domingo, 25 de setembro de 2022

Dvar Torá: Dando vida às metafóras sobre Deus. Rosh haShaná 5783 (CIP)


Eu quero começar a prédica com uma história chassídica que eu adoro ensinar e que eu encontrei em um livro de Shai Agnon [1], o autor israelense que ganhou o prêmio Nobel de Literatura de 1966. 
Um chassid um dia visitou seu rebe, o Rabino Elimelech de Lizensk nos dias entre Rosh Hashaná e Iom Kipur e lhe pediu se podia assistir a forma como o rabino conduzia a Capará.
Para quem não conhece o termo, Capará é uma tradição antiga na qual os pecados de uma pessoa eram transferidos para uma galinha na véspera de Iom Kipur, rodando o animal sobre a cabeça da pessoa. O animal era, então, abatido junto com todos os pecados da pessoa e doado. Com o tempo e a preocupação com o bem estar dos animais, algumas pessoas passaram a fazer o mesmo ritual, mas transferindo os pecados para notas de dinheiro que, então, eram doadas. Que fique claro que essas práticas não são mais praticadas pela imensa maioria do mundo judaico liberal.
A resposta do rabino, de alguma forma, surpreendeu o chassid:

 – “Eu estou honrado que você queira me ver fazendo a mitsvá de capará, mas eu preciso te dizer que nesta mitzvá especificamente, minha performance não é nada extraordinária. Se você quiser ver alguém que a faz de uma forma especial, vá ver o Moishe, que toma conta do albergue.”

Na manhã antes de Iom Kipur, o jovem chasid foi até a casa do Moishe observar como ele fazia Capará e ficou espiando pela fresta da janela.

Moishe começou sentando em uma cadeira de madeira em frente a uma pequena lareira em sua sala com“seus dois livros de teshuvá” ao seu lado. Moishe pegou o primeiro livro e disse:

– “Ribonô shel Olam”, Senhor do Universo, chegou a hora de acertarmos as contas  de todas as nossas transgressões do último ano, pois a Capará se aplica sobre todo Israel.”

Ele abriu o primeiro livro, leu o que estava escrito com muito cuidado e começou a chorar. O jovem chasid escutou atentamente enquanto Moishe lia uma lista de pecados (todos sem maior importância) que Moishe tinha cometido no ano anterior. Quando terminou de ler, Moishe pegou seu caderno encharcado de lágrimas, balançou-o sobre sua cabeça e o jogou no fogo. Ele, então, pegou o outro livro, bem mais pesado que o primeiro. E disse:

- “Ribonô shel Olam, Senhor do Universo, antes eu listei todas as minhas transgressões, agora eu vou contar todas as transgressões que Você fez.”

Moishe imediatamente começou a listar todos os episódios de morte, sofrimento, doença e destruição que tinham acontecido durante o ano anterior para todos os membros de sua família. Quando terminou de listar, Moishe disse:

- “Ribonô shel Olam, se formos calcular com exatidão, Você me deve mais do que eu te devo, mas eu não quero ser tão preciso nas contas, por que hoje é véspera de Iom Kipur e somos todos obrigados a fazer as pazes uns com os outros. Portanto, eu desculpo todas as Suas transgressões contra mim e minha família e Você também desculpa todas as minhas  transgressões contra Você.”

Com isso, Moishe pegou o segundo livro, que também estava encharcado de lágrimas, balançou sobre sua cabeça e jogou no fogo.

Ele então colocou vodka no seu copo, fez a benção, e disse “Le chayim!” bem alto. Se sentou com sua esposa e teve uma boa refeição em preparação ao jejum.

O jovem chasid, chocado, voltou ao seu rebe e lhe contou as heresias que Moishe tinha dito a Deus. O Rabino lhe disse:

– “Pois saiba que nos céus, todo ano Deus e toda a Sua corte se juntam para escutar com muita atenção as coisas que Moishe diz. E como resultado, há alegria e satisfação em todos os mundos.”
Como eu disse, eu adoro ensinar esta história porque há nela um elemento transgressor fundamentalmente judaico que acabamos perdendo no último século e meio. Quando eu dou a primeira aula no Curso de Introdução ao Judaísmo, eu digo aos alunos que, enquanto para a maioria das outras tradições religiosas, ser uma pessoa devota significa dizer “Sim, Senhor” para a mensagem Divina, no Judaísmo, um judeu comprometido responde ao chamado de Deus com “como você ousa me pedir uma coisa dessas?!”. Foi assim que Avraham, o primeiro patriarca respondeu quando Deus o instruiu a destruir Sodoma e Gomorra [2]; foi assim que Moshé respondeu quando Deus lhe disse que iria destruir o povo após o episódio do Bezerro de Ouro [3]; foi assim que os rabinos responderam quando Deus tentou se intrometer em uma das suas discussões rabínicas [4]. O nome que o povo judeu recebe na maior parte da tradição rabínica, o povo de Israel, reflete, de alguma forma, esta perspectiva: “Israel” quer dizer, literalmente, “aquele que duela com Deus”. O mais incrível é que Deus parece não se incomodar com o questionamento de Suas ações, pelo contrário: em um episódio em que sua opinião é recusada pelos rabinos, Deus sai sorrindo e dizendo “meus filhos me derrotaram”, orgulhoso como um pai cuja filha o derrota no jogo de xadrez.

Quando eu ensino a história do Moishe fazendo sua capará inovadora, as pessoas parecem apreciá-la, e eu acho que a razão para isso é que elas admiram a conduta dele. Mas a verdade é que eu acho que elas também se identificam com a conduta do chassid, que acha que trata-se de heresia. 

Queremos um novo modelo de relacionamento com o Divino mas temos uma dificuldade imensa de abrirmos mão do modelo atual, mesmo que nos sintamos profundamente incomodados com ele.

Na preparação para esta predica, eu estava lendo um livro chamado “Deus o quê? O que nossas metáforas para Deus revelam sobre nossas crenças sobre Deus”. Logo no começo do livro a autora, Carolyn Jane Bohler, oferece um questionário sobre as nossas crenças e ela sugere que os leitores o preencham antes de ler o livro e, de novo, depois de terminá-lo. 

Pessoalmente, depois de todos os anos de seminário rabínico, me considero um sujeito com uma educação judaica sofisticada, cuja compreensão de Deus não está baseada, de forma alguma, no que eu chamo de “o Deus Papai Noel”, de longas barbas brancas, sentado em um trono no céu, observando cada detalhe das nossas vidas. Meu entendimento do Divino é fluido, mas está muito mais próximo de Mordecai Kaplan, o fundador do movimento Reconstrucionista, que definiu Deus como “a força que causa a Salvação” ou de quem entende Deus como um processo ou ainda de Maimônides, o filósofo racionalista para quem a humanidade nunca seria capaz de afirmar com convicção o que Deus é, apenas o que Deus não é, como dizer que Deus não tem um corpo. E, apesar disso tudo, ao final do questionário, que tinha afirmações como “Deus continua trabalhando em nós, nos moldando”, “Deus e a humanidade compartilham poder e responsabilidade”, e “Deus toma o que é e, uma vez após a outra,  busca criar o melhor com o quem tem”, eu me surpreendi em me dar conta que a maior parte das minhas respostas partiam da premissa do “Deus Papai Noel”, aquele no qual eu não acredito. Eu fiquei me perguntando por que será, se essa não é o entendimento que eu tenho do Divino, que eu respondi as perguntas assim?

