quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Podcast "E Eu com Isso?" - Ep.80: O que o judaísmo diz sobre o aborto?

(texto originalmente publicado em https://open.spotify.com/episode/7F5m3JDv5y0y58GcoiZZAR)

Nos últimos dias, a discussão sobre o aborto tomou conta do país depois que uma menina de apenas 10 anos passou pelo procedimento, em Recife. Ela foi abusada sexualmente por um tio desde os 6 anos de idade e acabou engravidando. Semana passada, protestos tomaram conta das ruas em Israel, após o estupro coletivo de uma adolescente vir à tona. O crime no Brasil é mais comum do que se pensa, o que leva 6 meninas entre 10 e 14 anos de idade a abortar todos os dias. Em Israel, as leis sobre aborto são mais flexíveis se comparadas à legislação brasileira. Aqui o procedimento só é permitido em casos de estupro, anencefalia do feto e quando existe risco à vida da gestante. Mesmo assim, não é raro que nesses casos o Estado e até mesmo a Igreja tente intervir para que a interrupção da gravidez não aconteça, como vimos ser noticiado. Mas como o Judaísmo enxerga a questão do aborto? Como a discussão sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é vista a partir de uma perspectiva judaica e feminista? Nossos convidados são Rogério Cukierman, que é rabino na Congregação Israelita Paulista, e Bruna Zolfan, feminista e ativista pelos direitos das mulheres. Apresentação: Anita Efraim e Ana Clara 'Malka' Buchmann O que diz a lei israelense sobre o aborto: http://institutobrasilisrael.org/noticias/comportamento/o-que-diz-a-legislacao-israelense-sobre-o-aborto

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Prepare-se para as Grandes Festas 5781: Shofarot

A busca pela mais absoluta justiça

Nesses dias, a discussão sobre o “abuso de poder religioso” no Supremo Tribunal Federal trouxe de volta à ordem do dia a questão sobre a relação entre religião e política ou, colocado de outra forma, qual participação critérios religiosos devem ter na vida pública. De um lado, o Brasil é um país laico, onde vigora (ou deveria vigorar) a separação entre religião e estado; de outro, as religiões acabam definindo valores e posições políticas de seus integrantes. Religiões não se ocupam apenas do metafísico, da relação do ser humano com o Divino, mas também da relação entre as pessoas, das formas como nos tratamos e como organizamos nossas sociedades. O judaísmo coloca especial atenção à forma como tratamos os segmentos mais vulneráveis e oprimidos das nossas comunidades e coloca a proteção deles na categoria de obrigação religiosa. O rabino Abraham Joshua Heschel expressou esse conceito de forma bastante clara quando, ao terminar uma marcha pelos direitos civis dos afro-americanos ao lado do Reverendo Martin Luther King Jr. em 1965, afirmou “para muitos de nós, a marcha de Selma a Montgomery foi sobre protesto e oração. Pernas não são lábios e andar não é se ajoelhar. E, no entanto, nossas pernas entoaram canções. Mesmo sem palavras, nossa marcha era reza. Senti que minhas pernas estavam rezando.” [1]

A parashá desta semana, Shoftim, está entre aquelas que coloca as questões de organização social no centro das preocupações judaicas. Entre os temas que aborda estão a organização do sistema judicial, critérios para a escolha de monarcas e normas para sua conduta, alertas para falsos profetas que abusem do nome de Deus para avançar seus objetivos pessoais e regulação para conduta ética em situações de guerra. Entre suas frases icônicas, está “Tsedek, tsedek tirdof”, “a mais absoluta forma de justiça você deve buscar”. [2]

A busca por justiça continua nos nossos dias, assim como a discussão sobre qual seria “a mais absoluta forma de justiça” que devemos buscar. Para alguns, trata-se de estabelecer as estruturas de um sistema judicial que trate a todos de forma idêntica, sem considerar as condições subjetivas; para outros, a definição vai na direção contrária e a justiça verdadeira só pode ser estabelecida quando compreendemos os contextos que levam cada um dos agentes a agir de determinada forma. Paradoxalmente, encontramos no judaísmo elementos que dão sustentação a essas duas abordagens.

Qualquer que seja nossa visão para um cenário no qual a justiça reine, estamos muito longe dele e temo que estejamos caminhando no sentido contrário, aprofundando as injustiças na sociedade brasileira. Nesse contexto, é fundamental que não normalizemos esta conjuntura e continuemos buscando “a mais absoluta forma de justiça.”

