sexta-feira, 10 de julho de 2020

Quando reviver a história é reforçar o trauma

Várias obras de ficção retratam um cenário distópico em que a Segunda Guerra Mundial tivesse terminado de uma outra forma. Atualmente, duas séries desenvolvem essa perspectiva: “O Homem no Castelo Alto” (Amazon Prime) e “O Complô Contra a América” (HBO). Eu me lembro de ter assistido um filme com um roteiro parecido nos anos 1990. Chamava-se “A Nação do Medo” (“Fatherland”, no original em inglês) e retratava a investigação de um assassinato na Alemanha de 1964, ainda sob o regime nazista, que acabava revelando as atrocidades cometidas e encobertas pelo regime, em particular a Shoá.

Às vezes, imaginar como seria o mundo em cenários históricos alternativos nos ajuda a entender melhor o que estamos vivendo hoje. Imagine se no cenário descrito no filme, um judeu tivesse conseguido esconder sua identidade e continuasse vivendo sob o regime nazista algumas décadas após o final da guerra. Pense como seria para ele enviar seus filhos à escola chamada Rudolph Hess, dirigir pela estrada Heinrich Himmler, ir a concertos no auditório Adolf Eichman, passar diariamente pelas estátuas homenageando Adolf Hitler. Imagine como seria se seus melhores amigos considerassem heróis pessoas que ele sabia serem responsáveis pelo extermínio de seu povo – e como seria se a memória dessas figuras históricas fosse considerada “patrimônio nacional.”

Como respondemos quando descobrimos que pessoas que admiramos tinham falhas morais sérias? Que um ator de quem gostamos praticava atos de assédio sexual com frequência? Que uma líder política que considerávamos séria enriqueceu enquanto ocupava cargos públicos? Que um escritor cujas histórias nos encantam também expressou opiniões racistas? Devemos apagar suas memórias, remover suas fotos dos livros de história, suas composições dos nossos sidurim? 

E se não estivéssemos falando de “falhas morais”, mas de atos concretos, crimes contra a humanidade, genocídio e escravização? Isso justificaria que estátuas fossem removidas das nossas praças? Que seus nomes fossem retirados das nossas ruas e estradas?

Na parashá desta semana temos a conclusão de uma passagem que começou na semana passada. Pinchás vê um homem israelita trazer uma mulher midianita para o acampamento e mata os dois. De acordo com a Torá, a resposta de Deus foi elogiosa a Pinchás, apontando sua ação como um exemplo a ser seguido. As camadas de comentários que se seguiram ao longo dos séculos, no entanto, foram bem menos generosas em suas análises destes atos. O Talmud de Jerusalém, por exemplo, afirma que a condenação à violência vem desde os tempos bíblicos e que Moshé e os anciões já tinham condenado a ação. Em outro exemplo, os massoretas, que entre o sexto e o décimo século da Era Comum codificaram a forma como os rolos de Torá são escritos e as entonações que usamos para ler o texto até hoje, estabeleceram que deve haver uma quebra em uma das letras da palavra “shalom” no pacto de paz (“brit shalom”) que Deus estabeleceu com Pinchás. Essa quebra simboliza o choque desses escribas com a ideia de que um pacto de paz fosse o prêmio por um ato da mais profunda violência. Pinchás, apesar de suas ações, continua no texto bíblico, assim como a aprovação expressa por Deus. Os comentários e a apresentação gráfica do texto, no entanto, deixam claro nosso choque e discordância com este tipo de ação. Além disso, essa passagem da Torá serve como oportunidade para reafirmarmos nosso efetivo compromisso com a paz e com a solução de problemas sem apelarmos à violência.

Em várias situações, a tradição judaica nos encoraja a ir além de relembrar nossa experiência histórica e a buscar efetivamente revivê-la. É assim que no seder de Pêssach revivemos a saída de Mitsrayim e nos sentimos pessoalmente libertados, e que na manhã de Shavuot, ao ler a passagem dos Dez Mandamentos, recebemos a Torá novamente. Imaginem, no entanto, reviver episódios traumáticos do ponto de vista pessoal ou comunitário? Imaginem se a cada Tishá BeAv tivéssemos que nos esforçar para reviver as torturas da Inquisição ou que durante a Contagem do Omer precisássemos reviver as tragédias que se abateram sobre os alunos de Rabi Akiva. De alguma forma, é isso que pedimos a pessoas cujos ancestrais foram escravizados, dizimados e oprimidos por algumas das figuras históricas cujos nomes e estátuas aparecem em destaque em espaços públicos; lhes impomos reviver sua opressão a cada vez que frequentam estes espaços.