Porque o contexto que nos cerca conta e o contexto repetido conta ainda mais. Não sei quem acompanhou a polêmica do lançamento do trailer do filme com atores reais da Pequena Sereia, no qual o papel da protagonista é desempenhado por Halle Bailey, uma atriz negra. De um lado, fãs revoltados com o fato de que a Pequena Sereia do filme não terá a pele clarinha, quase branca, da versão em desenho animado. De outro,   crianças negras emocionadas em descobrir que sua heroína será retratada como alguém parecido com elas…. Eu nunca encontrei uma sereia nem conheço ninguém que tenha encontrado uma. Não sei a cor da sua pele nem do seu cabelo, não sei a altura nem o seu tom de voz — e mesmo sem conhecermos uma sereia, ninguém reclamou quando a personagem criada por Hans Christian Andersen no século 19 foi retratada como uma mulher branca de cabelo ruivo em um desenho da Disney. Sem deixar de lado o fato de que várias reclamações tinham uma inspiração racista, há também a verdade de que, depois de retratada branca e ruiva em inúmeros filmes infantis, a imagem ficou gravada nas nossas consciências. São bonecas, desenhos animados da Disney e de outros estúdios, roupas, e muitos ítens martelando essa ideia na nossa cabeça desde 1989, quando o longo metragem de animação foi lançado. Esse processo de repetição de uma imagem torna aquela que seria apenas uma possibilidade de leitura da aparência da personagem na única concepção verdadeira que ela poderia ter.

O mesmo fenômeno acontece com nossas percepções teológicas. Dentro do mundo judaico, toda vez que vamos dizer uma brachá usamos a fórmula “ברוך אתה ה׳, אלהינו מלך העולם”, “Você é Abençoado, ה׳, nosso Deus, Rei do Universo”. Vários aspectos do Divino estão implícitos nessa curta fórmula: Deus é outro, a quem endereçamos por אתה, Você — e portanto não é parte de nós. Deus é Masculino. Deus é hierárquico, nosso Rei e de todo o mundo. Na cultura mais ampla, quando Deus é personagem de um filme é, na imensa maioria das vezes, retratado como uma pessoa branca, idosa e de voz bem grave. Mesmo os humoristas mais desconstruídos, que mais questionam perspectivas religiosas tradicionais retratam Deus desta forma — outro, masculino e hierárquico. Quando Deus é apresentado como algo fora deste figurino — e tivemos várias tentativas assim nos últimos anos — tem a mesma recepção que a Capará do Moishe: é heresia!

Eu fiz um exercício com grupos de educadores e alunos nos últimos meses: lhes perguntei que atributos eles dariam a Deus de acordo com a forma como é retratado na Torá e na liturgia judaica. A maioria das respostas esteve longe de ser acolhedora: “punitivista”, “egocêntrico”, “dogmático”, “temido”, “violento”, “misógeno” foram algumas das expressões que me foram dadas. No entanto, quando eu perguntava sobre o que eles acreditavam a respeito de Deus, recebia respostas completamente diferentes, que falavam em acolhimento, parceria e horizontalidade. Pelos textos que lemos, pelas rezas que dizemos, pela realidade cultural em que vivemos, passamos a aceitar que a perspectiva “correta” de Deus é uma na qual, muitos de nós não acredita mais.

“Não acredita mais” também precisa ser qualificado por que está implícito nesta formulação que um dia os judeus acreditaram neste Deus. O rabino Larry Hoffmann é um dos principais — se não, o principal — especialista em liturgia judaica dentro do mundo judaico liberal. Ele contesta a ideia da qual fomos convencidos de que nossos antepassados acreditavam nestes textos de forma literal. Em suas palavras:
 
Para complicar a situação, ainda é muito ruim nossa compreensão de nossos antepassados, que consideramos santos sem humor que não tiveram que sofrer os problemas com a reza que nos atormentam. Mas e se eles fossem mais parecidos conosco do que pensamos? As mesmas rezas que nos incomodam os incomodaram - um Deus todo-poderoso, todo-bom e onisciente que permite que crianças inocentes morram, por exemplo? Quando encontraram essas alegações litúrgicas, eles as levaram literalmente? Ou eles já haviam chegado a um acordo com a impossibilidade de expressar o profundo? Eles tiveram que aguardar críticas literárias modernas para desenvolver aquilo que agora chamamos de "estratégias de leitura" - ou eles já sabiam o suficiente para ler da maneira que fazemos, reconhecendo a poética da símile, da hipérbole, da personificação, etc? Afinal, o fato de viverem em tempos medievais não os torna nem infantilmente ingênuos nem mentalmente incompetentes. Alguns deles eram gênios como Maimônides, que negaram a corporalidade de Deus e anteciparam nosso mal-estar com rezas que tratam Deus como se Deus fosse um juiz humano demais que requer pacificação por reza e petição. Mas Maimônides foi o único que pensou em tais "heresias" ou era apenas uma pessoa particularmente importante que ousou dizê-las em voz alta? Os grandes escritores nem sempre desenvolvem idéias que ninguém jamais teve, mas as expressam com palavras que evocam saberes de leitores que mais ou menos suspeitavam dessas verdades de qualquer maneira, mas não tinham como expressá-las.

Da mesma forma, o que diríamos sobre os autores dessas rezas? Como saberíamos se eles escreveram ironicamente, em vez de literalmente, por exemplo? O hebraico deles não era vocalizado, deixando a nós, leitores, adivinhar pontuação como vírgulas e pontos, mas também pontos de exclamação por intensidade, pontos de interrogação para indicar incertezas retóricas e aspas para alertar contra uma compreensão literal do que eles colocam. E se estivermos entendendo tudo errado? Podemos ver, por exemplo, com que frequência eles citaram a Bíblia; mas se a principal preocupação deles fosse citar, como saberíamos se eles pretendiam que as citações fossem verdades literais? Citamos as “sete eras do homem” de Shakespeare para transmitir a idéia de desenvolvimento humano, mas não para dizer que existem sete dessas eras especificamente pelas quais os “homens”, mas não as mulheres, passam. Se alguém escreve "divinamente", não queremos dizer que realmente escreva como Deus. E se nossos escritores de reza mais talentosos quase nunca interpretassem seus escritos literalmente? E se eles fossem talentosos do jeito que os escritores são hoje - capazes de esticar a linguagem com imaginação suficiente para transmitir o que o pensamento conceitual comum nunca chegará? [5]
Eu li na semana passada um artigo do Fernando Reinach segundo o qual encontraram um esqueleto em Bornéu, na Indonésia, que teve uma perna amputada entre o joelho e o pé 31 MIL anos atrás. As marcas nos ossos demonstram que não foi um acidente, mas uma amputação cirúrgica. A cirurgia aconteceu quando o paciente tinha 14 ou 15 anos e ele viveu até os 20 anos. De acordo com Reinach:
O que me parece óbvio é que essa descoberta vai levar os cientistas a reconsiderar o grau de desenvolvimento tecnológico e cultural desses povos. Como essas populações não conheciam a escrita e praticamente não construíam obras arquitetônicas, tudo o que sabemos sobre elas foi aprendido escavando locais em que viviam e estudando os ossos, as pinturas, os restos de alimentos e os poucos artefatos encontrados. Com tão pouca informação, é natural subestimarmos o progresso dessas sociedades. Uma descoberta como essa vai nos forçar a reavaliar o conhecimento e as tecnologias que essas pessoas já dominavam. [6]
Há mais de 30 mil anos a humanidade já conseguia amputar órgãos mas continuamos imaginando que nossos antepassados acreditavam na Torá de forma literal e que nossos rabinos escreveram a liturgia judaica sem nenhuma dose de licença poética, sem uso de metáforas e sem ironias. Todas essas seriam técnicas modernas para escapar de uma realidade teológica com a qual não conseguimos nos adequar.

