sua promessa: “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação.”

Shabat Shalom!



 

[1] https://www.sesirs.org.br/sites/default/files/paragraph--files/o_pequeno_principe_-_antoine_de_saint-exupery.pdf, p. 56

[2] https://www.letras.mus.br/rita-lee/48512/

[3] Prov. 17:28

[4] Prov. 18:2

[5] Pirkei Avot 3:13. Para os comentários, vejam Bartenura e Ikar Tossafot Iom Tov.

[6] Talmud Bavli Pessachim 99a

[7] Lev. 10:1-2

[8] Lev. 10: 3

[9] Abarbanel comentando sobre Lev. 10:1

[10] R. Eliezer Lipman Lichtenstein - Shem Olam (1848-1896, Polônia), conforme citado por Nechama Leibowitz, http://www.jewishagency.org/he/leviticus/content/22409

[11] https://slate.com/human-interest/2016/07/elie-wiesel-s-profound-and-paradoxical-language-of-silence.html

[12] Elie Wiesel, “A noite: Um dos mais importantes testemunhos sobre a vida nos campos de concentração.”. Pag. 70/182 (ebook)

[13] https://www.thejc.com/lets-talk/all/elie-wiesel-understood-the-power-of-silence-6MIYglTlvuDwVhFe6pDINW

[14] https://www.estadao.com.br/alias/entenda-como-o-antissemitismo-em-alta-reune-radicais-de-todas-as-direcoes-politicas/

[15]  https://pt.org.br/negros-sao-84-das-pessoas-mortas-em-acoes-policiais-no-brasil/


quinta-feira, 30 de março de 2023

Da palavras, símbolos e resistência


Vários anos atrás, fui visitar um templo religioso na região de Chicago, onde me assustei ao encontrar um desenho muito parecido com uma suástica encravado em suas paredes. Ao questionar a pessoa que guiava nossa visita pelo espaço, fui informado de que aquele desenho já era um símbolo religioso muito antes de ser apropriado pelos nazistas como a marca de seu partido. Ainda que eu compreendesse a lógica explicada pelo guia, era difícil entender como naquele edifício, cuja construção tinha sido completada em 1953, o significado mais difundido que aquele símbolo tinha ganhado no século XX, ofensivo como era a milhões de pessoas, não tivesse sido levado em conta para que ele não fosse adotado na decoração das paredes.


Assim como os símbolos gráficos, as palavras também podem ganhar vida própria, como bem atestam os poetas. Palavras são muitas vezes escolhidas em alguns contextos pelos duplos significados que possuem, levando a situações cômicas, ou são evitadas exatamente porque podem ter seu significado mal interpretado.


A parashá desta semana, Tsáv, retorna ao tema dos sacrifícios animais, seus contextos e regras. Um dos tipos de sacrifícios oferecidos a Deus era a “olá”, na qual um animal era inteiramente queimado no altar. A tradução adotada para este termo para o grego foi “holokauston”, um conceito que já era conhecido de religiões helenísticas e que significava queima (kaustos) completa (holos) e que foi traduzido para o português como “holocausto”. 


No final do século XIX, a palavra “holocausto” passou a ser usada pela imprensa norte-americana para designar massacres de imensas proporções, como o genocídio armênio de 1915-1917. Ao final da Segunda Guerra, quando a dimensão total das atrocidades nazistas começou a ser revelada, “Holocausto” (agora escrita com inicial maiúscula e muitas vezes precedida pelo artigo definido “O”) passou muitas vezes a designar o quase-extermínio da população judaica da Europa, com o assassinato brutal e sistemático de 6 milhões de pessoas.


Assim como eu me assustei ao encontrar uma suástica em um templo religioso, muitas pessoas se assustam ao encontrar o termo “holocausto” em uma tradução da Torá, em particular em referência a uma prática religiosa. O assassinato sistemático de seres humanos e o descarte de seus corpos em fornos crematórios é a antítese da busca de relacionamento com o Divino – de tal forma, que muitos são os que rejeitam o termo “holocausto” para tratar deste trágico evento da história mundial e judaica. Entre os termos sugeridos como alternativa, “Shoá”, um termo bíblico que significa “catástrofe” acabou se transformando no termo adotado preferencialmente no mundo judaico para tratar destes eventos.


