terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Podcast "E Eu com Isso?" - ep. 145: Judaísmo sem Rótulos

(conteúdo originalmente publicado em https://open.spotify.com/episode/2x3NIH1TZH8X0TwnuqdE4q)

Logo no início do 'E eu com isso', fizemos vários episódios tentando explicar as diferentes correntes do judaísmo e de onde elas vieram. Quase como um be-á-bá de afiliações e ideologias. Se você precisa refrescar sua memória, pode voltar lá no episódio 26 em diante. Mas nos últimos anos, duas tendências, distintas, mas frequentemente combinadas, passaram a caracterizar os padrões de identidade denominacional dos judeus americanos. Um que podemos chamar de “não denominativo”, no qual os judeus se recusam a ver a si mesmos como alinhados com a Ortodoxia, o Conservadorismo, a Reforma ou o Reconstrucionismo (as principais opções denominacionais disponíveis para os judeus norte-americanos). Em pesquisas sociais, quando questionados sobre sua identidade denominacional, eles respondem, ou são classificados como "apenas judeus", "seculares" ou "qualquer outra coisa judaica". Pra falar desse assunto, nossos convidados são o rabino Natan Freller, que atua na comunidade norte-americana, na comunidade Etz Hayim, e também o rabino Rogério Cukierman, rabino da Congregação Israelita Paulista, que é formado no Hebrew College, que fica em Boston, e é um seminário não denominativo. Apresentação: Ana Clara Buchmann e Anita Efraim.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Que nossos filhos sejam bençãos!

A primeira vez que a palavra brachá, bênção, aparece na Torá é quando Deus abençoa Avraham na passagem que conhecemos como Lech Lechá: “Eu te abençoarei e engrandecerei o teu nome e você será uma bênção.” [1] Antes disso, o conceito já tinha aparecido como verbo “abençoar”  na criação da humanidade, do shabat e ao final do episódio do Dilúvio. Nesta mesma história, temos a primeira instância em que uma pessoa abençoa o Divino, quando Noach estava no processo de abençoar alguns filhos e amaldiçoar outros [2]. A prática de os pais usarem de sinceridade absoluta quando abençoavam seus filhos, indicando suas falhas junto com as suas qualidades, parece ter sido a norma em tempos bíblicos, ainda que soe um pouco cruel hoje em dia.

Na parashá desta semana, Vaiechi, esta prática ganha tons ainda mais fortes. Iaacov, pressentindo que sua morte se aproximava, convoca seus filhos para abençoá-los seguindo a prática da sinceridade absoluta. Alguns deles recebem bênçãos doces e carinhosas, como Iehudá, a quem Iaacov estabelece como líder entre seus filhos. A outros, como Shimón e Levi, que tinham sido responsáveis pelo massacre em Shchem, Iaacov reserva reflexões duras, que melhor seriam chamadas de maldições do que de bênçãos.

Os comentaristas bíblicos têm debatido a abordagem de Iaacóv por muitos séculos. Abarbanel, um comentarista português do século XV, entendia que a preocupação do patriarca era com a identificação, entre todos os seus filhos, daqueles que tinham maior poder de liderança. Pinchas Peli, um rabino israelense que faleceu em 1989, por outro lado, acredita que o objetivo de Iaacov era ajudar seus filhos a identificarem suas próprias qualidades e defeitos e, desta forma, encontrar seu caminho dali pra frente.

Além de seus doze filhos homens, Iaacov também abençoou os dois filhos de Iossêf, Efraim e Menashé. Ao final da sua bênção aos netos, Iaacov indica que esta deve ser a prática daquele momento em diante: “através de você, Israel abençoará, dizendo ‘que Deus te faça como Efraim e como Menashé.’” [3] Esta tem sido a frase dita por muitos pais judeus a seus filhos homens ao abençoá-los. As filhas mulheres, que não foram mencionadas na bênção que Iaacov deu aos filhos, receberam uma outra formulação: “que Deus te coloque como Sará, Rivcá, Rachel e Leá.”

Há muitas interpretações sobre porque abençoar os filhos pedindo que eles sejam como Efraim e Menashé. Há quem opine que isso se deve ao fato de eles serem os primeiros irmãos na Torá que não têm conflitos entre si; outros acham que a honra se deve ao fato de eles terem nascido na Diáspora e, apesar de terem vivido sempre no Egito, terem sido capazes de manter sua identidade judaica. 