Em seu livro “Teologia Metafórica: Modelos de Deus na Linguagem Religiosa”, Sally McFague defende que a leitura de textos religiosos com se eles tivessem um significado único e literal constitui “idolatria da linguagem religiosa”: 
Os antigos eram menos literalistas do que nós, conscientes de que a verdade tem muitos níveis e que quando se escreve a história da vida de uma pessoa influente, a perspectiva de alguém colorirá essa história. A nossa é uma mentalidade literalista; a deles era uma mentalidade simbólica. [7]
E se uma leitura simbólica fosse uma possibilidade ao nosso alcance? E se nos permitíssemos ter uma leitura generosa e radicalmente metafórica dos poemas litúrgicos que leremos nesses dias de Grandes Festas?

No livro sobre metáforas religiosas que eu mencionei acima, a autora propões técnicas para sermos capazes de usar estas metáforas com intenção, sem sentir que estamos nos submetendo a uma teologia que não é a nossa — e também para reconhecer que algumas destas metáforas não funcionam conosco e que devemos buscar outras referências. Em um desses exemplos no qual a releitura foi possível, ela fala da imagem de Deus como ceramista,  que faz parte da liturgia de Iom Kipur e que me era cara e incômoda. Me incomodava a ideia de Deus como ceramista porque ela me colocava no incômodo e passivo papel de argila, sem agência alguma e sujeito à vontade do meu Criador. Carolyn Jane Bohler, a autora, conta no livro que seu filho trabalha com argila e o que ela aprendeu com ele é que são necessárias várias tentativas até que o produto final esteja pronto. Ela continua, dizendo que o Ceramista Divino gosta de ser criativo, de nos editar, nos moldar e nos dar forma.

Com uma leitura generosa assim, sem ofender o sentido do texto mas tampouco assumindo que seus autores tinham a intenção que adotássemos uma leitura literal, eu consegui enxergar uma forma como o Divino que reside dentro de mim, de forma não hierárquica e sem assumir qualquer gênero, me ajuda a me transformar o tempo todo, em diálogo comigo, e como buscamos juntos que eu me transforme na melhor versão de mim mesmo. A própria autora reconhece que nem todas as metáforas dão espaço para este tipo de busca simbólica. No livro do profeta Hoshea, Deus se compara a um marido abusivo — uma imagem, talvez impossível de ser resgatada, especialmente para vítimas de abuso doméstico. Muitos outras, no entanto, foram o bebê proverbial jogado fora junto com a água suja.

Na melhor prédica que eu já li, a rabina Margaret Moers Wenig retrata Deus como uma velha mulher esperando seus filhos visitarem em Iom Kipur. Em um certo momento, Deus reclama dos cartões postais que seus filhos lhe mandam, com palavras impressas escritas por outros, nas quais eles apenas assinam seu nome — no final do texto, fica claro que estes cartões postais são as páginas do machzor, o livro de rezas de Rosh haShaná e Iom Kipur, palavras que repetimos como se fossem nossas, como se tivéssemos a intenção que elas transmitem, sem nem ao menos pararmos para refletir sobre o seu significado.

Moishe, o dono da hospedagem, teve a coragem radical de fazer cheshbon hanefesh, a contabilidade da alma, por ele e por Deus e, assim, dar significado ao ritual de Capará. Será que nós também somos capazes deste tipo de coragem radical e de transformar a experiência destes dias temíveis em algo verdadeiramente significativo e transformador?

Shaná Tová! Que seja um 5783 transformador e muito doce para todos nós!


[1] S. Y. Agnon, “A Conta”, Yamim Noraim, parte II, cap. 22
[2] Gen. 18:25
[3] Ex. 32:11-13
[4] Talmud Bavli Bava Metsia 59b
[5] Lawrence A. Hoffman, Talmud Bavli Bava Metsia 59b “Prayers of Awe, Intuitions of Wonder”, Who by Fire, Who by Water: Un’taneh Tokef. Lawrence A. Hoffman (ed.), Woodstock, Vt: Jewish Lights Pub, 2010. pp. 4-12.
[6] Fernando Reinach, “A mais antiga perna amputada”, Estado de São Paulo, 17 de setembro de 2022
[7] Sallie McFague, Metaphorical Theology: Models of God in Religious Language, p. 23/401 (e-book)

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Dvar Torá: Tshuvá por nossa história coletiva (CIP)


No longínquo ano de 2014, eu trabalhava em uma escola judaica de São Paulo e levei uma turma de alunos do Ensino Médio para a Marcha da Vida, a visita aos campos de concentração e extermínio que ajudaram a praticamente exterminar a vida judaica em diversos países europeus durante a Segunda Guerra Mundial. Quando estávamos na Polônia, eu encontrei o Celso Zilbovicius, amigo desta casa e meu amigo pessoal, diretor pedagógico da Marcha dos Universitários, organizada pelo Fundo Comunitário de São Paulo. Eles tinham ido pela primeira vez a Berlim, que não fazia parte do nosso roteiro e eu lhe perguntei como tinha sido. “Eles se encontraram com seu passado e com toda a dor que dele deriva de forma verdadeira e corajosa”, ele me disse. “A partir de agora, nosso roteiro sempre passará a incluir a Alemanha” na Marcha. 
Esse encontro verdadeiro e corajoso com nossos erros tem nome na tradição judaica: “tshuvá”, que vem da raiz “lashuv”, “retornar”. Em hebraico contemporâneo, “tshuvá” quer dizer “resposta”, da mesma forma que, em português, nós dizemos que daremos “retorno” a algum questionamento mais complexo depois de averiguá-lo. Quando mencionamos “tshuvá” no do contexto judaico ao qual eu estou me referindo, é muito frequentemente traduzido como “arrependimento”, mas é um conceito muito mais complexo e estruturado do que o que normalmente entendemos por “arrependimento”.

O rabino Joseph Soloveitchik, a principal referência do Ortodoxia Moderna norte-americana no século XX carinhosamente chamado de “O Rav”, falaou assim sobre a tshuvá:
É um preceito cuja essência não está na realização de certos atos ou feitos, mas sim em um processo que às vezes se estende por toda uma vida, um processo que começa com o remorso, com o sentimento de culpa, com a crescente consciência do homem de que não há propósito para sua vida, com uma sensação de isolamento, de estar perdido e à deriva no vácuo, de falência espiritual, de frustração e fracasso - e o caminho a ser percorrido é muito longo, até que o objetivo do arrependimento seja realmente alcançado. O arrependimento não é uma função de um ato único e decisivo, mas cresce e aumenta de tamanho lenta e gradualmente, até que o penitente sofre uma metamorfose completa, e então, depois de se tornar uma nova pessoa, e só então, ocorre o arrependimento. [1]
Tshuvá é um tema central da preparação espiritual que nos leva a Rosh haShaná e a Iom Kipur e da liturgia das Grandes Festas. Também é, pelo menos gramaticalmente, importante na parashá desta semana, na qual temos 8 variações verbais de “lashuv” em apenas 10 versos [2]. Certamente, não é por coincidência que os rabinos estruturaram o ciclo de leituras da Torá de forma que parashat Nitsvamim caísse quase sempre no Shabat antes de Rosh haShaná.