Enquanto a Shoá ainda estava em curso, um grupo de jovens militantes dos movimentos juvenis judaico-sionistas lideraram um levante contra as forças nazistas que esvaziavam o Gueto de Varsóvia e enviavam seus residentes para Campos de Extermínio. Na véspera de Pessach de 1943, que neste ano cairá na próxima quarta-feira (05/04), quando as forças da SS entraram no Gueto, se viram atacadas por combatentes judeus, que foram capazes de manter o combate por quase dois meses, constituindo um imenso ato de resistência frente a um exército em muito maior número, melhor treinado e com armamentos muito mais poderosos. Ao comentar o significado do Levante, um dos seus líderes, Itschak Cukierman, afirmou: 


“Não creio que seja realmente necessário analisar a Revolta em termos militares. Esta foi uma guerra de menos de mil pessoas contra um poderoso exército e ninguém duvidou de como seria. Este não é um assunto para estudar na escola militar. (...) Se existe uma escola para estudar o espírito humano, este deveria ser um grande tema de estudo. As coisas importantes eram inerentes à força demonstrada pela juventude judaica após anos de degradação, para se levantar contra seus destruidores e determinar qual morte escolheriam: Treblinka ou Revolta.” [1]


Neste ano, em que o Levante do Gueto de Varsóvia comemora 80 anos, a CIP homenageará sua história no Cabalat Shabat de 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.


Que neste shabat, possamos recuperar a força das palavras, dos símbolos e o controle sobre as nossas próprias histórias, valorizar a vida e a resistência em sua defesa. 


Shabat Shalom.



[1] http://bit.ly/3KkxwOO



sexta-feira, 24 de março de 2023

Dvar Torá: Justiça e democracia em Israel (CIP)


Na semana passada, eu estava dando uma aula sobre as novas tradições de Pessach, que é uma dos feriados judaicos mais antigos, dos que ainda são muito celebrados entre as famílias e nos quais, nas últimas décadas, nós encontramos mais inovação. Eu coleciono hagadot com propostas inovadoras e eu trouxe algumas pra mostrar para os alunos: uma hagadá surpreendentemente interessante e profunda que usa como pano de fundo Harry Potter e sua turma, uma hagadá como uma teologia linda escrita pelo poetisa Marcia Falk, algumas hagadot de sedarim de mulheres, uma hagadá que busca o diálogo inter-geracional, uma escrita por e para mulheres vítimas de violência doméstica, uma que conversa com os temas do movimento sindical, com questões dos refugiados contemporâneos. Uma hagadá linda e difícil, escrita por sobreviventes da Shoá para seu primeiro seder de Pessach depois de libertados dos campos de extermínio, ainda em um campo para refugiados em Munique. Lemos juntos um texto escrito por Arthur Waskow, um rabino vinculado ao movimento Renewal que escreveu sobre sua experiência comemorando Pessach apenas alguns dias depois do assassinato de Martin Luther King, enquanto o caos imperava nas ruas de Washington, onde ele vivia — toque de recolher, tanques nas ruas e centenas de manifestantes negros presos. No ônibus, Waskow ia planejando os detalhes do sêder, o momento do calendário judaico em que mais nos identificamos com os oprimidos. De repente, ele começou a cantarolar no ônibus: “Este é o exército do faraó e estou voltando para casa para fazer o sêder”. Naquele momento, ele tomou uma decisão importante na sua vida: “De novo, não! Nunca mais uma bolha no tempo. Nunca mais, nunca mais, uma recitação ritual antes da vida real, da refeição real, da conversa real.” [1]

Esse é o dilema da vida religiosa — quando permitir que a recitação ritual tome o lugar da vida real, da conversa real e quando não. Muitas vezes, quando eu conduzo o serviço de Shacharit, eu digo que há toda uma sessão introdutória, chamada Psukei deZimrá, dedicada a permitir que esqueçamos dos problemas que nos acompanharam até aquele momento, de tal forma que possamos verdadeiramente nos dedicarmos à nossa vida interior. Uma vida espiritual equilibrada é uma necessidade de quem quer poder transformar objetivamente nossa realidade social: precisamos de força interna para lidarmos com as questões de todo dia e se não dedicarmos tempo a construí-la, também não temos como agir no mundo. E, ao mesmo tempo, temos que reconhecer que há situações frente às quais focar exclusivamente na nossa realidade interior pode configurar uma heresia.