Qualquer que seja o motivo, a formulação da bênção como instituída por Iaacóv sempre me incomodou e eu não a uso para abençoar meus filhos. Por mais inspiradores que algumas figuras bíblicas sejam (e não coloco Efraim e Menashé na lista das que mais me inspiram), espero que meus filhos possam crescer e se tornar eles mesmos, não cópias de outra figura, seja ela bíblica ou histórica. Uma história chassídica famosa conta que, ao chegarmos aos céus, não seremos comparados a outras figuras, mas à melhor versão de nós mesmos e é isso que eu desejo aos meus filhos.

A poetisa litúrgica norte-americana Marcia Falk escreveu a respeito da bênção proposta por Iaacov: “por que desejaríamos que uma criança fosse outra coisa senão o que ela tem de melhor? Não viver a própria vida - não ser fiel à configuração única de dons e potenciais que nutrem o eu por dentro - é uma tragédia. No entanto, deixar a criança ser ela mesma, abrir mão de expectativas que não emergem da realidade de quem a criança é, é uma das lições mais difíceis que os pais têm de aprender.” [4] Desde que meus filhos nasceram, eu uso a alternativa escrita por Falk: “Seja quem você é e seja abençoado/abençoada em tudo que você é.” Assim, busco seguir o exemplo Divino ao abençoar Avraham, desejando que meus filhos possam se tornar, eles mesmos, bênçãos.

Que neste shabat abençoado, possamos todos encontrar paz, bençãos e muita luz.

Shabat Shalom!


[1] Gen. 12:2

[2] Gen. 9:24-27

[3] Gen. 48:20

[4] Marcia Falk, “The Book of Blessings”, p. 450.



sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Dvar Torá: Com o que você sonha? (CIP)


Hoje de manhã meu filho começou a assistir uma nova série de ficção sobre a exploração espacial. Logo nas primeiras cenas, o mundo para para assistir a primeira pessoa a chegar na Lua — nesta versão de ficção, um cosmonauta russo. No México, uma mãe insiste para que sua filha fique em frente à TV e acompanhe tudo o que está acontecendo. “Este é o começo do futuro e você pode ser parte disso,” ela lhe diz.

Fiquei pensando nessa cena e nos nossos sonhos, tanto sonhos no sentido de planos como sonhos no sentido daquilo que imaginamos acontecer quando dormimos. 

Uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e publicada no final do ano passado [1] mostrou que, durante a pandemia, houve uma mudança significativa nos sonhos que as pessoas lhes relataram, com maior incidência de palavras ligadas à raiva e à tristeza. De acordo com os autores, “esses resultados corroboram a hipótese de que os sonhos pandêmicos refletem sofrimento mental, medo do contágio e mudanças importantes no cotidiano, hábitos que impactam diretamente a socialização.” Outras pesquisas analisaram como os sonhos mudaram durante os anos do regime totalitário da Alemanha Nazista [2]. Nestes casos, os sonhos foram profundamente impactados pelos conceitos em que as pessoas estavam vivendo.

Nas histórias bíblicas, por outro lado, os sonhos parecem ter o poder de transformar estes contextos e dar pequenas cambalhotas nas narrativas. A sequência de parashiot na qual estamos, que contam a história de Iossêf, é particularmente cheia de sonhos. Iossêf nos foi apresentado na semana passada como um menino mimado, que tem sonhos que parecem indicar subserviência de seus pais e seus irmãos a ele. Depois, o mordomo e o padeiro do faraó, que compartilham a prisão com Iossêf, têm seu destino revelado em sonhos que apenas nosso herói tem a capacidade de decifrar.  Já na parashá desta semana, Mikêts, é a vez do Faraó ter um sonho e apelar ao jovem hebreu que estava em sua prisão para revelar seu verdadeiro significado.

De acordo com Ieshayahu Leibowitz, o falecido filósofo ortodoxo e iconoclasta, irmão da comentarista da Torá Nechama Leibowitz, apenas no livro de Bereshit, o conceito de sonho é mencionado 48 vezes, o que torna este livro a referência central na questão dos sonhos de todo o Tanach. De acordo com Leibowitz, isso se explica porque este livro não é apenas o primeiro, mas também o mais profundo entre todos os livros sagrados.

Na sequência de histórias na qual nos encontramos, os sonhos servem como canal de comunicação entre o humano e outra dimensão da realidade, uma na qual o Divino se comunica e através da qual são revelados antes de acontecerem o respeito que os outros filhos de Iaacóv dirigirão a Iossêf e a fartura seguida de seca em Mitsrayim. 

