sexta-feira, 20 de maio de 2022

Dvar Torá: O Judaísmo Fora da Caverna (CIP)


Pois, é…. quem diria?! Já estamos no dia 35 da contagem do Omer! Mas o que é, afinal de contas, a contagem do Omer???

Esta semana eu estava dando uma aula sobre a contagem do Omer e nós começamos a contar as camadas históricas que iam se acumulando na minha explicação, quase sem que eu me desse conta…

A contagem do Omer é um período de 49 dias que vai do 2º dia de Pessach até a véspera de Shavuot. Em tempos bíblicos, era um período agrícola que correspondia à colheita dos grãos. Por isso, em cada dia deste período era oferecido uma quantidade de cevada em sacrifício a Deus. Essa quantidade, um pouco mais de 3,5 litros [1], era chamada de Omer, daí o nome do período. Então, nesta época, o período do Omer estava associado à colheita dos grãos.

Mas a época em que a colheita acontecia: entre Pessach — a festa da libertação de Mitsrayim — e Shavuot — a festa que os rabinos associaram à entrega da Torá no Monte Sinai — deu um significado adicional a este período. Recém libertados da servidão mas sem terem ainda encontrado o Divino no Monte Sinai e recebido a Torá, os hebreus viviam um período de alegria, de expectativa, de incertezas, até de medo. Eu fiquei pensando bastante este ano no que seria o equivalente moderno deste período e o melhor que consegui chegar foi a gravidez — já sabendo que há um bebê caminho e torcendo para que tudo dê certo, mas sem ter certeza de como o processo irá se desenvolver, novos pais passam por muitas destas mesmas emoções: excitação, expectativa, ansiedade e medo.

Perto de 14 séculos depois da saída de Mistrayim, uma nova camada histórica adiciona contexto ao significado da contagem do Omer hoje em dia. Por volta do ano 135 E.C. e, de acordo com o Talmud, 24 mil alunos de Rabi Akiva faleceram por não se tratarem com respeito. A leitura tradicional deste episódio é que uma praga acometeu os discípulos de rabi Akiva mas desde o século 19 e, em particular a partir do Movimento Sionista, ganhou força o entendimento de que os discípulos de rabi Akiva estavam envolvidos na revolta de Bar Kochba contra os romanos e que a morte deles está associada à forma brutal como as tropas romanas responderam à revolta. De acordo com algumas versões, as mortes terminaram no 33º dia do Omer; de acordo com outras versões, elas foram interrompidas no 33º dia, mas recomeçaram na sequência e continuaram até o 49º dia da contagem. Por causa da perda de vidas e de tradições judaicas representas pela morte de 24.000 estudiosos da Torá, foi determinado que o Omer fosse um período de semi-luto, no qual não realizamos celebrações — exceto pelo 33º dia, que nós chamamos de LaG baOmer [2]. Se hoje acabamos de entrar no 35º dia da contagem, fica claro que 5ª feira foi LaG baOmer.

Uma outra camada histórica desta data chega depois de outros 14 séculos. No século 16, na cidade de Tsfat, o rabino Itschac Luria determinou que LaG baOmer era o aniversário do falecimento de Rabi Shim’on Bar Iochai, que é tradicionalmente entendido como o autor do Zohar, a obra fundamental da Cabalá, o misticismo judaico.

Aqui começam as brincadeiras com o hebraico e como elas levaram às principais tradições de LaG baOmer. Zohar, em hebraico, significa “brilho” e daí veio a tradição de comemorar a vida de Rashbi dançando ao redor da luz da fogueira. Além disso, conta a lenda que durante sua vida nunca houve um arco-íris no céu — arco íris em hebraico é keshet; o arco de arco e flecha também é keshet. Então, brinca-se com arco e flecha ao redor da fogueira.

Quando o período do Omer passou a ser associado à revolta de Bar Kochbá, a tradição de dançar com arco e flecha ao redor da fogueira ganhou ares de acampamento militar na luta contra a opressão romana, mas esta não é necessariamente a origem destes costumes.

Rabi Shim’on Bar Iochai pertencia à geração de discípulos de rabi Akiva que foram treinados após a morte dos 24.000 alunos. De acordo com o Talmud [3], Rashbi tinha ofendido as autoridades romanas e, por isso, ele e seu filho tiveram sua morte decretada. Primeiro, eles se esconderam no Beit Midrash, a Academia Rabínica. Depois, com medo de que as autoridades os descobrissem lá, encontraram uma caverna e lá se esconderam. Um milagre garantiu que uma árvore de alfarroba crescesse na entrada da caverna, garantindo sobra, comida e bebida para pai e filho. Depois de doze anos escondidos na caverna, estudando Torá e crescendo em conhecimento e espiritualidade, eles receberam o recado de que o imperador havia morrido e o decreto de morte contra eles cancelado.

Rashbi e seu filho saíram da caverna e viram uma pessoa semeando e plantando. O pai disse, em tom de reprovação: “estas pessoas abandonam a vida eterna e se engajam com a vida no seu momento.” De acordo com o Talmud [4], todo lugar ao qual eles direcionavam seu olhar pegava fogo. Uma voz Divina lhes disse: “vocês saíram da caverna para destruir o Meu mundo?!? Voltem para a caverna!” Eles voltaram e ficaram lá mais 12 meses até que foram novamente autorizados a sair.

Para Rabi Shimon bar Iochai e seu filho, rabi Elazar, tudo que importava era o conhecimento e o seu próprio crescimento espiritual. Eles tratavam com desdém as atividades concretas neste mundo: o plantar e semear e colher e preparar o solo, o construir pontes e trocar fraldas e preparar o jantar e distribuir comida e cobertores e abraços e sorrisos a moradores de rua. Para eles, nada disso importava porque eles não conseguiam perceber a profunda transformação espiritual que pode vir destes atos cotidianos; para eles não era claro como muitas destas ações despertam a chama divina que brilha em cada um de nós. 