Algumas semanas atrás, em Shabat Shirá, quando lemos sobre a saída dos hebreus de Mitsrayim, o texto nos contava que quando o povo reclamava com Moshé por uma intervenção Divina, quando os soldados do Faraó os perseguiam de um lado e o Mar, ainda fechado, estava do outro, a resposta de Deus foi 

 מַה־תִּצְעַק אֵלָי?! דַּבֵּר אֶל־בְּנֵי־יִשְׂרָאֵל וְיִסָּעוּ!! 

Por que você grita comigo?! 

Fale com os israelitas e que eles sigam em frente!! [2]

Há momentos em que, mais que reza, precisamos de ação ou pelo menos de solidariedade com quem age.

A sociedade israelense está em ebulição, como estava Washington naquele abril de 1968 seguindo o assassinato de Martin Luther King Jr. Há semanas que centenas de milhares de manifestantes têm saído às ruas de todo o país em protestos contra uma mudança tão radical no seus sistema judicial que os analistas dizem que comprometeria o caráter democrático do Estado de Israel. Uma explicação bastante superficial é que há dois pontos principais no projeto que tem avançado em velocidade recorde na Knesset: um ponto garante que a coalisão do governo indique a maioria dos membros da Suprema Corte. Outro ponto estabelece que a Knesset passe a poder derrubar decisões da Suprema Corte pela maioria simples de seus membros. Lembrem-se que uma das funções de cortes constitucionais, como é a Suprema Corte de Israel, é defender os direitos das minorias contra leis que infrinjam suas garantias legais. Da forma como a reforma judicial está proposta, direitos estabelecidos poderiam ser revogados com a anuência da coalisão da vez.

No mundo todo, comunidades judaicas têm se mobilizado, buscando reverter a proposta encaminhada ou desacelerar seu processo de aprovação, possibilitando que, através do diálogo entre os grupos políticos, uma proposta de consenso social possa ser formulada. Rabinos de todos os movimentos tem se manifestado pedindo ao governo de Israel que reconsidere sua proposta. A JFNA, a entidade guarda-chuva das Federações Judaicas nos Estados Unidos, emitiu uma carta aberta endereçada tanto ao primeiro ministro Biniamin Netaniahu quanto ao líder da Oposição, Yair Lapid, apontando para o impacto que uma mudança deste tipo teria na relação entre Israel e a comunidade judaica norte-americana [3]. Eles pediam, sem sucesso, que fosse adotada, no lugar do projeto encaminhado pelo governo, a proposta de  Itschak Herzog, o presidente de Israel [4].

Segmentos da comunidade judaica brasileira também têm se mobilizado em solidariedade aos manifestantes que pedem a proteção ao caráter democrática de Israel. Em uma carta endereçada ao governo israelense e assinada inicialmente por um grupo de entidades judaicas, incluindo a CIP [5], reafirmamos nosso Sionismo e compromisso com Israel como um Estado Judaico e Democrático e, reconhecemos o impacto que acontecimentos em Israel projetam sobre nós. Ao final do documento, “manifestamos nosso apoio e solidariedade aos israelenses que lutam pela manutenção da democracia, e conclamamos a população judaica brasileira para que faça o mesmo, repudiando qualquer ameaça ao Estado Democrático de Direito no país.”

Nesta semana começamos Vaicrá, o terceiro livro da Torá. Nesta primeira parashá, o texto trata de diversos tipos de sacrifícios, incluindo a “chatat” e o “asham”, ofertas para casos em que as pessoas deixavam de cumprir as instruções da Torá por negligência, descuido ou má fé [6]. Uma parte importante dessas regras dizia respeito à preservação da integridade do sistema judicial, garantindo que não houvessem testemunhos falsos nem omissão em testemunhos que poderiam inocentar um suspeito. 

A decisão sobre sua estrutura judicial pertence apenas aos israelenses, mas suas implicações claramente nos afetam também. Se informe sobre o processo em curso, procure formar a sua própria opinião e, se achar apropriado, se manifeste e ajude a defender a Democracia israelense!

Shabat Shalom!