Será que o que foi revelado nos sonhos já estava predestinado ou a forma como as pessoas os interpretaram ajudaram a definir suas consequências? Será, por exemplo, que se os irmãos de Iossêf não ficassem tão incomodados com o queridinho do papai, a ponto de considerar matá-lo e terminar vendendo-o como escravo, o sonho das estrelas e do Sol e da Lua não poderia ter tido um outro significado? Será que, também os sonhos do Faraó não poderiam ter sido interpretados de outra forma e levado a consequências muito diferentes?

No Talmud, há uma série de páginas no tratado de Brachot, Bençãos, que tratam da questão dos sonhos. Um ditado repetido algumas vezes nestas páginas é que “כׇּל הַחֲלוֹמוֹת הוֹלְכִין אַחַר הַפֶּה”, col hachalomot holchin achar hapé, “os sonhos seguem a boca”, que é normalmente entendido como dizendo que o significado de um sonho é definido por sua interpretação. A título de exemplo, a passagem do Talmud conta a história de Bar Hadaia, um intérprete de sonhos, que os interpretava de forma favorável para quem lhe pagava e de forma desfavorável para quem não lhe pagava. Abaie e Rava, uma dupla de mestres do Talmud, famosos pelos seus debates, buscaram a ajuda de Bar Hadaia para interpretar sonhos idênticos que eles tinham tido — Abaie pagou e Rava, não. As interpretações de sonhos idênticos foram radicalmente diferentes e todas elas se mostraram corretas, inclusive as mais trágicas, reveladas para Rava, que não havia pago pelos serviços do intérprete de sonhos.

De que forma nossa leitura da vida que nos cerca ajuda a criar a realidade? Será que não apenas os sonhos seguem a boca ou a interpretação que lhes damos mas também a própria realidade?

Uma imagem que apareceu hoje na edição digital da Folha mostra duas pessoas dentro de um ônibus, que está contornando uma serra. Uma das pessoas olha pela sua janela e vê a parede da montanha, um cenário desolador; a outro olha pela janela do outro lado e vê o Sol se pondo e iluminando as planícies, uma imagem linda. A legenda que o autor da charge lhe colocou Escolha o Lado Feliz da Vida!

Será que basta escolher ler a vida de forma positiva para que ela seja realmente feliz? 

A verdade é que esta perspectiva me parece simultaneamente um pouco Poliana e cheia de potencial. 

Que nesta festa das Luzes, consigamos iluminar nossos caminhos e enxergar o potencial e o lindo nas nossas vidas, nas nossas histórias e até nos nossos sonhos. Que nossas realidades possam ser impactadas pela forma como as interpretamos e que consigamos escolher sempre o caminho da luz.

Chag Urim Sameach! Shabat Shalom! 


[3] שבע שנים של שיחות על פרשת השבוע, ישעיהו לוובוביץ p. 152
[4] Talmud Bavli, Brachot 55a-57b
[5] Erik Alvstad , “ONEIROCRITICS AND MIDRASH On Reading Dreams and the Scripture”, p. 124
 

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Conta-me com quem casas?!?!

Daniel Boyarin, professor de Cultura Tamúdica na Universidade de Berkeley, fala bastante da intertextualidade dentro do Tanach, termo através do qual aponta para três características do texto bíblico: (1) há citações frequentes, explícitas ou não, de passagens escritas em períodos anteriores, (2) existe a possibilidade de enxergarmos o texto em si como uma situação em que acontece o diálogo entre passagens distintas, e (3) códigos culturais (conscientes ou não) podem encorajar ou reprimir a produção de novos textos. [1]

Em palavras mais simples, passagens do Tanach podem ser vistas em diálogo com outras passagens e devemos ter isso em consideração quando as consideramos. Nas parashiot das últimas semanas, vimos uma ênfase na rejeição de casamentos entre homens hebreus e mulheres canaanitas. Foi assim que Avraham pediu a seu servo que fosse buscar uma esposa para Itschác na terra de seus antepassados e que Rivcá e Itschác pediram a Iaacóv que fosse à casa de seu tio buscar uma esposa. 

Na parashá desta semana, por outro lado, temos o primeiro caso de um hebreu se casando com uma mulher de família local: Iehudá se casa com a filha de Shuá, sem que o nome dela seja mencionado na Torá. Por um caminho tortuoso (que vale muito a leitura, mas que não acrescentaria nada aqui), Iehudá acaba também tendo filhos gêmeos com Tamar: Peretz e Zarach. Além de ter dado nome ao povo judeu, Iehudá, através de Peretz, se tornou ancestral do Rei David, o rei paradigmático das histórias do Tanach.