Hoje eu queria propor um exercício um pouco diferente daquele que vamos fazer em Rosh haShaná e Iom Kipur. Lá, o foco será, na maioria das vezes, os erros que cometemos individualmente, as pessoas que ofendemos pessoalmente, as formas como nos afastamos da pessoa que gostaríamos de ser. Hoje, eu queria que pensássemos em um processo mais coletivo de tshuvá, de pensarmos como comunidade, como sociedade, como nação, as formas como erramos no nosso passado e a forma como, em muitos destes casos, a tshuvá verdadeira e profunda, como definiu o Rav Soloveitchik.

Como vocês devem saber, eu escuto muitos podcasts e nas últimas semanas, uma coincidência de efemérides me levou a pensar em nossos erros históricos cujos processos de tshuvá ainda estão no início: de um lado, os 200 anos da Independência do Brasil, em especial quando avaliados em perspectivas distintas daquelas que eu aprendi na escola — olhando para estes processos a partir do olhar de mulheres, de negros, de indígenas e de outros grupos cujas experiências históricas foram quase apagadas mas que agora começam a re-aparecer [3]. De outro lado, a semana que vem marcará 30 anos do Massacre do Carandirú, no qual 111 presos foram brutalmente assassinados, sem que nenhuma pessoa tenha ido para a prisão. Estes são dois temas caros para mim, que talvez não sejam para vocês, mas podemos todos concordar que merecemos um encontro profundo e verdadeiro com nosso passado, que este processo será dolorido e nos causará constrangimento, mas que ao final dele sairemos melhores e mais fortes. Guardadas as proporções, o exemplo da Alemanha sempre ecoa nos meus ouvidos quando penso neste tema — certamente não foi fácil para um geração de alemães que não tinham nascido quando a Shoá foi perpetrada por seus pais, avós e bisavós falar dos erros como se fossem pessoalmente deles, mas nenhum processo que levasse a menos do que isso levaria à transformação necessária.

A rabina Danya Ruttenberg publicou há algumas semanas um livro sobre este assunto entitulado “On Repentance and Repair”, “Sobre o Arrependimento e o Reparo”, no qual ela se baseia nos ensinamentos de Maimônides sobre a tshuvá para analisar o momento que a sociedade norte-americana vive hoje. Em suas palavras:
O trabalho de se arrepender completamente é o trabalho de transformação. É o trabalho de enfrentar histórias falsas e se envolver com a realidade dolorosa. É o trabalho de estar aberto para nos ver como realmente somos, de entender que as necessidades e a dor de outras pessoas são pelo menos tão importantes - se não mais - do que as nossas. É sobre descobrir como ser o tipo de pessoa que vê o sofrimento dos outros e assume a responsabilidade por qualquer papel que possamos ter em causar isso. É sobre reconhecer sua responsabilidade - reconhecer quem fomos e o que fizemos, e também reconhecer a pessoa que somos capazes de nos tornar.
Na estrutura que ela adota, fortemente baseada na que propôs Maimônides, há cinco etapas no processo de tshuvá:
  1. Reconhecimento do erro e da sua responsabilidade por ele. Aqui, a rabina Danya destaca que é fundamental ser o mais específico possível e indicar porque essa ação machucou outras pessoas. Pedidos genéricos de desculpas, sem indicar o motivo ou sem reconhecer nossa culpa não levam ao processo de tshuvá verdadeiro. Nas suas palavras: “Uma pessoa não pode se arrepender se não entender por que o que aconteceu é realmente um grande problema – por que a pessoa que foi magoada está realmente ferida.” O exercício de empatia, de reconhecer uma situação da perspectiva de outra pessoa, que não necessariamente tem os mesmos valores que você, e entender como tuas ações a machucaram não é trivial mas é profundamente necessário, como reconhecemos quando somos nós as vítimas da ofensa.
  2. Começar a mudar. Nas palavras de Maimônides: “O que é arrependimento completo? O [caso de] alguém que tinha o poder de repetir uma transgressão, mas se separou dela e não o fez porque se arrependeu” [4]. Mudar sempre é difícil. Carregamos conosco nossos vícios, nossas manias — nos acostumamos com eles, não queremos abrir mão de quem fomos até agora. No entanto, se não nos transformarmos, continuaremos tomando as mesmas decisões e cometendo os mesmos erros.  Não há processo verdadeiro de tshuvá sem uma mudança de algo significativo em quem somos. Na época de Maimônides, as ferramentas para esta etapa incluíam a reza em súplica, a doação financeira, colocar-se em situação de vulnerabilidade — como ir morar em outro lugar — para desinflar o ego e permitir que a mudança ocorresse. A rabina Danya propõe uma atualização desta lista, adicionando terapia, meditação, e se educando sobre os temas relacionados à ofensa para garantir uma compressão mais sofisticada e complexa do que está em jogo. 
  3. Restituição e Aceitação das Consequências. Maimônides listou cinco categorias nas quais a restituição deveria ser paga em casos de dano físico: pela ofensa em si mesma, pela dor, pelos custos médicos, pelo tempo sem trabalhar e pela humilhação.  Para cada uma destas categorias, poderíamos pensar qual sua melhor aplicação em cada caso. Se uma pessoa, em função de um ato causado por outro, perdeu a oportunidade de continuar na sua área profissional, por exemplo, a restituição pode incluir o custo de treiná-la em outra profissão, de tal forma que ela possa voltar a ter um emprego.
  4. Desculpas. Mesmo depois que uma pessoa fez “restituição da dívida monetária, ela é obrigada a apaziguar [a pessoa prejudicada] e implorar seu perdão. Mesmo que ela só tenha ofendido a outra pessoa verbalmente, ela deve apaziguar e implorar até que [a parte prejudicada] a perdoe.” De acordo com a rabina Danya, “um verdadeiro pedido de desculpas não se destina à pessoa que foi ferida, mas é dada em relação a ela. Requer vulnerabilidade e escuta empática; exige uma oferta sincera de arrependimento e tristeza por suas ações. Requer compreensão de quando aproximar-se de uma vítima pode prejudicá-las ainda mais e navegar por isso com sensibilidade. O objetivo não é fazer mais danos, mas fazer um trabalho que seja de cura, de reparação. Isso significa que as necessidades da vítima devem sempre estar no centro do processo.”
  5. Tomando decisões diferentes. O processo de tshuvá só está completo quando, apresentado com um contexto semelhante, tomamos decisões distintas. Somos frutos do hábito e, sem querer, tomamos decisões muito parecidas uma vez depois da outra. Mudar esta forma de agir exige intencionalidade e reconhecimento do impacto das nossas ações.
A rabina Sharon Brous, de cuja comunidade eu tive a honra de fazer parte em algum momento, sempre diz que o judaísmo é paradoxalmente exigente e otimista ao mesmo tempo. De um lado, nos aponta com frequência a necessidade de tshuvá, de transformação profunda; de outro, sempre acredita no nosso potencial de nos transformarmos e oferece inúmeras oportunidades para fazê-lo. Neste sentido, a rabina Danya cita Rav Nachman de Brestlav: “Se você acredita que pode causar danos, acredite que pode consertar. Se você acredita que pode machucar, acredite que pode curar.”