 

sexta-feira, 10 de março de 2023

Dvar Torá: O Bezerro de Ouro e a rejeição das evidências (CIP)


Você acredita em vida inteligente extraterrestre? Eu não consegui encontrar estatísticas para o Brasil, mas de acordo com uma pesquisa recente sobre a população norte-americana realizada pelo Pew Research Center, cerca de 2/3 da população americana acredita em inteligência existindo fora do nosso planeta. Como várias outras estatísticas, o índice muda bastante dependendo do sub-grupo da população que consideramos: 76% das pessoas entre 18-29 respondem favoravelmente enquanto apenas 56% das pessoas acima de 65 anos respondem da mesma forma. 69% das pessoas asiáticas concordam que há vida inteligente em outros planetas enquanto apenas 61% das pessoas negras dizem o mesmo. O curioso pra mim foi ver como a religião impacta estes números: para pessoas que dizem que a religião é muito importante para elas, apenas 49% declararam acreditar em vida inteligente extraterrestre, enquanto para pessoas para quem a religião não é nada importante, 83% responderam da mesma forma.

Vamos, só para um exercício mental, imaginar que você NÃO acredite em vida inteligente fora da Terra. Então, um dia, você acorda e encontra o céu lilás, com uma imensa espaçonave estacionada no meio do céu. Você liga a TV e descobre que a mesma coisa aconteceu ao redor de todo o mundo; que todas as 8 bilhões de pessoas que vivem no mundo estão vendo uma espaçonave flutuando sobre suas cabeças. Eu gostaria de imaginar que a imensa maioria das pessoas, mesmo aquelas que se declaravam absolutamente convencidas de que não existia vida inteligente em outros planetas, teria mudado de opinião, considerando a força da evidência que lhes foi apresentada.

Eu digo “gostaria de imaginar” porque os fatos e as evidências têm perdido cada vez mais sua potência de convencimento frente às crenças e às opiniões. Se alguém acredita que seres humanos e todos os animais foram criados no 6º dia da Criação e lhe é apresentada evidência de que os  dinossauros viveram 65 milhões de anos antes do aparecimento dos primeiros humanos, a pessoa pode responder que os dinossauros carregados na Arca de Noé eram bebês ou que as inúmeras lendas sobre dragões são evidência de que a humanidade e os dinossauros viveram ao mesmo tempo. A minha favorita, que parece estar caindo de moda mesmo entre os criacionistas, diz que os fósseis de dinossauros que indicam que eles são milhões de anos mais velhos que os humanos, são “evidência plantada” para testar nossa fé. 

Podemos encontrar exemplos mais recentes e relevantes de como as evidências estão perdendo importância — as dúvidas crescentes sobre a eficiência das vacinas, mesmo depois de termos praticamente erradicado o sarampo, a poliomielite, a rubéola e a difteria no Brasil, graças a campanhas extremamente bem sucedidas de vacinação. Se olharmos as curvas de infecções e mortes por Covid dos últimos três anos, perceberemos que, após a introdução da vacinação, a doença se tornou muito menos transmissível e, ainda mais importante, muito menos letal. Há quem não acredite que a terra seja uma esfera, apesar de continuar assistindo programas transmitidos por satélites estacionados sobre o globo terrestre. Meu pai, que fumava dois maços de cigarro por dia, estava entre as pessoas que se recusavam a aceitar qualquer relação entre o fumo e o câncer — nem preciso dizer que ele faleceu de câncer do pulmão aos 66 anos.

Na parashá desta semana, a narrativa, que estava focada nas instruções para a construção do Mishcán, retorna ao momento em que Moshé subiu ao Monte Sinai para receber a Torá. Ao final dos 40 dias em que ele passa lá, Deus pede que ele se apresse pois o povo havia agido de forma detestável. Eles tinham construído um bezerro de ouro e disseram: “este é o seu deus, ó Israel, que te tirou da terra do Egito.”

O povo, que tinha acabado de ser libertado do Egito através da ação Divina em 10 golpes que iam da transformação da água do rio Nilo em Sangue à morte de todos os primogênitos do Egito, que tinha visto o mar se abrir à sua frente para que pudessem cruzar em segurança e como ele tinha se fechado afogando as tropas egípcias que os perseguiam; o mesmo povo que tinha vivenciado as primeiras Dez Afirmações da Revelação no Monte Sinai e que, amedrontado, tinha pedido a Moshé que só ele falasse com Deus dali pra diante. Esse povo, que tinha recebido todas estas evidências da sua relação especial com Deus, tinha resolvido negá-las e adotar uma escultura de ouro, que eles mesmos tinham criado a partir de seus brincos, como seu redentor.