Que aprendamos da história de Pinchás que não precisamos (nem devemos!) apagar nossa história, mas que é preciso indicar claramente onde, quando e porque recusamos condutas tomadas por nossos antepassados (até por nossos líderes) que não honram os valores que queremos perpetuar.

Shabat Shalom

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Dvar Torá: Passos concretos em direção à Redenção (CIP)

Sabe quando você faz planos e só na hora de colocá-los em prática se dá conta de que o teu planejamento não levou em conta nem metade das complicações que poderiam aparecer?

Comigo, aconteceu um exemplo disso há quase quinze anos. Uma amiga tinha encomendado a um marceneiro uma cama em formato de carro para o seu filho quando ele era pequeno, com para brisa, espelho retrovisor, direção e até placa com o nome do menino. Agora, que a criança tinha virado um adolescente e não queria mais dormir dentro do carro, a amiga procurava um novo lar para a cama. Na mesma época, estava na hora do meu sobrinho trocar de cama e acabamos ficando com a cama do filho da amiga e pedido ao mesmo marceneiro que a reformasse antes de mandarmos ao nosso sobrinho. Poucos dias depois de ele ter recolhido a cama, ele nos liga: toda a madeira estava comprometida com cupim; só dava pra aproveitar as partes de plástico! Já tendo assumido o compromisso com o sobrinho, pedimos que ele fizesse uma cama nova, seguindo o projeto que ele mesmo tinha feito anos antes e o resultado ficou absolutamente magnífico — mas deu muito mais trabalho do que originalmente imaginado!

Uma coisa parecida aconteceu aqui na CIP. Nossos sidurim de Shabat estavam ficando velhos, as capas descolando, fascículos soltando… era raro encontrar um exemplar que estivesse inteiro. Decidimos fazer uma nova impressão e para isso lançamos uma campanha pedindo doações. Faríamos pequenas mudanças, correção de erros que tinham sido identificado ao longo dos anos, atualização de algumas partes da reza para se adequar a mudanças de que tinham acontecido na CIP ao longo dos mais de 20 anos desde a primeira impressão. A comunidade respondeu prontamente, buscando homenagear seus entes queridos nas páginas do sidur e as doações começaram a chegar. O problema aconteceu quando fomos buscar os arquivos para fazer as atualizações, descobrimos que só tínhamos os fotolitos, resquício de outra época tecnológica e que não permitia nenhuma alteração. Para quem doou e está surpreso que o sidur ainda não está pronto, este é o motivo: assim como a cama em formato de carro, o sidur teve que ser completamente refeito.

A boa notícia é que recebemos há algumas semanas as provas finais, que estamos revendo minuciosamente par que o sidur possa ficar pronto o mais breve possível. Como eu disse, além da re-impressão, teremos a atualização de algumas passagens e a inclusão de trechos do serviço.

A mudança da liturgia, que muitas vezes se torna muito mais polêmica do que precisaria ser, é — ao contrário do que muitos podem pensar — um ato de profundo respeito pela seriedade da reza. Conheço gente (incluindo gente que eu respeito profundamente, incluindo alguns dos meus professores no seminário rabínico) que afirma nas suas rezas o exato oposto daquilo em que realmente acredita. Quando confrontadas, estas pessoas dizem “mas estas são apenas as palavras da reza, ninguém acredita nelas”. Em resposta a esta postura, o rabino Mordechai Kaplan, um dos mais influentes pensadores do judaísmo plural do século XX, é famoso por ter dito “We must mean what we say when we pray”, “nós precisamos querer dizer o que dizemos quando rezamos”. Para aqueles que, como eu, acreditam no poder transformador da tfilá, é difícil entender como repetir diariamente palavras em que não acreditamos possa ser considerada uma forma de honrar a tradição.