Seguindo as orientações do professor Boyarin, podemos ler estas passagens em diálogo umas com as outras -- algumas argumentando fortemente que o casamento com não judeus levaria à extinção do judaísmo e outros dizendo que, pelo contrário, é até bom incorporar pessoas e ideias novas à nossa tradição. Há algumas décadas, em muitas famílias quando um filho ou uma filha tinham um relacionamento amoroso fora da comunidade judaica, era motivo de grande consternação (como foi para Rivcá a mera possibilidade de que Iaacóv se casasse com uma mulher de Cnaán [2]), com medo de que aquele ramo familiar se afastasse permanentemente da tradição e da cultura judaicas. Hoje, no entanto, a realidade é, em muitos casos, bastante diferente. Encontro muitas famílias nas quais a parte não judia é até mais interessada na educação judaica dos filhos do que os parceiros judeus; em outros casos, mesmo que o pai e a mãe sejam os dois judeus, não expressam nenhuma intenção de ir além do mero superficial na vivência judaica da família. A vitalidade da vida judaica das famílias não é necessariamente determinada pela porcentagem judaica de cada casal - mas pela relevância que cada um encontra no judaísmo que conhece.

Será que conseguiríamos conceber uma conversa imaginária entre Rivcá e seu neto, Iehudá sobre estes temas? Ela falaria de suas angústias e medos, ele falaria da necessidade de ter liberdade para encontrar quem realmente ama. Ambos teriam razão, ambos falariam das suas verdades e, quem sabe, depois de chorarem um pouco, conseguiriam vislumbrar um futuro de criatividade judaica, em diálogo com a realidade onde viviam, no qual famílias se constituem por vários motivos e escolhem rumos que não são predestinados. Esta conversa pode nos ajudar também a pensar como nos relacionamos com as sociedade primordialmente não-judaicas nas quais vivemos.

Neste domingo acenderemos a primeira vela de Chanucá, uma festa que, desde a sua narrativa de origem, está associada ao diálogo com outras culturas (ou à falta dele): que costumes incorporamos, que roupagem judaica lhes damos, que histórias contamos a seu respeito. Que na sociedade multicultural em que vivemos, consigamos encontrar caminhos para nos relacionarmos com gente de todas as culturas e construir cada vez mais pontes, ao mesmo tempo em que nos preparamos para um futuro judaico intenso, vibrante, criativo e relevante.

Shabat Shalom!


[1] https://doi.org/10.2307/1455327 

[2] Gen. 27:46



sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Dvar Torá: Desnaturalizando a violência (CIP)


Ontem no almoço, eu estava conversando com meu filho de 10 anos sobre a escola quando eu decidi dar um passo arriscado e perguntar se ele tinha alguma ideia de que profissão ele gostaria de ter. “Como assim, pai?” Ele me perguntou. “Há alguns anos, você queria ser jogador profissional de futebol”, eu respondi. “Esse ainda é o teu sonho? Quem sabe, você queira ser engenheiro, arquiteto, talvez até rabino.” “Rabino, não, né pai?!” ele disparou de cara e continuou “mas você não vai gostar se eu te contar o que eu quero ser quando eu crescer.” Nem precisava… eu já tinha entendido que meu filho quer ser gamer, um jogador profissional de video-games, uma das inúmeras profissões que não só não faziam parte dos meus sonhos, mas nem existiam quando eu tinha a idade dele.

Outra dessas profissões é youtuber, aquela pessoa que ganha dinheiro fazendo vídeos pro YouTube sobre os mais variados assuntos. Pois foi assistindo uma youtuber bem famosa, a JoutJout  do canal JoutJout Prazer, que eu aprendi um pouco mais sobre um livro no qual estava interessado [1]. Casa das Estrelas [2] foi compilado pelo educador colombiano Javier Naranjo a partir de definições que crianças davam para as palavras — definições que, algumas vezes eram fofas ou engraçadas, mas que muitas vezes nos faziam pensar sobre o real significado de palavras e de situações para as quais tínhamos parado de dar atenção. Andrés, um menino de 8 anos, por exemplo, definiu “adulto” como “uma pessoa que, em tudo daquilo que fale, primeiro vem ela.” 

Quando a JoutJout estava fazendo sua resenha do livro, contou que primeiro ficou pensando em como podia ser que uma criança tão nova tivesse escrito aquilo. Em seguida, ela teria pensado “por que uma pessoa de 4 anos não pode pensar em uma coisa interessante? Porque a gente pensa que as pessoas interessantes, que pensam coisas interessantes são adultos já.” Ela contou de uma conversa na qual sua interlocutora dizia que há um ponto de vista que trata “crianças como mini-pessoas, tipo pessoas que ainda não são pessoas, pessoas ainda em formação mas que ainda não chegaram lá no status de pessoas. Uma pessoinha, uma pessoa que ainda não se formou completamente. Mas uma pessoa de 4 anos já é uma pessoa… de 4 anos. E ela tem opiniões… maravilhosas.”