Pessoalmente, eu sou um apaixonado pelos rituais judaicos — só para falar dos rituais de 6ª feira: eu me emociono com as melodias e adoro repartir com meus filhos a chalá de chocolate quentinha depois de tê-los abençoado, um ritual que eles adoram e no qual insistem em me abençoar também. Eu vejo muita gente na nossa comunidade encontrando abrigo e acolhimento nestes momentos rituais e, como rabino, eu procuro propiciar e encorajar que eles aconteçam.

E, ao mesmo tempo, para mim é claro que o judaísmo, seus rituais, valores e tradições, tem que servir como uma lente através da qual nos relacionamos com o mundo, como interagimos com ele, nunca como um muro que nos separe do mundo. Na história de Shimon Bar Iochai, o Divino reconheceu que um engrandecimento espiritual que venha através do desprezo pelo mundo não tem espaço, tem que voltar para a caverna. Ou nas palavras do rabino e ativista Abraham Joshua Heschel, “Você não pode adorar Deus e depois olhar para um ser humano, criado por Deus à Sua própria imagem, como se ele ou ela fosse um cavalo”. [5]

Neste ano, LaG baOmer caiu na noite historicamente mais fria de maio em todos os registros da cidade de São Paulo. Quem anda pelas ruas não consegue deixar de se impressionar com a crescente quantidade de pessoas vivendo nas calçadas. Famílias inteiras que vivem nas ruas desprotegidas, desidratando sob o calor do verão, encharcadas nos temporais que esta cidade conhece tão bem, desesperadas no frio quando é ele que chega. De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo (SMADS), o número de pessoas vivendo nas ruas de São Paulo aumentou 31% entre 2019 e 2021, chegando a cerca de  32.000 pessoas. [6]

Levar a tradição judaica a sério tem que, de alguma forma, implicar levar também esta situação a sério. É agir para transformá-la oferecendo soluções emergenciais frente à fome, ao frio e às doenças e também soluções estruturais que garantam que os cidadãos das nossas cidades possam viver com dignidade, com um teto sobre suas cabeças, comida nas suas mesas e um futuro para o qual almejar.

A CIP tem diversas iniciativas focadas neste universo. O Lar das Crianças atende quase 500 crianças e suas famílias em situação de vulnerabilidade social; grupos da área de jovens adultos, o MOV 20:35 têm projetos que lidam diretamente como a dignidade de moradores de rua e um cursinho popular que oferece oportunidades a jovens que não tiveram o privilégio de cursar escolas particulares de também sonharem e construírem seu futuro. Outras iniciativas da comunidade judaica tem ajudado os segmentos mais vulneráveis da nossa sociedade. A Unibes está em campanha pelo Inverno Solidário; a FISESP sempre organiza a campanha do agasalho; o Ten Yad oferece refeições a pessoas de baixa renda.

Procure uma forma de participar você também. Se sensibilize, quando andar pelas ruas, não vire o olhar quando passar por alguém vivendo na calçada. Muitas vezes, um sorriso e o reconhecimento da dignidade daquela pessoa contam quase tanto quanto um prato de comida quente.

O judaísmo nos ensina a buscar nosso crescimento espiritual e também a plantar e semear. Esses são os dias em que o mundo grita pela nossa participação — e é nosso dever escutar seu chamado e não voltar para a caverna.

Shabat Shalom



[3] Talmud Bavli Shabat 33b -34a
[4] Talmud Bavli Shabat 33b
[5] https://voicesofdemocracy.umd.edu/heschel-religion-and-race-speech-text/
[6] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-01/populacao-de-rua-cresceu-31-em-dois-anos-indica-censo


quinta-feira, 19 de maio de 2022

Transformando valores em ações

É interessante ver como, às vezes, conseguimos todos concordar com relação a alguns grandes ideais (ou algumas palavras vagas) apesar de apresentarmos profundas discordâncias com relação aos detalhes destes conceitos (ou, por outro lado, nunca termos parado para pensar que detalhes seriam estes). Há um incentivo perverso nestas situações a nos mantermos nestes lugares comuns sobre os quais concordamos e não detalharmos o que eles significam, “para não criar discórdia”

Há alguns anos, por exemplo, fui convidado a participar de um evento inter-religioso que seria centrado ao redor de três palavras: “vida”, “família” e “paz”. À primeira vista parecia uma excelente ideia, quem poderia ser contra estes três conceitos?! Quando começamos a conversar mais sobre cada um deles, no entanto, percebi que meu entendimento era diametralmente oposto àquele das pessoas que estavam me convidando. Mesmo ideias aparentemente bem definidas como vida, família e paz podem esconder interpretações subjetivas e nada consensuais. Delicadamente, declinei o convite mas nunca esqueci daquela situação.

“Vida”, “família” e “paz” são valores fundamentais da tradição judaica, quando eles têm significados específicos, não em qualquer definição possível. Da forma análoga, a questão da “Justiça” é também valor central e que, por isso, não fica restrito a afirmações genéricas do tipo “você deve buscar a mais absoluta forma de justiça” [1], mas estabelecendo abordagens concretas com relação ao estabelecimento de um sistema judicial honesto, que não favoreça nem os poderosos nem os oprimidos [2].

A discussão da responsabilidade social judaica, seja com relação ao meio-ambiente ou com outras pessoas, também pode levar a falsos consensos a menos que esteja baseada em políticas concretas. Na parashá desta semana (beHar), encontramos mecanismos concretos de tornar estas responsabilidades efetivas. A Torá não se limita a compromissos genéricos com a justiça ambiental: estabelece que a terra deve descansar completamente a cada sete anos, permitindo que se regenere antes de voltar a produzir. Da mesma forma, nossa parashá vai além do desejo de que uma sociedade justa e igualitária se estabelecesse entre os israelitas: cria a regra de que o acúmulo de terras seria cancelado a cada cinquenta anos, retornando à distribuição original, como definida quando o povo entrou na terra de Israel pela primeira vez. 