Elie Wiesel nos conta que uma pessoa justa que vivia na cidade de Sdom, onde esta qualidade era rara, e que andava pelas ruas da cidade protestando pelos atos de injustiça que testemunhava. A cidade ria dele e do seu protesto. Finalmente, uma pessoa jovem lhe perguntou por que continuava protestando mesmo quando era claro que ninguém prestava atenção. A resposta da pessoa justa deve servir de alerta para a situação em que vivemos hoje: “no começo, eu achava que podia mudar as pessoas. Hoje, eu reconheço que não posso. Mesmo assim, se eu continuar a protestar, eu terei prevenido que os outros me mudem.” [3]

Que a busca pela justiça e a preocupação com aqueles que sofrem os maiores impactos do ambiente injusto em que nos encontramos continuem determinando nossos atos e que consigamos encontrar parceiros e aliados que nos ajudem nesse processo.


Shabat Shalom!


[1] Michael Shire, “The Jewish Prophet: Visionary Words from Moses and Miriam to Henrietta Szold and A.J. Heschel”, p. 121.
[2] Deut. 16:20
[3] Harvey J. Fields, “A Torah Commentary for Our Times: volume three, Numbers and Deuteronomy”, p. 141.




sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Dvar Torá: as muitas faces da realidade (CIP)

Nas últimas semanas, depois de muito ensaiarem e depois de terem assistido todos os filmes, meus filhos resolveram ler os livros do Harry Potter. Pra acompanhar essa leitura, cada vez que eles terminam um livro, a gente assiste o filme de novo e eles ficam me contando em cada cena como o livro é diferente do filme.

Apesar do seu caráter super-natural, das mágicas e das plataformas de trem escondidas dentro um pilar, a realidade de Harry Potter reflete uma certa ponto de vista também da nossa realidade. Dumbledore, o mago que é diretor da escola em que Harry estuda, é um sujeito acima de qualquer crítica, que parece sempre conseguir identificar o que é o bom e o que é ruim e que até aparenta saber o que os outros estão pensando ou tramando, o que sempre me deixou intrigado, me perguntando porque Dumbledore não impedia, desde o princípio, as armadilhas plantadas e tramas planejadas por seus oponentes. Voldermort, o grande vilão da série, por outro lado, representa tudo que há de ruim. É o mal absoluto que devemos, com a mais absoluta certeza, combater.

Bem diferente de Anakin Skywalker, um dos vilões de Guerra nas Estrelas, outra série de filmes que eu estou revendo, dessa vez sem os meus filhos. Anakin aparece nos primeiros filmes da série como uma criança fofa, esperta, cheia de vida, mas de alguma forma tentado pelo grande poder oferecido pelo lado negro da força; mais tarde, conforme os filmes foram avançando, esta atração pelo lado negro o leva a se transformar em Darth Vader, o principal vilão dos filmes 4, 5 e 6. Mas, no final, ainda é possível ver a humanidade e a bondade que se escondiam naquele corpo robótico.

De um lado, bem e mal absolutamente distintos, sem se misturar; de outro, uma realidade mais complicada, em que o bem vira mal, pra virar bem de novo mais tarde.

A Torá muitas vezes parece refletir um ponto de vista de absolutos: escolham entre, de um lado, o bem, a benção e a vida; e de outro lado, o mal, a maldição e a morte. No comecinho da parashá desta semana, esta perspectiva é formulada novamente: “רְאֵה אָנֹכִי נֹתֵן לִפְנֵיכֶם הַיּוֹם בְּרָכָה וּקְלָלָה׃”, “vejam, hoje eu coloco na sua frente a benção e a maldição.” [1] Dadas estas opções, a decisão não parece tão complicada — quase como a piada que diz que alguém prefere ser lindo, rico e feliz a ser feio, pobre e triste. Em geral, no entanto, nossas escolhas não são entre possibilidades em que tudo o que queremos está em uma coluna e tudo o que rejeitamos está na outra.

Em muitas situações, talvez na maior parte delas, os cenários não são absolutos, com tudo bom ou com tudo ruim. Escolher implica avaliar cenários, considerar suas implicações, seus riscos e consequências. Ponderar o que cada escolha tem de bom e de ruim, qual é sua benção e sua maldição e entender que não dá para escolher uma sem receber a outra junto.