Que estas Grandes Festas sejam uma experiência transformadora para todos nós, individual e coletivamente e que em 5783 nos encontremos com a versão de nós mesmos que sempre sonhamos ser.

Shabat Shalom! Shaná Tová!


[1] Pinchas Pelo, “On Repentance: The Thought and Oral Discourses of Rabbi Joseph Dov Soloveitchik”, p. 75
[2] Deut. 30:1, 2, 3 (3x), 8, 9, 10
[4] On Repentance and Repair, p. 52/381 (e-book) 

terça-feira, 16 de agosto de 2022

A mudança tem que vir de todos!

O Sh’má é talvez a frase mais conhecida da liturgia judaica. De acordo com a tradição, ele é dito logo ao acordar e também ao se deitar; está entre as primeiras frases em hebaico que crianças judias aprendem e, muitas vezes, também a última frase pronunciada. Além da sua primeira frase, “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um” [1], muitos de nós decoramos também o primeiro parágrafo em hebraico e em português: “e amará Adonai teu Deus, com todo teu coração, toda a tua alma e toda a tua força….”. Estas duas passagens vêm da Torá e faziam parte da parashá da semana passada [2]. Nem todo mundo sabe, no entanto, que os dois capítulos subsequentes estão em outras passagens da Torá. O terceiro parágrafo [3], que fala do talit e do tsitsit como instrumentos que, ao olharmos para eles, nos recordam de cumprirmos as mitsvot, está no livro de baMidbar e o segundo parágrafo, que fala de punições e recompensas para quem segue as orientações Divinas está na parashá desta semana [4].

Para quem presta atenção nas traduções destas passagens e compara o conteúdo do primeiro e do segundo parágrafos, parece haver uma certa redundância entre as aberturas dos dois textos: “Ame Adonai, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com a tua força” inicia o texto do primeiro parágrafo; “se vocês realmente escutarem os Meus mandamentos, que hoje ordeno a vocês para amarem Adonai teu Deus, e servirem a [Deus] com todo o teu coração e de toda a tua alma” é a abertura do segundo. Os comentaristas não deixaram esta semelhança entre os textos passar despercebida. Rashi nota que, enquanto o comentário do primeiro parágrafo é formulado no singular, o do segundo parágrafo é dirigido a toda a comunidade. Considerando que o foco do segundo parágrafo é a forma como Deus responde quando a humanidade escuta (ou não) Suas palavras, Ramban explica que as respostas Divinas não vêm em resposta às nossas ações individuais, mas apenas às da maioria da sociedade.

O rabino Arthur Waskow escreveu uma interpretação do segundo parágrafo do Sh’má [5], no qual ele associa nosso comportamento com relação à natureza, nos relacionamentos interpessoais e com nossa própria ambição e cobiça à forma como o planeta, a vida, Deus nos tratam. Nas suas palavras, se continuarmos “cortando o mundo em partes e escolher partes para adorar – deuses de raça ou de nação, deuses da riqueza e do poder, deuses da ganância e do vício”, então continuaremos enfrentando crise climáticas cada vez mais graves e um clima de ódio que acabará consumindo nossa existência.

Como destacou Ramban, estas consequências negativas são resultado do nosso comportamento coletivo e as soluções devem ser também entendidas de forma ampla. É certo que cada um de nós precisa cuidar da forma como se relaciona com o meio ambiente e com as outras pessoas, mas precisamos também desenvolver mecanismos sociais que garantam que estes esforços não sejam de apenas algumas pessoas bem intencionadas, mas a nossa nova forma de viver. 

Quem sabe, da próxima vez que escutarmos o Sh’má e seus três parágrafos, começamos a vislumbrar como gerar esta mudança social profunda?

Shabat Shalom!



[1] Aqui outros significados possíveis destra frase: https://youtu.be/ZUKF3Y_TdrQ

[2] Deut. 6:4-9.

[3] Num. 16:37-41.

[4] Deut. 11:13-21.

[5] https://bit.ly/3Aw6T4z



sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Dvar Torá: As muitas cores do Sh´má Israel (CIP)


Eu já contei algumas vezes que, durante minha formação rabínica, estudei em duas escolas diferentes. Comecei estudando no Hebrew Union College, a instituição acadêmica do movimento reformista, no seu campus de Los Angeles, e conclui minha formação no Hebrew College, um seminário rabínico não vinculado a nenhum dos movimentos, na região de Boston.

Quando ainda estava estudando em Los Angeles, tive aula com o rabino Stephen Passamaneck, sobre quem eu já falei algumas vezes aqui. Além de dar aulas para alunos de rabinato, “Dr. P”, como os alunos carinhosamente o chamavam, era capelão do Departamento de Polícia de Los Angeles e ele costumava trazer sua arma para as aulas, deixando-a sobre a mesa, onde todos nós podíamos nos impressionar com ela. Vários alunos saíam da sala chorando devido a algum comentário ríspido que ele tinha feito e ele costumava se vangloriar de conseguir este feito. Mas apesar destas excentricidades, o que mais me marcou nos dois semestre em que estudei com “Dr. P” foi uma frase sua: “a Torá quer dizer o que os rabinos disseram que ela quer dizer”. Ou seja: como exercício intelectual podemos vasculhar o texto, virá-lo de um lado e de outro e tentar buscar qual o sentido original de cada frase, até de cada letra, do texto bíblico. Quando se trata das implicações do texto para a vida judaica contemporânea, no entanto, valem as interpretações dos rabinos que escreveram a Mishná, o Talmud, os midrashim, e os primeiros códigos da lei judaica. Gente que viveu há, pelo menos, oitocentos anos atrás.

Dr. P. certamente tinha razão em assuntos relacionados à lei e à prática judaicas. Não adianta ficar discutindo qual a intenção da Torá quando afirma 3 vezes que “não cozinhe o cabrito no leite de sua mãe.” A leitura rabínica de que este verso indica que não devemos misturar (não apenas não cozinhar) carne e leite (não apenas o cabrito no leite da mãe) se tornou tão disseminada na comunidade judaica que muitas vezes eu tenho dificuldade em mostrar para alunos que este não é, necessariamente, o sentido literal do texto.

Quando o tema em discussão pende mais para o teológico, no entanto, crescem as possibilidades de que gerações posteriores revisem o significado atribuído pelos sábios do passado. Uma das afirmações teológicas mais famosas de toda a Torá, está na parashá desta semana:

שמע ישראל, ה׳ אלוהינו, ה׳ אחד.
Sh'má, Israel, Adonai Elohêinu, Adonai Echad
Escuta, Israel, ה׳ é nosso Deus, ה׳ é um.

Se eu fizesse uma enquete sobre o que estas 6 palavras dizem, eu imagino que a maioria de vcs diriam que a entendem, que elas são a afirmação fundamental do monoteísmo judaico. No final das contas, as pessoas entendem que o Sh’má é uma forma judaica de dizer que existe apenas um Deus.

Será que é isso mesmo que o texto diz? Hoje eu quero explorar algumas possibilidades de interpretação deste texto fora da explicação mais comum e quero convidar cada um de vocês a reconsiderar seus possíveis significados. 