Quantos de nós podemos dizer que agimos de forma semelhante à prescrita pela Torá na passagem desta semana? Me parece que muitas vezes afirmamos nossa simpatia por conceitos abstratos exatamente porque sabemos que eles não terão qualquer impacto na vida que levamos, que não nos forçarão a mudar em nada o que já fazemos. Por exemplo, manifestamos nossa preocupação com o meio ambiente ao mesmo tempo em que não mudamos nossos hábitos de consumo; expressamos o sonho de uma sociedade menos injusta mas não nos mostramos dispostos a abrir mão dos privilégios de que desfrutamos. E, assim, em muitas outras situações nos manifestamos comprometidos com algumas causas sem fazermos qualquer esforço para avançá-las de fato.

Que a parashá desta semana nos ajude a alinhar nossas ações, nossos anseios e nossas palavras, dando concretude aos valores judaicos que dizemos defender.

Shabat Shalom, 


[1] Deut. 16:20

[2[ Por ex.:  Deut. 16:18-19; Ex. 23:1-3


sexta-feira, 29 de abril de 2022

Dvar Torá: Entre criatividade e arrogância (CIP)


Entre os muitos hábitos que eu tinha na juventude e que meus pais esperavam que eu abandonasse quando envelhecesse está o gosto musical — que, para desespero deles e dos meus filhos, inclui cantores e conjuntos fora do consenso musical. Por exemplo, eu adoro releituras de músicas bregas — Marisa Orth e a Banda Vexame faziam um trabalho lindo nesse sentido; mais recentemente, Nando Reis e Nila Branco também dedicaram álbuns a este tipo de trabalho. Outro tipo de música que eu gosto fora do mainstream é o que se convencionou chamar de Vanguarda Paulista, um movimento musical que incluía nomes como os de Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premeditando o Breque e o Língua de Trapo. Ainda hoje, tenho dificuldade para no Metrô, ver os nomes dos bairros de São Paulo refletidos nos nomes das estações não começar a cantarolar:

Chora Menino, Freguesia do Ó
Carandiru, Mandaqui, aqui
Vila Sônia, Vila Ema, Vila Alpina
Vila Carrão, Morumbi, pare
Butantã, Utinga, Embu e Imirim
Brás, Brás, Belém
Bom Retiro
Barra Funda
Ermelino Matarazzo, Mooca, Penha, Lapa, Sé
Jabaquara
Pirituba
Tucuruvi, Tatuapé. [1]

Essas bandas eram conhecidas por um estilo musical MUITO eclético, que misturava muitos gêneros diferentes e sempre com grande dose de humor. No álbum mais famoso do Língua de Trapo, que tem o nome da própria banda, uma vinheta de humor no meio do álbum trazia o seguinte diálogo:

– Seu nome, por favor?
– Inês
– Inês, você conhece o grupo Língua de Trapo?
– Não.
– E o que você acha deles?
– Uma porcaria.

Parece piada e foi incluído no álbum, eu tenho certeza, como piada, mas a triste verdade é que esta vinheta descreve de forma bastante acurada o que estamos vivendo. Temos opinião sobre TUDO. Opinião sobre o que conhecemos e, especialmente, opinião sobre aquilo sobre o qual não temos o mínimo conhecimento. 

Nós últimos anos, este fenômeno tem se acentuado, com uma certa valorização da falta de conhecimento. Se um dispositivo eletrônico tiver sido desenvolvido por alguém que não tinha formação na área, ganha crédito; se um remédio tiver sido criado por alguém que não é médico nem farmacêutico, ainda melhor. Ao invés de valorizarmos o conhecimento e uma atitude de humildade frente a ele, chegamos a um estado de coisas em que a arrogância ignorante é que é valorizada.

Fiquei pensando nesta realidade quando li o comentário de Dena Weiss. coordenadora do Beit Midrash do Instituto Hadar, em Nova York, para a parashá desta semana [2].

Há mais ou menos um mês, em parashat Shmini, lemos sobre o fogo estranho, אש זרה, esh zará, que os filhos de Aharon, Nadav e Avihu, ofereceram a Deus na inauguração do Mishcán e como de forma pouco compreensível um fogo Divino os consumiu. [3]

Preciso confessar que tenho certa dificuldade com esta passagem. Em parte, ela parece justificar uma atitude hiper-conservadora com relação à prática religiosa, na qual apenas o que já tiver sido estabelecido é aceito. Qualquer inovação corre o risco de incitar a fúria Divina e nos ver consumidos pelo fogo. Qualquer espaço para a espontaneidade, ficaria desta forma, inviabilizado pelo texto bíblico. Para mim, no entanto, a prática religiosa floresce na manifestação genuína, naquilo que a tradição chama de “cavaná”, da ação motivada pela intenção dos nossos corações — ainda que em espaços delimitados por “keva” a formulação tradicional da prática religiosa. Por isso, o episódio de Nadav e Avihu consumidos pelo fogo sempre trouxe consigo bastante desconforto. 

Agora, nossa parashá literalmente retoma aquele episódio, nos contando o que aconteceu na sua sequência. Moshé recebe as instruções que deve passar a Aharón depois da morte de seus filhos:

A primeira instrução é que Aharón não pode entrar na parte mais sagrada do Mishcán quando quiser, mas apenas em Iom Kipur, seguindo instruções muito específicas. A segunda instrução é com relação ao ritual dos dois bodes a serem oferecidos em Iom Kipur: um quer será sacrificado para Deus e outro que será enviado ao deserto.