Um exemplo: esta semana eu li e escutei muita coisa sobre a reabertura das escolas. A esta altura, já deveria estar claro para todos nós que, diferentemente do que muitos disseram no seu início, a pandemia não atingiu todos os grupos sociais da mesma forma. As pesquisas indicam que nos bairros mais nobres, menos de 10% das pessoas já foram expostas ao coronavírus; enquanto nas comunidades de menor renda, são mais 20% os que apresentam o mesmo indicador [2]. Isso é reflexo de muitos fatores, incluindo o fato de que pessoas de menor renda têm menor possibilidade de trabalho remoto e de isolamento social. Além disso, há hospitais públicos na periferia nos quais mais de 90% dos pacientes com Covid encaminhados para a UTI faleceram [3]; a média geral no Brasil é de 34% dos pacientes encaminhados para UTI falecerem [4]. Por outro lado, são justamente as comunidades mais carentes nas quais as famílias mais dependem da merenda escolar como fonte regular de nutrição para as crianças, onde as crianças têm menos condição de acesso às plataformas de ensino a distância e por isso estão sendo muito mais impactadas na sua educação com a suspensão das aulas e cujos pais, sem reservas financeiras, precisam que seus filhos estejam na escola para que eles possam voltar a trabalhar e recuperar pelo menos parte da renda perdida durante a pandemia. Nesse cenário, a escolha entre manter os filhos em casa ou exigir do poder público o retorno das aulas com maior risco de contaminação parece ser entre duas maldições. Não há benção entre as escolhas….

Tratar essa questão como óbvia ou condenar categoricamente aqueles que defendem uma ou outra solução é menosprezar sua complexidade. Em várias instâncias a tradição rabínica soube reconhecer que algumas vezes temas apresentados pela Torá em termos absolutos merecem maior sofisticação de análise.

Na meio parashá desta semana encontramos o conceito do ano sabático, no qual todas as dívidas eram canceladas [5]. O objetivo desta norma é claro: impedir o ciclo no qual algumas pessoas vivem sempre com dívidas, sempre com a corda no pescoço, nunca se sentindo totalmente livres. Em algum momento, no entanto, as pessoas perceberam que, como consequência deste preceito, os empréstimos não eram mais concedidos e as pessoas em situação vulnerável, que precisavam de ajuda financeira, tinham sido prejudicadas por uma legislação cujo objetivo claro era protegê-las. Sob a liderança de Hilel, um sábio do séc 1 aEC, foi criado um mecanismo, chamado Prozbul, que suspendia o cancelamento das dívidas e que permitiu, assim, que as pessoas pudessem contrair empréstimos quando precisassem [6]. Nem só bom, nem só ruim — as realidades são complexas e suas soluções precisam endereçar esta complexidade.

Um outro exemplo da tradição judaica, desta vez mais simbólico. O Lechá Dodi, que cantamos há pouco, foi escrito no século 16 na cidade de Tsfat, que nessa época, tinha se tornado um centro da mística judaica. Suas estrofes contém muitas camadas de significados: o casamento do qual falamos é do povo judeu com o Shabat, mas também de Deus com o povo judeu ou do casamento da Shchiná, uma manifestação feminina de Deus, com haKadosh Baruch Hu, uma manifestação masculina do Divino. Tantas uniões que celebramos no Shabat e, no entanto, as chamas das duas velas que acendemos não se tocam. Por outro lado, na havdalá, a cerimônia com que encerramos o shabat no sábado à noite, fazemos uma reza em que abençoamos as distinções entre a luz e a escuridão, entre o sagrado e o comum, entre o shabat e os outros dias da semana, entre o povo judeu e o resto da humanidade. Tantas distinções, tantas separações; a vela que usamos, no entanto, precisa ter pelo menos dois pavios e suas chamas precisam se tocar. A união do cabalat Shabat não é absoluta, nem a separação da havdalá o é. Quando abençoamos a vela da havdalá, fazemos um movimento com as mãos para que consigamos enxergar áreas iluminadas e sombrias , luz e escuridão, nas palmas das nossas mãos.

Um ditado americano diz “be careful with what you hope for”, “tenha cuidado com aquilo que você deseja”. Algumas vezes, as bençãos pelas quais mais esperamos se tornam maldições; outras vezes, algo que sempre evitamos, a maldição que sempre tememos, acabam se tornando as maiores bençãos das nossas vidas.