Uma das mudanças na nova impressão do sidur tem a ver com uma linha da Amidá, a Grande Oração.  Se vocês virarem para as páginas 31 e 32 do sidur, as últimas linhas dizem המביא גואל לבני בניהם למען שמו באהבה, que literalmente está agradecendo a Deus “por trazer um redentor aos filhos dos seus filhos pelo Seu nome, com amor”. Tudo muito lindo, não fosse o fato de que boa parte dos judeus liberais não acreditam na vinda de um redentor, uma pessoa que irá, através da sua ação pessoal, transformar toda a nossa realidade. Esse conceito, na opinião de muitos — entre os quais eu me incluo — corre o risco de dar origens a líderes carismáticos e populistas, que desdenham das instituições e acreditam que eles, e somente eles, são capazes de fazer as transformações necessárias. 

Já há muitas décadas que muitos sidurim liberais, nos movimentos reformista, conservador e reconstrucionista, substituíram o termo “גואל”, “redentor” por “גאולה”, “redenção”. Acreditamos que o arco da história tem o potencial de nos levar a um mundo mais justo, mais equilibrado, mais humano — mas esta construção depende do esforço de cada um de nós.

Na primeira das duas parashiot desta semana, “Chucat”, Miriam morre em Kadêsh. A frase seguinte na Torá nos conta que o povo não tinha água — um midrash liga estes dois eventos e nos conta que havia uma pedra da qual jorrava água e que seguia Miriam pelo deserto. Era assim que o povo se mantinha hidratado enquanto Miriam estava viva; quando ela faleceu, parou de jorrar água da pedra.

Nesta nova impressão do sidur, adicionamos uma música por Miriam ao final da havdalá, a cerimônia com que encerramos o shabat [1]: 

מִרְיָם הַנְּבִיאָה עֹז וְזִמְרָה בְּיָדָהּ

מִרְיָם תִּרְקוֹד אִתָּנוּ לְהַגְדִּיל זִמְרַת עוֹלָם

מִרְיָם תִּרְקוֹד אִתָּנוּ לְתַקֵּן אֶת-הָעוֹלָם.

בִּמְהֵרָה בְיָמֵינוּ הִיא תָּבִיאֵנוּ אֶל מֵי הַיְשׁוּעָה.


Miriam, a profetiza, força e música na sua mão. 

Miriam, dance conosco para aumentar a música do mundo. 

Miriam, dance conosco para consertar o mundo. 

Em breve, ainda nos nossos dias, elas nos guiará para as águas da Redenção.

Ela vem logo depois da música por Eliahu haNaví, o profeta Eliahu, que, de acordo com uma tradição, virá em um Sábado à noite anunciar a chegada da Redenção. Eu gosto de pensar que cantamos por Eliahu haNaví no sábado à noite para lembrarmos que o descanso terminou e precisamos voltar a trabalhar para garantirmos que caminhemos em direção à Redenção.

Mas esse é um trabalho intenso, para o qual nem sempre conseguimos enxergar os resultados. É um fenômeno conhecido que ativistas por mudanças estruturais muitas vezes esgotam suas forças e abandonam seus projetos antes que eles dêem resultado. Por isso, clamamos a Miriam e por seu poço de água para garantirem que estejamos sempre nutridos pelo carinho da sua liderança, pela doçura da sua voz e da sua dança, e acima de tudo pela clareza da sua visão.

E o que devemos fazer para chegar a este caminho da Redenção, vocês podem perguntar… O lindo da tradição judaica é que ela nos dá este mapa de ação todo dia de manhã. Quem tiver o sidur Shabat Shalom físico em mãos pode abrir nas páginas 101 e 102, as Bençãos da Manhã que repetimos todo dia, que nos ensinam como um mundo redimido deve ser:   um mundo que reconheça a dignidade de todo ser humano criado à imagem de Deus; um mundo em que todos possamos praticar nossa fé religiosa sem opressão; um mundo em que sejamos todos livres; um mundo em que ajudemos todas as pessoas a superar as suas deficiências; um mundo em que ninguém passe frio ou more nas ruas das nossas cidades; um mundo que dê fim às guerras e seus prisioneiros; um mundo em que respeitemos a natureza e vivamos com ela em harmonia; um mundo em que não nos sintamos tão desorientados; um mundo em que todos tenham suas necessidades básicas atendidas; um mundo em que Deus nos dá força para caminhar nesta direção.

Que neste shabat, consigamos respirar fundo, recarregar as baterias do corpo e da alma, viver por 25 horas como se o mundo fosse perfeito. E que ao final do shabat, animados pela perspectiva da Redenção trazida pelo profeta Eliahu e nutridos pelas águas do poço de Miriam, comecemos a trabalhar para transformar o sonho de Redenção em realidade.