Ninguém precisa acreditar nessa história de forma literal para perceber que há aqui um processo de construção de realidade paralela desconectada da experiência que cada uma daquelas duas milhões de pessoas tinha vivenciado.

Por que será que é tão fácil nos deixarmos seduzir por narrativas paralelas deste tipo, desconectadas de toda evidência empírica que temos a nosso dispor?

As pessoas que estudam este fenômeno, o negacionismo, falam em quatro motivos para que as pessoas neguem as evidências desta forma:

1- a informação vem de uma fonte que eles percebem como não confiável, em particular com viés contrário às posições na qual essas pessoas acreditam (como uma abordagem anti-religiosa, por exemplo)

2- pertencimento a um grupo social que se opõe a esta perspectiva. Eu recentemente escutei em um podcast que algumas pessoas iam se vacinar fantasiadas para garantir que seus amigos, contrários à vacinação, não soubessem que elas tinham quebrado as normas do grupo; 

3- a informação contradiz o que eles acreditam ser verdadeiro, bom ou valioso. Neste caso, há uma contradição entre a conclusão para a qual as evidências apontam e algum valor muito importante para estas pessoas e elas se recusam a abrir mão dele. Naomi Oreskes, professora de história da ciência na Universidade de Harvard, “essas pessoas não rejeitam a ciência porque não têm fatos suficientes. Eles rejeitam a ciência porque acham que ela vai contra seus valores ou ideologia”.  O resultado desta negação das evidências leva a uma dissonância cognitiva, que gera desconforto. Um artigo publicado nos anais da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos afirma que “dado esse sentimento aversivo, as pessoas são motivadas a resolver a contradição e eliminar o desconforto de várias maneiras, como rejeitar a nova informação, banalizar o tópico, racionalizar que não há contradição ou revisar seu pensamento existente (…) Criticamente, as pessoas tendem a resolver a dissonância usando o caminho de menor resistência. Para uma pessoa que fumou a vida toda, é muito mais fácil rejeitar ou banalizar as evidências científicas sobre os riscos do fumo à saúde do que alterar seu hábito arraigado. Com a dissonância, a intransigência das crenças existentes se assemelha à rigidez dos comportamentos existentes: é mais fácil rejeitar uma informação científica do que revisar todo um sistema de crenças existentes que se acumulou e integrou a uma visão de mundo ao longo dos anos, muitas vezes reforçada pela influência social. consenso.”.

4- a informação é entregue usando uma linguagem ou meio diferente daquele como a pessoa concebe este assunto. Por exemplo, quando ações concretas de consumo ético são propostos para resolver quetões consideradas abstratas como a mudança climática ou exploração do trabalho em formas análogas à escravidão, muitas vezes elas são rejeitadas de cara, sem que seu mérito seja considerado.

Todos nós rejeitamos a evidência uma vez ou outra. Algumas vezes são questões banais com a qual ninguém se importa realmente. Outras, são questões que determinam o destino de toda uma geração, como o que aconteceu com a geração do Êxodo e sua falta de entendimento de que havia sido ה׳, um Deus sem corpo, diferente das divindades que o povo tinha conhecido no Egito, que os tinha redimido da escravidão; ou a qualidade da vida que nossos descendentes terão neste planeta quando as temperaturas médias crescentes levarem a desastres naturais ainda mais radicais e devastadores do que os temos vivenciado nos últimos anos; ou ainda o retorno de doenças que haviam sido erradicadas do Brasil e que retornaram porque as pessoas deixaram de acreditar na eficiência e necessidade da vacinação de todos.

Após todas as crises, nossa parashá avança para um final feliz, com Deus e Moshé se encontrando face-a-face e Moshé retornando ao Monte Sinai para, depois de 40 dias sem incidentes, descer com o segundo jogo de tábuas da Lei. De acordo com o rabino Art Green, a relação renegociada entre Deus e o povo Judeu. As primeiras tábuas tinham sido obra do trabalho exclusivo de Deus, como se um lado tentasse impor ao outro as condições do Pacto. O segundo jogo de tábuas foram resultado conjunto do trabalho humano e Divino, condições mutuamente pactuadas e que, portanto, acolhiam e obrigavam a todos.