Nessa realidade multifacetada, categorias estanques não dão conta de descrevê-la. Certamente, não nos ajuda acreditar em absolutos, grupos que são tudo de bom ou outros que são o mal absoluto. 

Que nesse shabat, consigamos sentir o amargo no mel e o doce no limão; a luz que se esconde na escuridão e o escuro que não vemos por causa da luz. Que abandonemos as frases prontas, as visões maniqueístas e que, com coragem, apreciemos toda a complexidade da realidade.

Shabat Shalom!


[1]  Deut. 11:26.
[2]  https://soundcloud.com/revistapiaui/luz-no-fim-da-quarentena-40-18
[3] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml
[4] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/08/10/com-a-pratica-medicos-aprendem-a-tratar-covid-e-salvam-mais-vidas-nas-utis.htm
[5] Deut. 15:1-3.
[6] Mishná Seviit 10:3-6


sexta-feira, 31 de julho de 2020

A montanha-russa de Av e a responsabilidade pelas nossas escolhas

Até que a labirintite me afastou dos parques de diversões, eu adorava andar em montanhas-russas, especialmente naquelas radicais com muitos loops. Tinha algo que me encantava naquela sucessão de subidas e descidas rápidas, em olhar o mundo de ponta cabeça para, logo em seguida, vê-lo em pé de novo. Estes dias, estamos vivendo a montanha-russa do calendário judaico: na semana que está terminando, tivemos Tishá beAv (9/Av), considerada a data mais triste do calendário, ponto focal de tragédias da história judaica e que a leitura rabínica associou à prática de sinat chinam, o ódio injustificado; seis dias depois teremos Tu beAv (15/Av), em que celebramos ahavat chinam, o amor sem motivo, e que a Mishná considera um dos dois dias mais felizes do ano [1]. Do dia mais triste a um dos mais felizes em seis dias, um desafio que deixa nossos sentimentos confusos, sem saber muito bem se estamos de pé ou de ponta-cabeça…. 

A parashá desta semana, VaEtchanán, também tem a sua dose de altos e baixos, incluindo passagens que lidam com os temas do ódio e do amor. É nela que encontramos uma das frases mais famosas de toda a Torá: “Sh’má Israel, Adonai Eloheinu, Adonai Echad”, “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um”, que pronunciamos na liturgia diária duas vezes ao dia. O parágrafo que segue esse verso (e que também faz parte da liturgia diária) começa dizendo que devemos amar a Deus “com todo o nosso coração, com toda a alma e com toda a nossa força.” [2] Ao longo dos séculos, nossos comentaristas têm questionado, de um lado, se é possível impor a obrigação de amar e, de outro lado, o que quer dizer amar com o coração, com a alma e com a força. Uma das respostas que eu mais gosto é aquela que diz que demonstramos nosso amor por Deus por meio  das nossas ações e da forma como tratamos a criação de Deus (o planeta, os animais e, principalmente, as outras pessoas, que foram criadas à imagem e semelhança de Deus). O verso, portanto, não está legislando nossos sentimentos mas orientando as nossas ações e nos dizendo que devemos agir dessa forma em tudo o que fazemos, envolvendo nossas emoções, nossa razão e nossos recursos nesse processo. Quando conduzimos nossas vidas através do respeito, da generosidade e da empatia, tornamos concreta a ideia de amor sem motivo que celebramos em Tu beAv.

A montanha-russa da parashá faz uma curva e no seu finalzinho temos instruções sobre como os Israelitas deveriam tratar os povos que habitavam a terra de Israel quando lá chegassem [3]. As instruções falam da destruição desses povos, com imposições não negociadas e eliminando completamente suas práticas religiosas. Em linhas gerais, se parece com o que grupos religiosos fundamentalistas fazem com relação às outras religiões, as mesmas condutas que lamentamos em Tishá beAv quando foram praticadas contra o povo judeu. Considerando as formas como condenamos o ódio gratuito, é fundamental que reconheçamos o incômodo ao lermos essas passagens e que rejeitemos as práticas que elas implicam. O respeito à vida de todo ser humano, o pluralismo e a tolerância religiosa se tornaram, ao longo dos séculos, pilares fundamentais da tradição judaica e têm que determinar nossa leitura das passagens problemáticas da nossa tradição.