Esta tem sido a perspectiva de Ktanim, o programa de educação judaica desenvolvido pela área de educação infantil da Escola Lafer. Hoje celebramos com seis famílias por alunos que completam neste final de ano um ciclo e se preparam para novos passos no seu contato com o judaísmo. Em Ktanim, as crianças sempre são vistas como pessoas integrais, cujas opiniões e pontos de vista precisam ser escutados e respeitados e com quem aprendemos continuamente. Nossa abordagem é profundamente influenciada pela pedagogia de Janusz Korczak, o pediatra e pedagogo judeu que determinou alguns dos pilares da educação democrática, como a ideia de que crianças não são adultos em miniatura, mas seres-humanos integrais, que assim devem ser reconhecidos e tratados.

Mas a verdade é que muitas vezes conseguimos manter acesa a chama da inocência, da curiosidade e da descoberta que muitas vezes caracterizam a conduta das crianças e abandonamos para sermos reconhecidos como adultos responsáveis, que não fazem perguntas inapropriadas e sabem se comportar como a situação exige. Em Pirkei Avot, um dos primeiros documentos escritos do Judaísmo Rabínico, do começo do 3º século da Era Comum, por exemplo, os rabinos se permitiram fazer um exercício parecido com o do professor Naranjo e redefiniram 4 termos que todo mundo sabe o que quer dizer. Será?!

Para os Rabinos de 1800 anos atrás, “rico” não é quem tem muito, mas quem está feliz com o que tem; “sábio” não é quem tem muito a ensinar, mas quem consegue aprender com todo mundo; “respeitado” não é quem quem recebe honrarias, mas quem respeita a todos; e “herói” não é quem consegue conquistar os outros, mas quem conquista a si mesmo.

Quero parar um pouco na definição de “herói” e pensar com vocês como isso dialoga com os modelos de heróis com os quais vivemos hoje em dia. Por algum tempo, eu não deixei que meu filho, aquele que quer ser gamer quando crescer, assistisse filmes de super-heróis. Apesar de muitas vezes defenderem valores positivos, parece que o recurso a que os super-heróis mais recorrem é a própria violência que eles alegam combater. Eu queria que meu filho entendesse que esse não era o caminho no qual acreditamos, que a violência, quase nunca, leva a uma solução sustentável de qualquer problema. Eu deixei de achar que, sozinho, pudesse ter todo este papel na educação dos meus filhos quando fui buscá-lo na escola e o encontrei brincando de espada usando um balão. Entendi que, em uma cultura na qual a violência é glamourizada e cultuada, o impacto que um pai sozinho poderia ter é bastante limitado.

O que não falta na parashá desta semana é violência. A história começa com Iaacov voltando à terra de seus pais, de onde tinha saído 20 anos antes, morrendo de medo de com qual violência seu irmão, Essav, o receberia. Mas o primeiro embate verdadeiro é entre Iaacóv e o “ish”, a figura que não sabemos bem se é homem ou anjo, com que ele trava um duelo por toda a noite, até o raiar do Sol e da qual sai com a perna machucada. É por essa história que Iaacov e nosso povo receberam o nome de Israel, “aquele que duela com Deus.” Na sequência da parashá, temos a violência sexual contra Diná, a filha de Iaacov e Leá, e a resposta igualmente violenta de Shim’on e Levi, seus irmãos, que mataram todos os homens da cidade.

Lemos estas histórias todos os anos, as contamos sem nos darmos conta da violência que elas contêm e da forma como, ao naturalizá-la, acabamos naturalizando comportamentos violentos em nossas próprias vidas.

Ao comemorarmos cerimônias de bar-mitsvá aqui na sinagoga, não é incomum que os jovens tenham como o principal objetivo de sua presença a oportunidade de arremessar balas com a maior violência possível contra o jovem que comemora sua chegada à maioridade, muitas vezes sob encorajamento dos pais. Antes da pandemia, fui a uma festa com alguns amigos de infância, todos como eu na faixa dos 50 anos, na qual a violência física entre eles era uma forma de expressar camaradagem entre velhos amigos. Chegamos ao caso em que até o carinho expressamos com violência.