Que consigamos todos re-pactuar as condições da nossa convivência social, de tal forma que consigamos aceitar como verdadeiras as evidências à nossa frente e adotar condutas que amenizem os riscos e potencializem os ganhos para nossa vida conjunta nesse país e nesse planeta.

Shabat Shalom!

 

quinta-feira, 2 de março de 2023

Uma luz ou muitas luzes?


Outro dia, eu estava assistindo um daqueles programas que tratam do noticiário com humor, no qual eles falavam das inúmeras violações dos Direitos Humanos que estavam envolvidos na preparação do Qatar para sediar a Copa do Mundo em dezembro passado [1]. Em uma das declarações, um dirigente da FIFA afirmou que a organização encontrava dificuldades em trabalhar com governos democráticos pelos múltiplos agentes com que precisava negociar e que a organização de grandes eventos era facilitada quando os países tinham governos autoritários. Ainda que a sinceridade de sua manifestação nos choque, não são raras as pessoas que acreditam que uma unicidade de visão garanta maior coerência a um grupo (qualquer que seja seu tamanho) do que a pluralidade de ideias distintas. Em oposição a esta perspectiva, há quem acredite que o debate estabelecido entre perspectivas distintas aprimora e fortalece os processos, ainda que eles se tornem mais complexos e demorados.


A parashá desta semana, Tetsavê, começa com  instruções para o estabelecimento de luzes, que ficariam permanentemente acesas no Mishkán [2]. No entanto, a frase seguinte instrui Moshé e Aharón a acenderem as velas desde a tarde até a noite. Frente a esta aparente contradição, vários comentaristas questionaram se as luzes deveriam ficar acesas o tempo todo ou apenas quando estivesse escuro. A solução, em uma abordagem classicamente judaica (e rabínica!) foi afirmar que as duas leituras tinham razão…. Uma única luz era mantida acesa durante o dia, enquanto as demais luzes da menorá eram acesas apenas entre o entardecer e o amanhecer, quando a escuridão da noite demandava iluminação adicional para aquele lugar sagrado.


Há momentos da nossa história que têm grande clareza: todos concordamos sobre aonde queremos chegar e quais os melhores caminhos para atingir nossos objetivos comuns. Nestes períodos, podemos ser iluminados por apenas uma luz, ao redor da qual todos nos alinhamos. O filósofo israelense Yeshayahu Leibowitz (1903-1994), no entanto, nos alerta para que situações deste tipo não se tornem totalitárias: “uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que essa.” [3]


Voltando à instrução da parashá, nos períodos mais escuros do dia, várias velas eram acesas para gerar a luz necessária, mesmo que a luz resultante fosse mais difusa do que a luz emanada por uma única vela. De forma similar, em situações nas quais, naturalmente, existe divergência de opiniões, é fundamental que as múltiplas vozes sejam consideradas, mesmo que assim o processo se torne menos ágil. A clareza decorrente de uma única opinião geralmente é pálida frente à sofisticação e complexidade que advém do contraste de pontos de vista conflitantes. O filósofo russo Vladimir Lossky formulou esta ideia de forma particularmente afiada com relação à teologia, mas seu argumento se mantém válido também em outros campos do conhecimento: “Não há nada mais perigoso, mais contrário à verdadeira teologia, do que uma clareza superficial em detrimento de uma análise profunda.” O rabino Joseph Soloveitchik, principal referência da Ortodoxia Moderna norte-americana, expressou uma ideia similar, em uma perspectiva metafórica e  igualmente teológica e que me lembra a cúpula da sinagoga na CIP: “A luz branca da divindade é sempre refratada através da cúpula da realidade composta por muitos vidros coloridos.”


Quem em nossa busca pela luz em meio à escuridão, nunca abramos mão do brilho da nossa própria vela, e aprendamos a aproveitar a força que decorre das múltiplas velas na menorá..


Shabat Shalom!





[1] https://youtu.be/UMqLDhl8PXw

[2] Ex. 27:20

[3] Yeshayahu Leibowitz, Earot leParshiot haShavua, Cap. 2: Bereshit - Noach