Dena Weiss buscou a ligação entre a morte de Nadav e Avihu e a proibição de entrar no קודש הקודשים, kodesh hakodashim, o lugar mais sagrado do Tabernáculo. Na sua leitura, a transgressão de Nadav e Avihu não estava na oferta que eles haviam trazido sem instrução prévia, mas no fato de que não tinham respeitado o espaço mais íntimo que o Divino tinha estabelecido no Santuário. Quantas vezes não sentimos nossos espaços pessoais ou profissionais invadidos; algumas vezes levando a sensações de termos sido profundamente desrespeitados? Se nos sentimos assim, podemos imaginar que o Divino, que inaugurava o espaço de sua morada entre os Hebreus, reagiria também com indignação frente à violação do seu espaço.

Dena Weiss também nos mostra que, de acordo com a literatura rabínica, esta era uma prática na qual Nadav e Avihu já tinham se engajado antes. Quando Deus convoca Moshé para subir ao Monte Sinai e receber as duas Tábuas do Pacto, o acompanharam Aharón, setenta anciãos, Nadav e Avihu. Naquela situação, de acordo com o midrash, eles já teriam agido de forma desrespeitosa com relação ao Divino, comendo sua refeição enquanto olhavam para a face de Deus. Dena Weiss continua: “A atitude de arrogância e privilégio de Nadav e Avihu não apenas se manifestou como grosseria para com Deus; também foi expresso em uma abordagem chocantemente superior que eles adotaram em relação a outras pessoas.”

Nadav e Avihu se comportavam como se seu status lhes conferisse direitos especiais sem que eles precisassem seguir regras, conhecer os parâmetros. Eles não precisariam adquirir conhecimento, nem construir pessoalmente sua relação com Deus. Seu pai era o Sumo Sacerdote; seu tio era Moshé. Como algo poderia lhes ser negado?!

Nas palavras de Dena Weiss: “(…) o pecado de Nadav e Avihu (…) corresponde à pior parte de nós mesmos. Eles não refletem apenas nosso desejo virtuoso de dar; também refletem nosso desejo egoísta de possuir o que não é nosso por direito. Um exame mais detalhado de seu pecado revela que Nadav e Avihu não estavam sendo atenciosos – exatamente o oposto: eles agiam sem consideração, eram descuidados e desrespeitosos. Sua ação demonstrou que eles pensavam que tudo era deles para dar, o que mal mascara sua compreensão de que tudo também é deles para receber. Em sua abordagem, o mundo e tudo nele pertence a eles.”

Quantas vezes não agimos como Nadav e Avihu, acreditando que nossos privilégios nos abrem todas as portas sem esforço? Que nossa cor, nosso pertencimento comunitário, nossa idade, nosso status sócio-econômico, nossa relação com pessoas em posição de poder , que todos estes fatores nos deveriam conferir um tratamento diferenciado, um reconhecimento da pessoa iluminada que imaginamos ser — mesmo que não tenhamos feito por merecer, mesmo que não tenhamos ainda conquistado estas distinções….

Que nesse shabat consigamos deixar a humildade nos conduzir, escutando antes de falar, estudando e considerando antes de emitir opiniões infundadas, considerando o contexto e a comunidade antes de definirmos nossas ações de forma isolada.

Shabat Shalom,



sexta-feira, 15 de abril de 2022

Dvar Torá: A Tradição que ganha vida hoje (CIP)


A primeira professora que eu tive no meu processo de formação rabínica foi Rachel Adler. De vez em quando, no meio de uma aula ou de outra, ela soltava comentários sobre sua jornada pessoal. Crescida em uma família judia reformista, ela adotou um estilo de vida ortodoxo quando se casou com um rabino ortodoxo aos 21 anos. [1] Neste período, ela se estabeleceu como uma influente líder do movimento feminista ortodoxo. Com o tempo, no entanto, sua militância feminista a levou por caminhos distantes da ortodoxia. Ela se divorciou, se re-aproximou do Judaísmo Reformista da sua juventude, completou um doutorado em Teologia Judaica e se formou rabina  aos 69 anos. Em um artigo comovente que ela escreveu nesta nova fase [2], ela reclama que artigos que ela escreveu quando pertencia à ortodoxia continuam influenciando novas gerações feministas ortodoxas, apesar de que ela mesma não acredita mais naquelas palavras. “Algumas vezes,” ela escreveu, “não podemos nos repetir. Podemos apenas nos transformar.”

Já aconteceu com vocês dizerem ou escreverem algo do qual se arrependem, mas as pessoas continuam te procurando porque concordam com a sua antiga posição?!  Comigo QUASE aconteceu….

Deve fazer uns trinta e cinco anos… estávamos no colegial e, junto com um grupo de amigos, organizamos um sêder de Pessach do Grêmio para os alunos da escola. Eu escrevi um texto de abertura para nossa comemoração que tomava como ponto de partida a ideia de 

בְּכָל דּוֹר וָדוֹר חַיָּב אָדָם לִרְאוֹת אֶת עַצְמוֹ כְּאִלוּ הוּא יָצָא מִמִּצְרַיִם, 
שֶׁנֶּאֱמַר: "וְהִגַּדְתָּ לְבִנְךָ בַּיוֹם הַהוּא לֵאמֹר: בַּעֲבוּר זֶה עָשָׂה יְיָ לִי בְּצֵאתִי מִמִּצְרָיִם"
Em toda geração, toda pessoa é obrigada a ver a si mesma como se ela mesma tivesse saído de Mitsrayim, assim como está escrito: “conte ao teu filho naquele dia, dizendo: ‘é pelo que Deus fez por mim quando eu saí de Mitsrayim.’”

No texto que eu escrevi na minha adolescência, o tom que eu adotava me alinhava com a abordagem lacrimosa para a história judaica, enxergando-a como uma série de perseguições e desastres, que tinham transformado aquele conceito em uma maldição.