Além da violência física, vivenciamos cotidianamente episódios de violência verbal, moral, emocional, seja como perpetrador, como vítima ou como testemunha. Relações de trabalho que se convertem em tóxicas, relações na escola que geram bullying, exclusão, a perpetuação modos tóxicos de relacionamento. Como saímos deste ciclo?

Em Casa das Estrelas, o livro de Javier Naranjo, uma criança de 11 anos define a palavra “criança” como “danificado pela violência” mas outra, de 10 anos, define “amor” como aquilo que “cada coração reúne para dar a alguém.”

Quem sabe, precisemos escutar mais as nossas crianças, entender melhor como nossos atos cotidianos, os filmes que assistimos, as músicas que ouvimos e até as histórias da Torá que contamos sem crítica, ajudam a manter em vigor uma lógica que nos machuca e que machuca a quem mais amamos e que juramos proteger. Que aprendamos com elas como reunir e dar amor em todos os momentos das nossas vidas.
Que este seja um shabat cheio de carinho, de escuta, de atenção e de amor!

Shabat Shalom!


[2] Javier Naranjo, "Casa das estrelas: O universo pelo olhar das crianças", editora Planeta, 2019.


quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Percebendo as bençãos ao nosso redor

Quando eu ainda era aluno de rabinato, fiz um estágio como capelão hospitalar. O programa era bastante intensivo e passávamos os dias visitando pacientes e discutindo com nossos colegas e supervisores como cada visita tinha sido. A cada duas semanas, um de nós ficava de plantão e passava a noite no hospital, dando apoio espiritual a qualquer emergência que pudesse ocorrer. 

Em um dos meus plantões, fui acordado no meio da noite. Um sujeito esperava há algum tempo por um transplante de pulmão e, finalmente, tinham encontrado um doador! Cercado de amigos e parentes, ele me pedia uma benção antes da operação. Antes de lhe dar a benção, eu lhe pedi que reconhecesse as bençãos que literalmente flutuavam ao seu redor… ele tinha recebido uma segunda chance na vida e, cercado das pessoas que mais o amavam no mundo, se preparava para este recomeço. “Lindo, rabino”, ele me respondeu, “agora, por favor, você pode dar a minha benção?!”

Nossa relação com as bençãos varia muito — para alguns de nós, o que realmente vale é o que acontece no mundo físico, no qual as bençãos talvez não impactem muito. Para outros, no entanto, as bençãos representam pontes entre o espiritual e o material e, ainda que seus efeitos não sejam imediatos, abrem nossos olhos e corações para as bençãos reais que nos cercam.

Na parashá desta semana Iaacov e Rivcá tramam para enganar Itschác, para que ele dê a Iaacov a benção da primogenitura que planejava dar a Essáv. O rabino Gunther Plaut pergunta a respeito desta história: “mas como uma benção dada à pessoa errada pode ter qualquer efeito?” E ele adicionou à pergunta: “para começar, uma benção não é um contrato legal mas uma reza. Ainda assim, quando emitida por um pai, acredita-se que ela tenha um poder especial pois Deus está envolvido quando um pai dá sua benção a seu filho. Uma benção não é como uma mercadoria que pode ser tomada de volta quando se percebe que ela é falha. Uma vez dada, está nas mãos de Deus.” [1]

Ao final da enganação de Iaacov e Rivcá, Essáv procura seu pai, esperando receber a benção prometida, trazendo o cozido que Itschác havia pedido. Quando ele escuta que a benção já havia sido dada a Iaacóv, sua decepção é evidente. “Você não guardou uma benção para mim?!”, ele pergunta ao pai. “Abençoe-me também, pai”, ele pede aos prantos. Há momentos nos quais nos sentimos como Essáv, como se todas as bençãos tivessem sido dadas e nenhuma sobrado para nós… E ainda assim, durante toda a nossa vida, recebemos bençãos sem nos darmos conta. Infelizmente, muitas vezes prestamos mais atenção aos tropeços que damos na vida do que às coisas maravilhosas que nos acontecem diariamente. 

As bençãos da tradição judaica, assim como aquelas que formulamos em momentos especiais, se não têm a capacidade de transformar a realidade objetiva, pelo menos conseguem transformar como enxergamos a vida e perceber as maravilhas das quais desfrutamos. Ao abrirem os nossos olhos, acabam de fato impactando a realidade de forma direta.

Que este seja um shabat especialmente abençoado, cheio de paz, de encontros e de olhos abertos para as bençãos que nos rodeiam.