Rashi, o comentarista francês do século 11, cujas inserções de palavras no texto taquigráfico do Talmud se tornaram essenciais para a compreensão que temos daquela obra, acredita que o mesmo processo de enxerto de palavras precisa ser feito com o Sh’má. Para ele, “Escuta, Israel, ה׳ é nosso Deus, ה׳ é um” precisa ser entendido como: “Escuta, Israel, ה׳, que já é nosso Deus hoje, um dia será reconhecido como único no mundo todo” e ele termina seu comentário com uma frase que nós conhecemos do Aleinu: “בַּיּוֹם הַהוּא יִהְיֶה ה' אֶחָד וּשְׁמוֹ אֶחָד”, “baiom hahú, ihiyê Adonai echád, ush'mô echád“neste dia, ה׳ será reconhecido como único e seu nome será apenas um.”

O rabino Avraham Samuel Benjamin Sofer, que viveu na Hungria no século 19, perguntou por que o nome de Deus aparece duas vezes no Sh’má. Seria mais direto, ele argumentava, se o texto dissesse: “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus e é um.” Para ele, o objetivo de Moshé para esta citação dupla seria deixar claro que tudo em nossas vidas vem de Deus, nossos sucessos e nossos fracassos, os tempos em que temos muita sorte e aqueles nos quais tudo dá errado. Mesmo que tudo venha de Deus, a Torá nos instrui claramente a reconhecer o que é bom e o que é ruim, o que gera a vida e o que nos leva à morte, e a escolhermos o que é bom e a vida. [2]

O rabino Art Green parece concordar com essa ideia, mas vai além: “Escuta, Israel. O núcleo do nosso serviço não é uma reza, mas um chamado para nossos companheiros judeus e nossos companheiros humanos. Nele, declaramos que Deus é um — o que implica dizer que a humanidade é uma, que a vida é uma, que alegrias e sofrimentos são um — pois Deus é a força que une tudo isso. Não há nada óbvio sobre esta verdade, pois a vida como a vivemos parece infinitamente fragmentada. Os seres humanos parecem isolados uns dos outros, divididos por todos os medos e ódios que compõem a história humana. Os seres humanos parecem isolados uns dos outros, divididos por todos os medos e ódios que compõem a história humana. Mesmo em uma única vida, um momento parece separado do próximo, memórias de alegria e plenitude nos oferecem pouco consolo quando estamos deprimidos ou solitários. Afirmar que tudo é um em Deus é o nosso supremo ato de fé.” [3]

A teóloga feminista Judith Plaskow dá mais um passo nesta exploração do significado destas 6 letras: 
No nível mais simples, o Sh’má pode ser entendido como uma rejeição apaixonada do politeísmo. (…)

Essa compreensão do Sh'má, no entanto, não aborda a questão da unidade de Deus. Ela define “um” em oposição a “muitos”, mas nunca especifica realmente o que significa dizer que Deus / Adonai / Aquele que é-e-será é um. A unicidade de Deus é mera singularidade numérica? Significa simplesmente que, em vez de muitas forças governando o universo, existe apenas uma? (…)

Existe outra maneira de entender a unidade, no entanto, e isso é como inclusividade. Nas palavras de Marcia Falk, “A expressão autêntica de um monoteísmo autêntico não é uma singularidade de imagem, mas uma unidade abrangente de uma multiplicidade de imagens”. Em vez de ser a divindade principal no panteão, Deus inclui as qualidades e características de todo o panteão, sem nada do lado de fora. Deus é tudo em todos. Este é o Deus que “forma a luz e cria as trevas, que faz a paz e cria tudo”, porque não pode haver outro poder além de ou contrário a Deus, que poderia ser responsável pelo mal. Este é o Deus que é homem e mulher, ambos e nenhum deles, porque não existe gênero fora de Deus que não seja feito à imagem de Deus. Nesta compreensão da unidade, estender a gama de imagens que usamos para Deus nos desafia a encontrar Deus em aspectos da criação sempre renovados. O monoteísmo é sobre a capacidade de vislumbrar o Um nas formas mutáveis ​​dos muitos e através delas, para ver o todo em e através de suas imagens infinitas. “Ouçam, ó Israel”: apesar da natureza fraturada, dispersa e conflituosa de nossa experiência, há uma unidade que abraça e contém nossa diversidade e que conecta todas as coisas umas com as outras.” [4]
Marcia Falk, a poetisa-teóloga que teve a imensa chutspá de re-escrever o sidur inteiro, incluindo as passagens bíblicas, repaginou o Sh’má afirmando: 

 שְׁמַע, יִשׂרָאֵל: לָאֱלֹהוּת אַלְפַי פָּנִים, מְלֹא עוֹלָם שׁכִינָתָה, רִיבּוּי פָּנֶיהָ אֶחָד
Sh'má Israel, laElohut alfei panim, melô olám sh'chinatá, ribui panêia echád.
Escuta, Israel: O Divino está em abundância em toda parte e vive em tudo; os muitos são Um. [5]

É na visão de Marcia Falk que eu penso quando digo o Sh’má. Nela, reconhecemos a conexão que compartilhamos através de Deus, ao mesmo tempo em que identificamos a imensa diversidade em Deus. Como expressou o rabino o Joseph Soloveitchik, a referência fundamental da ortodoxia moderna norte-americana, “a luz branca do Divino é sempre refratada através do domo de realidade de vidros de muitas cores”.

Nesta véspera de Tu b’Av, do dia judaico do amor, celebramos todas as cores, todas as formas, todos os jeitos de amar — reconhecendo que o Divino habita em todas elas.

Shabat Shalom!

[1] Comentário de Rashi para Deut. 6:4 
[2] A Torah Commentary for Our Times, vol. 3, p. 110-111. 
[3] Ma’ayan Niguer (manuscrito), p. 12.
[4] My People’s Prayer Book, vol 1, p. 87-99.
[5] Marcia Falk, The Book of Blessings, p. 170-173.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Moshé é de Vênus, as tribos são de Marte

Eu li uma vez um livro cuja tese central é que homens e mulheres operam de acordo com modelos mentais distintos. Em um dos primeiros exemplos do livro, a esposa pergunta se eles podem ir visitar sua família no final de semana e o marido responde que eles podem, se ela quiser. Ela se ofende, entendendo que ele está tratando a questão como uma concessão a ela e ele não consegue entender por que ela está ofendida se ele concordou com o pedido que ela havia feito. Apesar das generalizações de gênero, os exemplos dados no livro eram interessantes para entender como pessoas cheias de boas intenções e sem motivos efetivos para discórdia podem entrar em conflito simplesmente por falhas de comunicação – porque operam de acordo com modelos mentais distintos e preenchem as lacunas em branco que toda comunicação tem, baseados em seus próprios pressupostos e não nos da pessoa com quem estão conversando. 

Na parashá desta semana, temos um destes exemplos de falha de comunicação que quase termina em um grande conflito. O povo de Israel está chegando à Terra Prometida e as tribos de Reuven e Gad abordam Moshé com uma proposta: como eles tinham bastante gado e tinham percebido que a terra ao leste do rio Jordão era adequada para a criação de animais, eles pediam para receber porções de terra neste território ao invés do território a oeste do Jordão, no qual eles estavam prestes a entrar.