A verdade é que, diferentemente do que aconteceu com a Rachel Adler, provavelmente ninguém além de mim se lembra daquele sêder e muito menos do meu texto de abertura… mas minha visão da história judaica mudou desde aquela época.

O que não mudou foi o entendimento de que a parte paradoxalmente mais importante e mais difícil do sêder de Pessach é fazer com quem cada um de nós se sinta realmente sendo libertado hoje à noite. Em geral, cantaremos músicas que já conhecemos, leremos poemas e histórias que já sabemos de cor, desfrutaremos comidas que nos transportam para sedarim de outros tempos, com pessoas muito queridas que já não estão mais, — e tudo isso cria ritual, gera continuidade, leva a memórias afetivas que vão nos acompanhar pra sempre. Tudo muito bom — mas na contramão de nos percebermos, neste ano, neste momento, libertados.

O rabino Arthur Waskow conta que para ele tudo mudou no sêder de 1968, o ano em que Martin Luuther King Jr. foi assassinado uma semana antes de Pessach. Naquele sêder, em Washington, com tropas federais ocupando os bairros negros para evitar distúrbios, as coisas começaram a mudar para ele. Em suas próprias palavras:
Em algum lugar dentro de mim, mais profundo que meu cérebro ou respiração, meu sangue começou a cantar: "Este é o exército do faraó e estou voltando para casa para fazer o sêder” (…) Sim, nas ruas está o exército do faraó e estou voltando para casa para fazer o sêder. De novo, não! Nunca mais uma bolha no tempo. Nunca mais uma recitação ritual antes da vida real, da refeição real, da conversa real.

Pois naquela noite, a própria Hagadá, a Contação da nossa escravidão e da nossa liberdade, tornou-se a verdadeira conversa sobre nossa vida real. Os alimentos rituais, a amargura da erva amarga, o pão pressionado pela opressão de todos, o vinho da alegria na luta, tornaram-se a verdadeira refeição.

Pela primeira vez, paramos no meio do próprio Maguid, para conectar as ruas com o sêder. Todo ano, desde que aprendi a ler, recitava a passagem que diz: "Em toda geração, todo ser humano é obrigado a dizer: 'Nós mesmos, não apenas nossos antepassados, saímos da escravidão para a liberdade’".

Incrível! - não "todo judeu", diz: "Todo ser humano!" [3]
O esforço do rabino Waskow tem sido o esforço de todo o povo judeu ao longo da nossa história de se perguntar como saída de Mitsrayim é a história que estamos vivendo hoje. Para os chassidim, Pêssach era a oportunidade de nos libertarmos das amarras de nossos egos hiper-inflados, o verdadeiro chamêts; sobreviventes da Shoá encontraram relevância no ritual imaginando os capatazes do faraó com insígnias nazistas; os chalutsim, os pioneiros sionistas que voltaram a Israel no começo do século XX para recolonizar a terra, imaginando o chachám, o filho sábio da hagadá, como um jovem do kibutz, pronto para largar os livros e sujar sua mão no solo; para vítimas de violência doméstica hoje em dia, Pessach é a chance de sonhar com dias diferentes; para meus avós, imigrantes da Europa Oriental, Pessach era a oportunidade de falar da sua condição, tendo fugido de uma situação terrível e, mesmo assim, muitas vezes sentido falta dos aromas, dos sabores, do idioma da terra que eles tinham abandonado.

O processo continua. Todos os anos, há novas hagadot sendo publicadas, com textos inovadores e tradicionais, sempre buscando relacionar a liberdade com a nossa situação pessoal. Há algumas semanas, recebi o texto que Bernardo Sorj, sociólogo e um dos mais interessantes intelectuais do judaísmo no Brasil, escreve todo ano para o sêder. Desta vez, ela relaciona a atitude arrogante do faraó com o conflito entre Rússia e Ucrânia e com o momento político que vivemos no Brasil. 

בְּכָל דּוֹר וָדוֹר חַיָּב אָדָם לִרְאוֹת אֶת עַצְמוֹ כְּאִלוּ הוּא יָצָא מִמִּצְרַיִם, 
שֶׁנֶּאֱמַר: "וְהִגַּדְתָּ לְבִנְךָ בַּיוֹם הַהוּא לֵאמֹר: בַּעֲבוּר זֶה עָשָׂה יְיָ לִי בְּצֵאתִי מִמִּצְרָיִם"
Em toda geração, toda pessoa é obrigada a ver a si mesma como se ela mesma tivesse saído de Mitsrayim, assim como está escrito: “conte ao teu filho naquele dia, dizendo: ‘é pelo que Deus fez por mim quando eu saí de Mitsrayim.’”

E você?! O que vai fazer para que o ritual não fique apenas na repetição de velhas fórmulas, e para que sirva de inspiração para a tua libertação pessoal?

Shabat Shalom e Chag haCherut Sameach!


[2] “In Your Blood, Live: Re-visions of a Theology of Purity.” in Lifecycles 2, edited by Debra Orenstein and Jane Litman. Woodstock, VT: Jewish Lights, 1997. ps197-206

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Dvar Torá: Vendo as doenças como parte da vida (CIP)


Esta semana, nós tivemos a 94ª edição do Oscar mas a verdade é que eu não sei mais como me preparar para o Oscar nem o que fazer com a lista dos filmes premiados na sequência. Na minha adolescência e na época de faculdade, tentávamos assistir todos os filmes indicados antes da premiação — e, se por acaso, um filme que não tínhamos assistido ganhasse algum prêmio importante, pegávamos fila no cinema para conseguir vê-lo.

Hoje, com pandemia e inúmeros serviços de streaming, tenho a impressão de que a experiência do Oscar perdeu a importância e que eu prefiro continuar maratonando a minha série bobinha a parar pra assistir um filme premiado. Mas talvez, seja só eu….