Shabat shalom,


[1] W. Gunther Plaut, “What did Isaac Know?”, Learn Torah With…. 5755: a Collection of the Year’s Best Torah, Alef Design Group, 1996, p. 43.


sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Dvar Torá: A invisibilidade de quem nos serve (CIP)


Esta semana, eu estava dando uma aula quando precisei parar e buscar uma analogia para algo que eu estava tentando explicar. Minha escolha, eu confesso, não foi das mais felizes e eu terminei comparando o acelerar quando vemos o sinal amarelo, um hábito que, pela sua frequência no Brasil, acabou se transformando quase na regra de trânsito, com o fato de que alguns costumes judaicos, quando praticados e repetidos por muitas gerações, ganham força quase de lei. מנהג אבותינו, minhag avotêinu, é o termo técnico para quando isso acontece.

Quem já esteve neste papel de explicar um conceito complexo sabe que, muitas vezes, estabelecer uma analogia com algo conhecido ajuda muito para que as pessoas consigam começar a compreender do que falamos. No entanto, a busca por analogias e metáforas faz parte, não apenas de como explicamos conceitos complexos mas também de como os entendemos. Na Introdução do seu livro “Metaphors we live by”, um clássico no assunto, George Lakoff e Mark Johnson afirmam que “o nosso sistema conceitual ordinário, em termos daquilo que pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico em essência. Os conceitos que governam nossos pensamentos não são apenas assunto do intelecto. Eles também governam o funcionamento da rotina, até os detalhes mais mundanos.” 

Quando pensamos em Deus, as metáforas são essenciais. A pastora Carolyn Jane Bohler afirma a este respeito: “Ainda que nossas metáforas de Deus não sejam descrições formais, não há forma de pensar em Deus sem metáforas. Nossas metáforas apontam para o Deus no qual acreditamos e o apontar é vivenciar. Se “apontamos”, emocional, mental e espiritualmente para Deus como Aquele que conforta, então é provável que vivenciemos conforto. Se apontamos para Deus como Capataz, podemos ter a experiência de exigências de Deus.”

Os Rabinos da antiguidade reconheciam o poder das metáforas (ou משל, mashal, em hebraico) e abusavam delas nos seus midrashim. Uma das metáforas mais recorrentes para falar de Deus nos textos rabínicos era falar de Deus como Rei, uma metáfora que, por sinal, se repete na fórmula clássica das bençãos: ברוך אתה ה׳, אלוהינו מלך העולם, Baruch Atá Adonai, Elohêinu Mélech haOlám, "Você é Abençoado, ה׳, nosso Deus, Rei do Universo". Nestes midrashim rabínicos pensar em Deus como Rei, lhes ajudava a pensar como se relacionar com o Divino, como honrar a Deus, mas também como entender as formas como Deus se relaciona com a humanidade. Será que somos o filho preferido de um Rei amoroso, que desculpa todos os erros sem punição? Ou será que somos o filho esforçado de um Rei distante que, apesar das nossas tentativas, nunca responde aos nossos pedidos? Quem mais vive no entorno do Rei? Algumas vezes, encontramos מלאכי השרת, malachei haSharêt, os anjos da Corte Celestial, que vivem ao redor de Deus e que, com frequência, por ciúmes tentam sabotar os esforços humanos. Outras vezes, encontramos o Rei na companhia do seu mordomo, um empregado especial que goza de toda a intimidade do Rei. O Rei se troca na sua frente, lhe faz os pedidos mais descabidos, pensa em voz alta sem se importar que o mordomo esteja ouvindo.

Um professor querido, o filósofo Moshe Halbertal, destaca que esta intimidade da qual desfruta o empregado não vem, necessariamente, de um lugar de dignidade, de “איש אל רעהו”, ish el re'êhu, "de uma pessoa com outra", e sim de um lugar de invisibilidade, como se o empregado fosse um móvel, uma “coisa” que está no quarto. De uma forma sutil, a mesma intimidade que eleva  a dignidade quando dirigida a uma pessoa querida pode ter efeito oposto e causar humilhação quando, na sua raiz, está a invisibilidade do outro.

Na parashá desta semana, talvez tenhamos uma destas situações em que a intimidade da qual desfruta o empregado pode ser entendida como evidência da sua dignidade ou da falta dela.