O rabino Avraham Samuel Benjamin Sofer, que viveu na Hungria no século 19, perguntou por que o nome de Deus aparece duas vezes no Sh’má. Seria mais direto, ele argumentava, se o texto dissesse: “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus e é um.” Para ele, o objetivo de Moshé para esta citação dupla seria deixar claro que tudo em nossas vidas vem de Deus, nossos sucessos e nossos fracassos, os tempos em que temos muita sorte e aqueles nos quais tudo dá errado. Mesmo que tudo venha de Deus, a Torá nos instrui claramente a reconhecer o que é bom e o que é ruim, o que gera a vida e o que nos leva à morte, e a escolhermos o que é bom e a vida [4]. Da mesma forma, todas estas passagens fazem parte da Torá e da nossa tradição, mas precisamos reconhecer quais passagem nos encaminham para uma vida de respeito, empatia, pluralismo e parceria e escolhê-las, ao mesmo tempo em que indicamos claramente aquelas cujo caminho rejeitamos. O trabalho não é fácil, mas certamente leva a uma vida de muito mais significado.

Shabat Shalom!

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Dvar-Torá: a responsabilidade pela reconstrução pós-pandemia (CIP)

Minhas escolhas musicais provavelmente não fariam o mesmo sucesso que as lindas canções que o Alê tem cantado pra gente toda semana. Ao lado de escolhas nada polêmicas, de velhas e novas vozes da MPB, de rock clássico e dos sucessos dos anos 80, eu gosto do que um crítico há alguns anos chamou de “rock irreverente” [1], mas que eu acho que faz parte mesmo é do lado irreverente da MPB. Um estilo que unia estilos musicais diversos com letras divertidas, quase piadas musicadas, mas nos convidavam também a reflexões profundas, como muitas vezes só o humor pode. O estilo incluei bandas como Língua de Trapo e Premeditando o Breque, a Banda Vexame, Os Mulheres Negras e outros. Com um papel de honra nesta lista de artistas, aparece Tom Zé, co-responsável pela Tropicália que encantou mais David Byrne do que seus conterrâneos. Entre as músicas do Tom Zé que eu mais gosto (e quem me conhece vai reconhecer facilmente o motivo), chamada “Tô”, anuncia:

Tô bem de baixo pra poder subir

Tô bem de cima pra poder cair

Tô dividindo pra poder sobrar

Desperdiçando pra poder faltar (…)

Eu tô te explicando pra te confundir

Eu tô te confundindo pra te esclarecer

Tô iluminado pra poder cegar

Tô ficando cego pra poder guiar [2]

Há pouco mais de dez anos, uma banda que tem entre seus membros o Arnaldo Antunes (que foi do Titãs) e o Edgard Scandurra, que foi do Ira!, retomou o estilo. Uma das suas músicas que eu mais gosto conta uma historinha que todo pai ou mãe com os filhos no carro já vivenciou:


Hoje é dia de festa do meu melhor amigo 

Eu tô dentro do carro mamãe tá dirigindo 

O trânsito atormenta está em câmera lenta 

Eu sigo perguntando mamãe tamo chegando? 

Mamãe tamo chegando? Mamãe tamo chegando? [3]

Percebam que a pressa de chegar está diretamente ligada ao que nos espera ao final da viagem — nunca tive que lidar com meus filhos reclamando pra chegar logo para tomar vacina ou para ajudar a limpar a casa.

Se uma viagem no carro que se estende um pouco mais gera esse nível de ansiedade nos nossos filhos, imagina uma jornada de 40 anos  pelo deserto que levaria os hebreus à Terra Prometida? Haja antiansiolítico!

Na parashá desta semana, os israelitas estavam começando a considerar como será a vida depois que eles cheguem à Terra de Israel: uma vida em direta oposição àquela que eles tinham no Egito, uma vida na qual eles seriam livres e autônomos e onde teriam a responsabilidade de construir uma sociedade que se importasse com todos, que tivesse ferramentas de proteção aos necessitados, especialmente para seus setores mais vulneráveis, que  eram exemplificados na Torá pela viúva, pelo órfão e pelo estrangeiro.

Duas tribos, no entanto, não compartilhavam deste sonho de sociedade — as tribos de Reuven e Gad pediram para não entrar na terra; para não cruzarem o Jordão [4]. Queriam ficar do lado de lá, onde há bom pasto para seu gado. A resposta de Moshé foi direta: “vocês querem que seus irmão vão à guerra enquanto vocês ficam aqui?” [5]

Em outra passagem da Torá o sentimento expresso por Moshé já havia sido codificado: “לֹא תַעֲמֹד עַל דַּם רֵעֶךָ”, “não fique indiferente ao sangue do teu próximo” [6], e re-afirmado na literatura rabínica, “אַל תִּפְרֹשׁ מִן הַצִּבּוּר”, “não se separe da sua comunidade” [7].