De qualquer forma, nesta 94ª edição, parece que ninguém falou sobre os filmes premiados no dia seguinte. Tudo que as pessoas comentavam era o tapa que o Will Smith tinha dado no Chris Rock. Se você não sabe o que aconteceu, Chris Rock estava apresentando a cerimônia e fez uma piada comparando Jada Pinkett Smith, esposa do Will Smith, com um papel de Demi Moore no filme G. I. Jane, no qual ela tinha a cabeça raspada. A questão é que Jada tem alopecia, uma condição que leva à queda de cabelo.

Durante toda esta semana, falou-se se Chris Rock teria sido insensível ao fazer piada de uma condição médica ou se Will Smith teria sido hipócrita ao defender a paz mas resolver os problemas através da violência. Qualquer que seja a sua opinião (ou a minha) nestas questões, elas abriram a possibilidade de pensarmos como conversamos sobre doenças, um tema com o qual nossa sociedade, em geral, não lida bem.
Muitas vezes, escondemos que estamos doentes mesmo das pessoas mais próximas, porque não queremos preocupá-los ou não queremos que eles passem a nos tratar de forma diferente. 

Em outras, há um sentimento de vergonha, como se tivesse sido por culpa nossa que tivéssemos adoecido. A linguagem coloquial também não ajuda — não são raras as situações em que nos referimos metaforicamente a doenças como aquilo que causa todo o mal do mundo. Imagina, por exemplo, como se sente uma pessoa que tem câncer quando nos referimos a uma fenômeno social terrível como um câncer da sociedade. Quem iria se identificar como tendo câncer em um contexto desses? Nós sofremos de doenças, lutamos contra elas, estávamos em guerra contra a Covid. Neste contexto cultural, não é difícil entender porque a parashá desta semana cause tanto estranhamento aos comentaristas e nos cause tanta dificuldade para comentá-la. Em parashat Tazria, a questão central do texto é uma condição dematológica chamada “tsaraat”, que é frequente e erroneamente traduzida como “lepra”. O texto da Torá instrui os sacerdotes em como investigar a questão e tratá-la, muitas vezes afastando a pessoa doente do convívio social.

O rabino Art Green escreveu a respeito da dificuldade e da importância de encontrarmos estes textos hoje em dia: 
Todos nós (…) somos sobreviventes. Vivemos juntos durante anos terríveis de peste. Muitos de nós perdemos pessoas que amávamos ou com quem nos preocupávamos. As pessoas mais velhas também tendem a se ver como sobreviventes de vários outros eventos ao longo de nossas vidas: câncer, acidentes de trânsito, vícios e muitos outros tipos de pragas. [1]
Em sua leitura metafórica, baseada no tipo de análise de texto comum entre os mestres chassídicos, ele propõe 5 ensinamentos a partir da forma como os sacerdotes abordavam a questão da tsaraat, que podem nos inspirar também na forma como nós tratamos das nossas próprias doenças ou daquelas das pessoas à nossa volta, em particular com questões de saúde mental ou da alma, como a depressão, o pânico e outras tantas condições:
  1. Enxergue, além da doença, também a pessoa que está doente a sua dor emocional. Quão profunda é ela? Será que você pode ajudá-la a evitar que esta dor se espalhe e acabe tomando conta de tudo que esta pessoa é?
  2. Se permita ser surpreendido de forma positiva e, se este for o caso, ajuda o enfermo a recuperar parte da alegria e da esperança;
  3. A dor pela re-ocorrência pode ser ainda maior que a dor por contrair uma doença pela primeira vez. Leve a sério os pedidos de ajuda, sem tratar a questão com desdém;
  4. Há situações, em particular, aquelas referentes a traumas psicológicos, nos quais se sentir reconhecido, enxergado e escutado já é um imenso primeiro passo para a recuperação;
  5. Não despreze a importância de rituais (religiosos ou não) para marcar a recuperação do corpo, da alma e do espírito. 
O rabino Art Green nos lembra que este rituais são ainda mais poderosos quando contém, dentro deles, elementos da antiguidade.

Na literatura talmúdica, alguns rabinos mantinham distância absoluta dos enfermos. Rabi Ami e Rabi Asi não entravam em uma rua em que alguém tivesse tsaraat, Reish Lakish, um dos maiores expoentes da sua geração, atirava pedra nas pessoas que tivessem esta doença. [2]

Outros sábios, no entanto, mantinham uma relação de proximidade com aqueles que mais precisavam do seu carinho e atenção. Em uma passagem [3], o Talmud nos conta como o rabino Iehoshua ben Levi se juntava a quem estava doente e estudava Torá junto com eles. Em outra passagem do Talmud [4], o mesmo rabino Iehoshua ben Levi encontra Eliahu haNavi, o profeta Eliahu, que a tradição acredita que serve como uma ponte entre o mundo celestial e o mundo terreno. O rabino Iehoshua ben Levi pergunta a Eliahu haNavi quando o Messias chegará. “Vá e pergunte a ele”, foi a resposta do profeta. “E onde o encontro?”, perguntou o rabino. “Na entrada de Roma.” “E como eu saberei quem ele é.” A resposta de Eliahu haNavi aponta para o carinho dispensado a quem está doente: “Ele se senta entre os pobres que sofrem de doenças. E todos eles desamarram suas ataduras e amarram todas de uma vez, mas o Messias desamarra uma atadura e amarra uma de cada vez. Ele diz: Talvez eu precise servir para trazer a redenção. Portanto, nunca vou fazer mais de um curativo, para não me atrasar.”.

Que neste shabat Tazria, de leituras tão difíceis e que remetem tantos de nós às situações difíceis pelas quais estamos passando, que tenhamos a capacidade de verdadeiramente acolher os enfermos e de enxergá-los completamente, sua verdade, sua dor, suas alegrias, sua esperança, seu cansaço.