Após o falecimento de Sará, Avraham, com a idade já avançada, decide que é hora de buscar uma companheira para seu filho Itschak. Assim está escrito na Torá:
E Avraham disse ao servo sênior da sua casa, que tinha o comando de tudo o que ele possuía: “Ponha tua mão debaixo da minha coxa e te farei jurar por ה׳, o Deus do céu e o Deus da terra, que você não tomará uma esposa para meu filho das filhas dos cnaaneus, entre os quais eu habito, mas irá para a terra onde nasci e arranjará uma esposa para meu filho Itschak.”
Esta é claramente uma função importante — encontrar uma parceira para o filho através do qual, Deus garantiu a Avraham, se dará a continuidade de suas bençãos. E esta função, de imensa centralidade, Avraham confere ao seu servo mais experiente, aquele que liderava a equipe. Toda minha vida eu aprendi que este servo era Eliezer — mas o fato é que o texto mantem o “servo sênior de sua casa, que tinha o comando de tudo o que [Avraham] possuía” sem nome. O servo vai a Nahor, encontra Rivcá, negocia os termos do seu casamento com Itschak, a traz de volta. Em resumo: desempenha com excelência a função que Avraham havia lhe atribuído. E mesmo assim não sabemos o seu nome.

É a tradição rabínica, incomodada com a falta do nome do servo sênior, que  o identifica, em um midrash, como Eliezer. A única vez que o nome de Eliezer aparece na Torá é em uma reclamação de Avraham, pedindo a Deus um descendente para que suas posses não sejam todas entregues a Eliezer. 

Será que Eliezer era, para Avraham, como o móvel no quarto do Rei? Alguém com quem ele podia contar para desempenhar as tarefas mais sensíveis mas que não merecia o tratamento de dignidade com que ele recebeu, por exemplo, os três homens que vieram visitá-lo, a quem chamou de “meus senhores”, lhes lavou os pés e lhes serviu comida? Será que a intimidade com o mestre veio às custas de ser percebido como um igual, alguém que merece exatamente o mesmo tratamento digno?

Vivemos uma época da mecanização de todos os nossos relacionamentos. Achamos que somos amigos de pessoas com quem nunca trocamos uma palavra porque é isso que as plataformas das redes sociais nos dizem. Por isso, contamos nossos amigos aos milhares… Ao mesmo tempo, a tecnologia nos afastou das pessoas com quem nos relacionamos. Antes, encontrávamos o vendedor da loja cara-a-cara, quem sabe sentávamos ao seu lado na sinagoga. Tínhamos com ele uma relação respeitosa, sabíamos que o tom da conversa teria impacto em outras instâncias de relacionamento. Mesmo antes das redes sociais, isso mudou e passamos a ter relações profissionais e comerciais com pessoas completamente fora dos nossos círculos sociais, a nos relacionar com atendentes de call center com os quais não desenvolvíamos o mesmo tipo de relacionamento respeitoso. Nas redes sociais, a distância e a possibilidade do quase-anonimato permitiram que desenvolvêssemos condutas ácidas que acabaram corroendo também o tecido social fora do mundo virtual.

Quantas vezes não cometemos, também nós, o pecado do Rei e tratamos aqueles que nos servem de uma forma muito distinta daquela que reservamos para as pessoas que consideramos “iguais”? Quantos de nós sabem o nome dos porteiros do seu prédio, da equipe de limpeza da sua empresa? Quantos de nós tratam o direito da empregada doméstica ao descanso com o mesmo afinco com que tratam do seu direito às férias? Quantos de nós ficaremos irritados ao receber uma mensagem profissional  não urgente no celular no meio do feriado ou no meio da noite mas não pensamos duas vezes antes de enviar mensagens muito parecidas para nossas equipes?

Hoje nós homenageamos as quase 90 pessoas que compõem a equipe desta casa e eu preciso confessar que sou culpado de várias dos pecados aos quais fiz referência acima: por exemplo, não saber o nome de vários deles e mandar mensagens em horários inapropriados ao mesmo tempo que me irrito quando fazem isso comigo. Muito além dos rabinos, chazanim e músicos que vocês vêem sempre na tela, há uma grande equipe — grande em número, em competência e em dedicação — que constrói esta comunidade e que nem sempre recebe o merecido crédito. Em breve os nomes de cada um deles aparecerão na tela e eu peço para que vocês tomem o cuidado de lerem-no com atenção, com o carinho que cada um de nós merece. 

Hoje nós queremos dizer à nossa equipe: nós te enxergamos, nós te respeitamos e somos orgulhosos por poder contar com cada um de vocês no nosso time.
Pela imensa dedicação de cada um de vocês, nosso imenso תודה רבה, todá rabá, muito obrigado e um Shabat Shalom muito carinhoso.


[1] George Lakoff e Mark Johnson, Metaphors we live by (2003), p. 3
[2] Carolyn Jane Bohler, God the what? What our Metaphors for God Reveal about Our Beliefs in God (2008), p.xiii.
[3] Gen. 24:1-3
[4] Gen. 15:2