A pandemia de Covid-19 tem revelado nosso lado mais generoso — a comunidade judaica, em particular, têm feito projetos lindos de atenção aos segmentos mais vulneráveis, através do Ten Yad, da Unibes, do rabino Noach. Aqui na CIP, o Lar das Crianças tem feito um trabalho realmente de se tirar o chapéu com as famílias dos jovens que assiste; nosso voluntariado desenvolveu estratégias para contactar semanalmente os idosos na comunidade e saber do que eles precisam; nosso novo grupo de Jovens Adultos tem desenvolvido projetos de atendimento à população de rua.

Mas a pandemia também tem agravado a má distribuição de renda;  impedindo uma parte considerável dos jovens de seguir seus estudos por falta de equipamento com acesso à internet, especialmente em famílias com um número elevado de estudantes; forçado os segmentos mais vulneráveis a continuar trabalhando sub-empregado nos aplicativos de entrega para poder pagar pelo aluguel e pela comida; a usar o transporte público lotado; a usar um sistema de saúde que, apesar da imensa utilidade do SUS, não estava equipado para lidar com uma crise de saúde desta magnitude, Não é de se espantar, portanto, que as taxas de mortalidade dos diferentes bairros de São Paulo sejam radicalmente diferentes [8]. A forma como respondermos a estes desafios nos definirá como sociedade!

Eu tô cansado da quarentena. Não aguento mais ficar limitado às paredes do meu apartamento; sem poder sair de vez em quando pra tomar sorvete de maracujá na Baccio ou de caminhar pela Paulista de uma ponta a outra e voltar. De verdade, eu tô cansado e eu imagino que vocês estejam também e que, como eu, não possam mais esperar pra entrar na terra prometida do retorno ao contato presencial, do poder abraçar e dar as mãos e sair pra jantar junto. 

Nessa nova terra prometida, teremos uma nova chance para estruturar nossa sociedade. Seremos chamados a cruzar o rio, nos expor ao risco e abrir mão de alguns privilégios para garantir que a sociedade que estivermos construindo seja justa e que tomemos conta de quem mais precisa (e abrir mão de privilégios pode implicar pagar mais pela entrega nos aplicativos para garantir que os motoboys possam se alimentar quando estiverem entregando nossas refeições e viver em condições dignas ou considerarmos as soluções para o transporte público na periferia e não só para o nosso bairro quando formos escolher o prefeito daqui a alguns meses) — ou poderemos decidir ficar do outro lado do rio, sem nos expormos e sem a responsabilidade pelo nosso destino comum.

A resposta de Moshé às tribos que queriam ficar do lado de lá do rio funcionou e, no final, eles se juntaram às demais tribos na batalha pela conquista da terra que lhes tinha sido prometida [9]. Que neste 2020, possamos também ser todos nós parceiros na construção da nossa terra prometida, uma sociedade mais igual, mais acolhedora, mais inclusiva e mais justa

Shabat Shalom!


[1] https://vejasp.abril.com.br/blog/memoria/os-artistas-que-eram-uma-piada/
[2]  https://open.spotify.com/track/2YXpMdEMEoy48OPr6VTzpI?si=tNaz9JszRVennvrWXqDaPA
[3]  https://open.spotify.com/track/2O9ZjZvUlEp9xBQp60XznN?si=jtUXd6ziQCKRfq1szJG2BQ
[4] Num 32:1-5
[5] Num 32:6-15
[6] Lev. 19:16
[7] Pirkei Avot 2:4
[8] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/24/bairros-com-mais-negros-concentram-maior-numero-de-mortes-pela-covid-19.htm
[9] Num 32:16-27



sexta-feira, 10 de julho de 2020

Quando reviver a história é reforçar o trauma

Várias obras de ficção retratam um cenário distópico em que a Segunda Guerra Mundial tivesse terminado de uma outra forma. Atualmente, duas séries desenvolvem essa perspectiva: “O Homem no Castelo Alto” (Amazon Prime) e “O Complô Contra a América” (HBO). Eu me lembro de ter assistido um filme com um roteiro parecido nos anos 1990. Chamava-se “A Nação do Medo” (“Fatherland”, no original em inglês) e retratava a investigação de um assassinato na Alemanha de 1964, ainda sob o regime nazista, que acabava revelando as atrocidades cometidas e encobertas pelo regime, em particular a Shoá.