A resposta de Moshé foi bastante forte em rejeitar a proposta. Assumindo que o pedido vinha acompanhado da intenção de não cruzar o rio Jordão com o resto do povo e, desta forma, não fazer parte dos esforços de guerra do qual todos esperavam que eles participassem, Moshé estabeleceu um paralelo entre a conduta das duas tribos e aquela dos dez enviados para investigar a terra que voltaram falando da impossibilidade de conquistarem o território que Deus havia lhes prometido e, desta forma, tinham convencido o povo de Israel que melhor seria morrer no deserto ou voltar para o Egito.

Em sua proposta, no entanto, as tribos de Reuven e Gad não se recusavam a marchar com as demais tribos e a ajudar a conquistar a terra de Israel. Seu pedido, como esclareceram na sequência, era para que, uma vez tendo conquistada toda a terra, que eles pudessem receber os territórios a leste do rio Jordão.

Muitas vezes cometemos este mesmo erro. Assumimos, sem perguntar, as motivações de outras pessoas ou a entonação incorreta para algumas expressões. Muitas vezes, uma vírgula mudaria completamente o significado de uma frase e, sem ter percebido isso, saímos agindo, acreditando que sabemos o que ela queria dizer. Certa vez perguntei a um amigo se ele tinha conseguido fazer algo que almejava muito mas que era difícil de conseguir. “Não foi por falta de oportunidade”, ele me respondeu. Vendo minha expressão de choque, ele se corrigiu: “Não foi, ‘vírgula’, por falta de oportunidade.”

Na pressa de hoje, com conversas corridas e mensagens instantâneas sem pontuação ou entonação, estas confusões têm se tornado ainda mais frequentes. Não temos mais tempo (nem os recursos) para percebermos que a razão da confusão pode ter sido a falta de uma vírgula, uma entonação mal interpretada ou até mesmo modelos mentais distintos. 

Qual a saída, então? Uma passagem famosa de Pirkei Avot, o tratado da Mishná conhecido como Ética dos Pais, nos orienta a “julgar todas as pessoas com uma presunção favorável”. Precisamos tomar mais cuidado com nossa comunicação… Na dúvida, o melhor é esclarecer o que queremos dizer; perguntar e ter certeza de que nossa interpretação está certa. Se os membros das tribos de Reuven e Gad tivessem se expressado de forma mais cuidadosa e se Moshé tivesse perguntado mais detalhes sobre os planos deles antes de explodir em fúria, o conflito teria sido evitado.

Nesta semana começamos o mês de Av, penúltimo do calendário judaico. Em breve, estaremos comemorando Rosh haShaná e Iom Kipur e nos dando conta de todas as transgressões que cometemos através das palavras. Que neste shabat, prestemos especial atenção ao como falamos e como escutamos, buscando aumentar a compreensão e diminuir as falhas de comunicação.

Shabat Shalom!


quinta-feira, 7 de julho de 2022

Fé e razão em equilíbrio

A partir da Hascalá, o Iluminismo Judaico, no final do século XVIII, estudiosos do judaísmo, em particular no mundo judaico liberal, passaram a buscar a racionalidade nas práticas religiosas e se afastar das explicações místicas, considerando-as supersticiosas ou baseadas em crendices. Este fenômeno atingiu seu ápice na metade do século passado, quando até mesmo o estudo de fontes místicas nos seminários rabínicos liberais não era visto com bons olhos. O rabino Abraham Joshua Heschel, cujos livros continuam nos inspirando e orientando décadas depois de sua morte, era um dos que insistia em ensinar estes textos apesar da resistência e dos olhares feios. Nos anos em que ele ensinou no JTS, a escola rabínica vinculada ao movimento Conservador em Nova York, ele tinha um pequeno grupo de alunos com quem estudava os textos chassídicos, cheios de mitologias e de perspectivas sobre as dinâmicas Divinas. Antes vistos como “estranhos”, estes discípulos de Heschel acabaram se tornando os grandes teólogos da geração seguinte. O rabino Art Green, com quem eu estudei, era um destes desbravadores que ousaram desafiar a perspectiva do que era o “judaísmo apropriado.” Além de Heschel, Martin Buber (que publicou contos sobre o mundo chassídico, cheios de perspectivas místicas) e Gershom Scholem (que estudou academicamente o misticismo judaico) ajudaram a resgatar perspectivas menos racionais às práticas judaicas.

A parashá desta semana, Chucat, tem uma destas passagens que será bem difícil explicar para quem busca explicação racional para tudo que está na Torá. O texto nos diz que o contato com um cadáver torna uma pessoa ritualmente impura e que a forma de recuperar a santidade ritual é através das cinzas de uma vaca vermelha sem qualquer defeito que havia sido abatida e queimada de acordo com o processo detalhado no texto.

Muito antes da Hascalá, este ritual já atraía a curiosidade dos comentaristas. Rabi Iochanan ben Zacai, que liderava o Sanhedrin na época da destruição do Segundo Templo, disse aos seus alunos que não havia qualquer explicação racional para ele, uma explicação (ou falta dela) compartilhada por vários outros sábios do Talmud e do Midrash. De acordo com outros comentaristas, entre eles Nachmanides e Nechama Leibowitz, o ritual pode não ter explicação racional, mas sua utilidade está em deixar claro para os judeus que a proximidade com cadáveres não é bem vista, em particular tendo em vista práticas de outras religiões nas quais estes corpos são adorados.

Há momentos em que o racionalismo judaico nos serve muito bem e outros nos quais precisamos reconhecer que não temos controle sobre tudo e que alguns assuntos ficam melhor se não forem explicados completamente. Práticas relacionadas à morte, em particular, exercem um fascínio sobre nós. Mesmo pessoas que têm pouquíssima afinidade com a religião buscam práticas religiosas quando falece alguém muito próximo e têm dúvidas sobre o que acontece quando alguém morre. Quando estas perguntas são feitas a mim, costumo dizer que há inúmeras respostas judaicas diferentes sobre o que acontece depois da morte e que o que cada um de nós acredita é resultado tanto do que o judaísmo tem a ensinar quanto da fé. Não devemos ter vergonha em reconhecer que algumas crenças não tem base racional e que são fundamentadas unicamente na fé.

Que consigamos encontrar o equilíbrio e construir juntos perspectivas judaicas que permitam que mantenhamos nosso intelecto ativo quando tratamos de temas religiosos ao mesmo tempo em que deixa espaço para a fé em nossa vida interior.


Shabat Shalom!


sexta-feira, 1 de julho de 2022

Dvar Torá: Menos certezas e narrativas mais diversas (CIP)


Eu tenho um péssimo hábito de iniciar a leitura de vários livros ao mesmo tempo. Nestes tempos de livros eletrônicos, este péssimo hábito nem tem mais a consequência de gerar uma pilha física na mesa de cabeceira que, em algum momento se torna instável e nos força a terminar os livros que tínhamos iniciado antes de começar um novo.

Por que, então, eu digo “péssimo hábito”? Porque muitas vezes me toma meses, até anos para terminar os livros. Vou começando um, dois, três, dez e acabou não encerrando as leituras que comecei. Quando resolvo voltar e terminar de lê-los já esqueci do que eles falavam e preciso voltar muitas páginas para voltar a estar a par da narrativa.