Shabat Shalom,

[1] Art Green, Comentários da Parashá distribuídos por email.
[2] Avraham Burg, Very Near to You, p. 236.
[3] BT Ketubot 77b
[4] BT Sanhedrin 98a
 

sexta-feira, 18 de março de 2022

Dvar Torá: Sacrifícios e sacerdotes continuam relevantes? (CIP)


Na semana passada, trazendo meu filho da escola para casa, eu comecei a puxar conversa no carro sobre a prova que ele teria no dia seguinte. “Qual a matéria da prova?”, eu perguntei. “Pois é…” começou a resposta. “A prova é de português e tem uma parte da matéria que eu não entendi ainda”, e ele continuou: “Eu não consegui entender qual a diferença entre fonemas e dígrafos.”

Confesso que eu não me lembro de ter estudado fonemas e dígrafos quando tinha a idade dele mas, de qualquer forma, eu tampouco sabia o que estes conceitos eram. Nada como uma busca no Google para elucidá-los e poder explicar para a pobre criança desesperada.

Mas logo na sequência veio a pergunta que todo pai de filhos em idade escolar escuta, no mínimo, um milhão de vezes: “pai, pra que eu preciso aprender isso?!?! Que diferença isso vai fazer na minha vida?!?!”
Implícito nesta pergunta está a crença de que os conceitos que aprendemos na escola precisam ter utilidade neles mesmos, alguma aplicação prática que justifique gastarmos horas de aula, noites de sono e litros de café tentando entendê-los.

Um dia, eu também pensei assim, talvez fosse até um ativista por uma reforma curricular ampla que eliminasse os conceitos inúteis e focasse mais naquilo que realmente precisávamos saber. Na época, eu era representante dos alunos no Conselho do Departamento de Ciência da Computação da USP e protestava pela substituição de várias disciplinas teóricas por outras mais práticas e aplicáveis ao mercado de trabalho. Quem me mostrou como eu estava errado foi o professor Valdemar Setzer, que argumentava que a função da universidade era abrir nossas mentes, nos ajudar a pensar de distintas maneiras, conceber abordagens inusitadas para problemas que nem tinham sido formulados ainda. Esta era a verdadeira função das disciplinas teóricas que precisávamos cursar: desenvolver nosso raciocínio para que pudéssemos resolver novos problemas quando chegasse a hora. Para nos ensinar uma nova linguagem de programação, nossos futuros empregadores seriam bem melhores do que a universidade.

A parashá desta semana é uma daquelas sobre as quais meu filho perguntaria: “pai, por que precisamos aprender isso?!” A maior parte da parashá trata da oferta de sacrifícios animais, uma prática que o judaísmo rabínico abandonou há quase dois mil anos, especialmente pela classe dos kohanim, os sacerdotes no Templo, uma espécie de casta hereditária judaica que o mundo judaico liberal também, em grande parte, rejeitou.

E, mesmo assim, como eu aprendi com o professor Valdemar Setzer, é nessas passagens sem aplicação prática direta que, muitas vezes, encontramos os significados mais relevantes para nossa situação.

A ideia de sacrifício se, por um lado parece anacrônica, de outro, nunca foi tão relevante. Vivemos na época das liberdades, tema sobre o qual vamos conversar, por sinal, com o Dan Stuhlbach e o Eduardo Gianneti. Em particular, vivemos na época das liberdades individuais. Outro dia, o debate era se tínhamos liberdade para expressar ideais antissemitas ou preconceituosos contra outro grupos. Há o debate sobre o direito de portar armas em qualquer espaço. Há o debate sobre a liberdade de quem adota comportamentos arriscados, mesmo que isso coloque outros em risco ou que imponha ao coletivo arcar com as consequências destes comportamentos. Em tempos de direitos individuais, quais seriam os direitos do coletivo? Quem sacrifícios — este conceito tão presente no livro de Vaicrá e tão estranho aos nossos ouvidos contemporâneos — que sacrifícios estaríamos dispostos a fazer para o bem comum? De que forma, precisamos equilibrar  o conceito de liberdade com a noção de responsabilidade?!

Na Torá, oferecer um sacrifício não era algo fácil. Eram escolhidos os melhores animais, produtos agrícolas e alimentos. Em uma época em que a escassez era a norma, levar estes melhores produtos para que fossem oferecidos em sacrifício, implicava abrir mão de produtos valiosos, que fariam falta — mas a recompensa comunitária justificava estes atos. E, hoje, de que parte cara das nossas liberdades estaríamos dispostos a sacrificar por um benefício maior do coletivo?

Um outro aspecto que dá relevância aos sacrifícios dos cohanim, dos sacerdotes, é a própria ideia do sacerdócio. Em tempos bíblicos, eles eram — juntos com os levitas — os exemplos paradigmáticos de pessoas que dedicavam a vida a servir a comunidade e parte das ofertas em sacrifício eram destinadas ao usufruto deles. A discussão sobre o comportamento ético de nossos líderes em cargo de liderança também se aplica a realidade contemporânea. De acordo com Avraham Burg:
Qualquer um que não fizesse parte do establishment do Templo em Jerusalém compreendia que os sacrifícios equivaliam a um imposto com comissões para os que faziam parte do esquema, os sacerdotes e os burocratas do santuário, que freqüentemente tinham muito pouco a ver com santidade. A crítica profética e a crítica posterior dos sábios, surgiram contra a tendência de fazer do sacrifício um fim em si mesmo, a uma tecnologia de fé que vem no lugar de um genuíno sentimento religioso de obrigação espiritual e ética. [1]
Vivemos tempos turbulentos com relação às lideranças da nossa sociedade. A busca do poder pelo poder, por motivos escusos e  para o engrandecimento do próprio nome caracteriza muito mais líderes do que conseguimos contar. Há uma guerra — talvez mais de uma, na verdade — em curso no qual o único objetivo parece ser estabelecer o nome do líder agressor no panteão de grandes líderes do seu país. Uma lista que inclui outros opressores cujos nomes ficaram marcados para sempre na infame lista dos piores ditadores da história. 