Às vezes, imaginar como seria o mundo em cenários históricos alternativos nos ajuda a entender melhor o que estamos vivendo hoje. Imagine se no cenário descrito no filme, um judeu tivesse conseguido esconder sua identidade e continuasse vivendo sob o regime nazista algumas décadas após o final da guerra. Pense como seria para ele enviar seus filhos à escola chamada Rudolph Hess, dirigir pela estrada Heinrich Himmler, ir a concertos no auditório Adolf Eichman, passar diariamente pelas estátuas homenageando Adolf Hitler. Imagine como seria se seus melhores amigos considerassem heróis pessoas que ele sabia serem responsáveis pelo extermínio de seu povo – e como seria se a memória dessas figuras históricas fosse considerada “patrimônio nacional.”

Como respondemos quando descobrimos que pessoas que admiramos tinham falhas morais sérias? Que um ator de quem gostamos praticava atos de assédio sexual com frequência? Que uma líder política que considerávamos séria enriqueceu enquanto ocupava cargos públicos? Que um escritor cujas histórias nos encantam também expressou opiniões racistas? Devemos apagar suas memórias, remover suas fotos dos livros de história, suas composições dos nossos sidurim? 

E se não estivéssemos falando de “falhas morais”, mas de atos concretos, crimes contra a humanidade, genocídio e escravização? Isso justificaria que estátuas fossem removidas das nossas praças? Que seus nomes fossem retirados das nossas ruas e estradas?

Na parashá desta semana temos a conclusão de uma passagem que começou na semana passada. Pinchás vê um homem israelita trazer uma mulher midianita para o acampamento e mata os dois. De acordo com a Torá, a resposta de Deus foi elogiosa a Pinchás, apontando sua ação como um exemplo a ser seguido. As camadas de comentários que se seguiram ao longo dos séculos, no entanto, foram bem menos generosas em suas análises destes atos. O Talmud de Jerusalém, por exemplo, afirma que a condenação à violência vem desde os tempos bíblicos e que Moshé e os anciões já tinham condenado a ação. Em outro exemplo, os massoretas, que entre o sexto e o décimo século da Era Comum codificaram a forma como os rolos de Torá são escritos e as entonações que usamos para ler o texto até hoje, estabeleceram que deve haver uma quebra em uma das letras da palavra “shalom” no pacto de paz (“brit shalom”) que Deus estabeleceu com Pinchás. Essa quebra simboliza o choque desses escribas com a ideia de que um pacto de paz fosse o prêmio por um ato da mais profunda violência. Pinchás, apesar de suas ações, continua no texto bíblico, assim como a aprovação expressa por Deus. Os comentários e a apresentação gráfica do texto, no entanto, deixam claro nosso choque e discordância com este tipo de ação. Além disso, essa passagem da Torá serve como oportunidade para reafirmarmos nosso efetivo compromisso com a paz e com a solução de problemas sem apelarmos à violência.

Em várias situações, a tradição judaica nos encoraja a ir além de relembrar nossa experiência histórica e a buscar efetivamente revivê-la. É assim que no seder de Pêssach revivemos a saída de Mitsrayim e nos sentimos pessoalmente libertados, e que na manhã de Shavuot, ao ler a passagem dos Dez Mandamentos, recebemos a Torá novamente. Imaginem, no entanto, reviver episódios traumáticos do ponto de vista pessoal ou comunitário? Imaginem se a cada Tishá BeAv tivéssemos que nos esforçar para reviver as torturas da Inquisição ou que durante a Contagem do Omer precisássemos reviver as tragédias que se abateram sobre os alunos de Rabi Akiva. De alguma forma, é isso que pedimos a pessoas cujos ancestrais foram escravizados, dizimados e oprimidos por algumas das figuras históricas cujos nomes e estátuas aparecem em destaque em espaços públicos; lhes impomos reviver sua opressão a cada vez que frequentam estes espaços.

Que aprendamos da história de Pinchás que não precisamos (nem devemos!) apagar nossa história, mas que é preciso indicar claramente onde, quando e porque recusamos condutas tomadas por nossos antepassados (até por nossos líderes) que não honram os valores que queremos perpetuar.

Shabat Shalom