Um desses muito livros cuja leitura eu comecei mas ainda não terminei é A Guerra do Paraguai, de Luiz Octavio Lima. Quando eu estava estudando o assunto na escola, ainda na década de 80, aprendíamos sobre um processo de revisão histórica em curso no Brasil. Na época dos meus pais, eles tinham aprendido que Solano Lopez, o líder do Paraguai na época da guerra, era um ditador expansionista que queria dominar a América do Sul e que o Duque de Caxias tinha sido um herói da guerra. Já na época em que eu estava estudando, aprendíamos que Solano Lopez era um líder carismático e desenvolvimentista, que queria que o Paraguai se tornasse uma referência industrial na América do Sul, o que tinha gerado estranhamento com a Inglaterra, país do qual o continente comprava a maior parte de seus produtos manufaturados. Os ingleses, então, teriam convencido Brasil, Argentina e Uruguai a se aliarem e declararem guerra ao Paraguai de Solano Lopes. Além de um Paraguai completamente destruído, a guerra teria deixado uma imensa dívida pública dos países aliados com o Império Britânico. Desta forma, os ingleses teriam sido os verdadeiros vencedores da guerra: tinham eliminado um concorrente comercial e passaram a cobrar altos juros na dívida contraída por Brasil, Argentina e Uruguai. O efeito da guerra sobre o Paraguai era descrito quase como um genocídio: a brutalidade das forças aliadas tinham dizimado a população paraguaia, especialmente seus homens e sendo um fator determinando para o atraso econômico do qual nosso país vizinho sofre até hoje.

No livro de Luiz Octavio Lima, a situação apresentada é bem mais complexa. Solano Lopez é apresentado como uma playboy mulherengo, filho da elite, mas que de fato tinha sonhos de modernizar seu país e que toma medidas neste sentido. No entanto, ele acaba se envolvendo em disputas geo-políticas dos países vizinhos e apoia as facções que saem perdendo destas disputas, gerando inimigos que passaram a ocupar o poder, especialmente na Argentina e no Uruguai. A influência inglesa sobre os países aliados, uma tese que havia sido defendida pela Grande Enciclopédia Soviética, é refutada, dado que não existe qualquer evidência documental que a sustente. O efeito nefasto da guerra sobre a população paraguaia e sua economia, por outro lado, foram confirmados.

Na época dos meus pais, o Duque de Caxias era um herói nacional gigante, sobre quem ninguém podia levantar qualquer crítica; quando eu estudei o assunto, apesar de meus professores não usarem este termo, ele era apresentado praticamente como um criminoso de guerra. A visão histórica apresentada hoje é mais complexa: um brilhante estrategista militar que cometeu excessos na guerra.

Assim são, muitas vezes, as narrativas: cheias de cores e de adjetivos, mas nem sempre preocupadas em refletir toda a complexidade de cada situação. Para isso, precisamos considerar as múltiplas narrativas de um mesmo evento, como se fossem os distintos pontos de vista que precisamos ter para construir uma imagem tri-dimensional.

Eu sempre fico pensando em como as narrativas são limitadas e militantes por um determinado ponto de vista quando leio a parashá desta semana, Côrach, e os comentários a respeito dela.

Só pra recordar: Côrach liderou uma rebelião contra Moshé e Aharón da qual participaram 250 líderes da comunidade. Seu questionamento, aparentemente era por mais democracia: “toda a comunidade é santa, todos eles, e Adonai está entre eles. Por que, então, vocês se elevam acima da congregação de Adonai?” [1] Em resposta a esta rebelião, Deus abriu o chão do deserto abriu sua boca e engoliu Côrach, tua sua gente e suas posses e um fogo de Deus consumiu os 250 líderes que tinham se juntado à sua causa.

Levando em conta que, pela Torá, Deus claramente tinha considerado a rebelião de Côrach infundada ou algo pior, os comentaristas se esforçaram para encontrar argumentos que justificassem o rigor da punição Divina. Um midrash [2] diz que Côrach seduziu o povo com seu discurso populista, argumentando que o poder que ele buscava era para o povo e não para sua própria honra; outros midrashim apresentam Côrach como alguém que manipulava os textos da Torá com sabedoria mas com má intenção, fazendo pouco caso das regras estabelecidas por Deus através de Moshé. Até bem recentemente, eram bem difícil encontrar alguém que mostrasse qualquer empatia pelas posições de Côrach. Uma exceção foi o mestre chassídico Meshulam Feivush Heller de Zbarazh. De acordo com ele, Côrach realmente acreditava que ele agia sem ser guiado pelo ego e que Moshé era quem buscava o engrandecimento pessoal, ainda que na verdade os papeis estavam trocados [3]. Ou seja: ele continua com uma análise crítica de Côrach, mas atribui seus erros à sua inocência, não à malícia. Como comentarista de um jogo cujo resultado eles já conhecem, estes comentaristas partem da premissa de que a punição era justificada e que tudo que lhes resta é desvendar seu motivo.

Recentemente, no entanto, alguns comentaristas começaram a quebrar este consenso e a enxergar em Côrach, um líder que, de fato, queria reformar a estrutura de poder dos israelitas no deserto. Para eles, nenhum dos argumentos apresentados para a culpa de Côrach se justifica pelo texto bíblico e não passam de tentativas de apologia, de justificar uma atitude Divina injustificável.

Neste jogo das narrativas, cada lado tem abordado a questão com a conclusão pré-definida e a argumentação, não como uma busca sincera de para onde apontam os melhores argumentos, mas como um exercício retórico de tentar criar uma leitura da realidade que embase sua posição. Esta conduta não é recente — em Pirkei Avot, a disputa de Côrach é apresentada como exemplo paradigmático de uma disputa que não tem objetivos puros, enquanto a disputa entre Hilel e Shamai é apresentada como seu contraponto. A análise histórica, no entanto, nos mostra que a visão de romântica de um debate sempre respeitoso entre Hilel e Shamai não bate com a realidade e é uma visão rabínica posterior, com o objetivo de suavizar a violência que algumas vezes caracterizou o embate entre estas duas escolas de pensamento judaico. Da mesma forma, quem sabe, a disputa representada por Côrach pode não ter sido assim tão ruim?!

Quando pré-definimos nossa posição e só buscamos os argumentos que a confirmam, corremos o sério risco de sermos enganados por nossa própria sagacidade e nos convencermos de que Fulgêncio Batista era o pior vilão da história latino-americana ou que o a Inglaterra manipulou as pobres nações aliadas para atingir seus objetivos sórdidos.

O teólogo russo Vladimir Lossky certa vez disse “Não há nada mais perigoso, mais contrário à verdadeira teologia do que a clareza superficial às custas da análise profunda.” Ainda que sua área não seja a teologia, a análise de  Luiz Octavio Lima para a Guerra do Paraguai demonstra que o mesmo conceito se aplica a outras áreas do conhecimento e da vida.

Neste ano de eleições e de narrativas polarizadas, em que cada lado nos apresenta sua versão simples, clara e tendenciosa da realidade, não aceitemos a clareza representada pelas análises fáceis e superficiais só pela preguiça de investigarmos mais e entendermos a complexidade e importância dos assuntos à nossa frente. Que tenhamos a coragem de contestar até o senso comum para tomarmos decisões das quais nos orgulhemos e que possamos continuar nos orgulhando mesmo quando a revisitarmos depois de conhecermos suas consequências.

Shabat Shalom,


[1] Num. 16:3
[2] baMidbar Rabá 18:10
[3] Speaking Torah, vol. 2, p. 33