Por aqui, no Brasil de 2022, a discussão das necessidades públicas parece ser sempre suplantada pelos interesses políticos imediatistas e pela pergunta “o que eu ganho com isso?!” Desapontados, muitas vezes abandonamos nossos próprios ideais e partimos também para uma defesa dos nossos próprios interesses, sem generosidade pela necessidade dos outros e sem a disposição de fazer sacrifícios.

Os rabinos Dov Ber ben Avraham de Mezeritch e Menachem Nachum Twersky, dois dos primeiros mestres do movimento chassídico, escreveram a respeito do verso inicial da parashá, que diz: “Adonai falou a Moshé, dizendo: ordene isto a Aharón e a seus filhos, esta é a Torá da Elevação.” Em seus comentários, eles trouxeram passagens rabínicas que comparam o estudo da Torá à oferta de todos os sacrifícios [2]. Que neste shabat possamos nos encontrar verdadeiramente com nossos textos e buscar neles relevância para os dilemas que enfrentamos hoje e agora.

Shabat Shalom!


[1] Avraham Burg, “Very Near to You”, p. 221.
[2] B Menachot 110a


quinta-feira, 10 de março de 2022

O pequeno alef e os sacrifícios a que somos chamados

“Chamou a Moshé e Adonai lhe falou da Tenda do Encontro, dizendo…”. Com este verso começa a parashá desta semana e o livro de Vaicrá, Levítico, o terceiro dos cinco livros da Torá. Quem chamou a Moshé não fica claro e tem sido o objeto de grande debate e especulação entre os comentaristas ao longo dos séculos.

Como componente adicional do mistério, a última letra da primeira palavra deste verso é um alef, que neste caso é escrito em um tamanho menor que as demais letras da página. Quem poderia ter chamado a Moshé para que Deus o instruísse nas regras dos sacrifícios, tema de grande parte deste terceiro livro?

Há comentaristas para quem o alef em tamanho pequeno é sinal de que é o “eu” (“aní”, em hebraico) de Moshé quem o chama e interpretam que cada um deve escutar a sua voz mais profunda, a sua consciência mais verdadeira, para definir quais são nossos interesses que nos levariam a um envolvimento verdadeiro e que sacrifícios estamos dispostos a fazer, de que estamos dispostos a abrir mão.

Uma outra interpretação para o pequeno alef vai na direção contrária e o associa à Shechiná, ao aspecto do Divino que está mais próximo do mundo em que vivemos e presente em todas as coisas e em todas as pessoas. Nesta leitura, escutar o chamado do pequeno alef é prestar atenção ao mundo que nos rodeia para decidir os sacrifícios que precisamos fazer. Se na primeira interpretação, perguntávamos ao nosso eu mais profundo em que deveríamos nos envolver, desta vez, paramos para escutar o que o mundo grita que suas necessidades mais prementes são. Olhamos ao redor, enxergamos o Divino na face das pessoas que nos são próximas e também nas de quem nos é mais distante. Quais são as causas e projetos cuja urgência clama pelo nosso envolvimento, mesmo que não seja o assunto que mais nos interessa?

Em qualquer destas duas abordagens, a questão do sacrifício pessoal tem valor central. Vivemos em um tempo de fartura material como, provavelmente, a humanidade jamais tenha visto. Temos, em geral, muito mais “coisas” do que conseguiríamos aproveitar nas nossas vidas, geramos uma quantidade imensa de lixo a cada dia, e, mesmo assim, temos enorme dificuldade em desapegar, em abrir mão de coisas que nos são caras. Quando fazemos uma doação, é é dinheiro que não nos faltará ou um sapato que já não usamos mais; quando damos algo nosso de presente, é, via de regra, algo do qual enjoamos. 

Várias situações anedóticas, no entanto, relatam que pessoas que têm muito menos apresentam maior propensão a dividir o pouco que têm, mesmo que depois lhes falte, mesmo que o feijão fique aguado como consequência do convidado adicional à mesa. O Livro de Vaicrá aponta para este comportamento como desejável: Deus nos instrui a abrir mão das melhores frutas, dos melhores animais, de doarmos aquilo do qual, na verdade, sentiremos falta. E, então, o pequeno alef ao final da primeira palavra do livro nos convida a perguntarmos de que nossa verdade mais íntima nos instrui a abrirmos mão? Em quais causas acreditamos mais profundamente e com a qual queremos contribuir, que realidades gostaríamos de transformar, em que projetos sentimos que precisamos estar envolvidos, mesmo que tenhamos que abrir mão de outros interesses?

Um midrash famoso fala que Avraham chegou à percepção da existência de um Deus único ao perceber que, assim como um farol não se consumia pelo fogo porque havia um faroleiro que cuidava dele, que se o mundo não era consumido pelo caos, o Divino precisava existir para garantir a continuidade do mundo. Vários teólogos dizem que vivemos em uma época de Hester Panim, na qual Deus esconde Sua face. É nossa vez de escutarmos nossa voz interna e de enxergarmos a realidade externa e de fazermos os sacrifícios que conseguirmos para garantir que o caos não engula completamente o nosso mundo. 

Qual é a causa que verdadeiramente te interessa? Qual a necessidade sobre a qual você enxerga o mundo gritando e pedindo ajuda? O que você está disposto a sacrificar para garantir que vivamos todos em uma realidade mais justa, mais equilibrada, mais inclusiva e mais acolhedora?

Shabat Shalom!