[1] https://www.ritualwell.org/sites/default/files/imce_uploads/image.2005-07-22.3940936502.mp3


quinta-feira, 18 de junho de 2020

O futuro que queremos construir hoje

Imagine que você está de volta a junho de 2019. No meio da limpeza da sua área de serviço encontra uma máquina do tempo e resolve usá-la para ver como o Brasil estará dali a um ano. Chega a este junho de 2020, encontra um país com quase cinquenta mil mortos por uma doença da qual você nunca tinha ouvido falar, a economia completamente desestruturada, as instituições políticas em sua maior crise em quatro décadas, conflitos raciais em várias partes do mundo. A sua máquina do tempo começa a apitar, indicando que está na hora de voltar para 2019 e você corre para não ficar nesse cenário distópico; quando percebe, está de volta à área de serviço da sua casa. 

O que você faria no ano passado se soubesse como estariam as nossas vidas hoje? Você mudaria sua conduta sanitária e passaria a usar álcool gel, luvas e máscaras antes que a pandemia chegasse? Você contactaria as autoridades para que as medidas cabíveis - a nível local ou nacional - fossem tomadas antes da chegada do coronavírus? Simplesmente aceitaria que não havia nada que pudesse ser feito para evitar a crise, alugaria uma casa no interior e tentaria manter a sua família segura?

Na parashá desta semana, Shlách Lechá, Moshé envia doze líderes das tribos para investigar a terra de Israel, na qual os hebreus esperavam entrar em breve, para identificar o que os aguardava: se as pessoas que lá moravam eram fortes ou fracas, se a terra era boa ou ruim, se as cidades eram ou não fortificadas, se o solo era fértil ou não, se nela haviam ou não árvores. Esses enviados investigaram a terra por quarenta dias e, ao voltarem, apresentaram um relato desanimador: a terra era boa e dela fluía leite e mel, mas o povo que lá vivia era muito forte e as cidades fortificadas. Não havia chance de que os hebreus conseguissem conquistar aquele território. Dos doze enviados, apenas dois apresentaram uma narrativa distinta, argumentando que os hebreus, tendo Deus ao seu lado, certamente teriam sucesso na conquista da terra.

Doze enviados, que tiveram a mesma experiência em sua visita à terra de Israel, mas reações radicalmente diferentes. De um lado, frente aos desafios e às incertezas, dez deles decidiram nem mesmo tentar. Aceitaram que, dada a derrota inevitável, o melhor a fazer era lamentar e, quem sabe, convencer o povo a retornar à servidão em Mitsrayim, a terra das águas estreitas. Apenas Iehoshua e Caleb foram capazes de, apesar de enxergar as dificuldades, acreditar também no potencial de superá-las. Por ter dado ouvido aos dez enviados com relatos pessimistas, o povo foi condenado a passar quarenta anos vagando pelo deserto, até que uma nova geração de hebreus estivesse disposta a enfrentar os desafios e entrar na terra de Israel.

Se você soubesse ontem sobre os desafios de hoje, o que faria diferente? Esse exercício, pode parecer fútil quando olhamos só para o passado, afinal de contas não fizemos essas coisas diferentes e não temos como reescrever o passado, nem escapar da situação em que estamos vivendo (a menos que você tenha uma máquina do tempo escondida na sua área de serviço!). Mas se pensarmos em como respondemos aos desafios que já conseguimos enxergar (ou que enfrentamos no presente), podemos alterar o futuro. 

Se formos como os dez enviados que retornaram da Terra Prometida com relatos pessimistas, aceitarmos que nossas ações não são capazes de transformar a situação, estaremos fadados à nossa versão dos quarenta anos no deserto.

Se por outro lado, seguirmos os exemplos de Iehoshua e Caleb, reconhecermos as dificuldades e procurarmos enfrentá-las de verdade, talvez consigamos ainda estancar o avanço da pandemia e saiamos dessa crise com cidades mais humanas e menos desiguais, com a consciência de que todos precisamos trabalhar para criar justiça racial no Brasil, com uma democracia mais estável e respeitosa das suas instituições, com um povo que se vê valorizado em seu direito à vida e à saúde.

Sabendo o que você sabe hoje, qual amanhã você vai construir?

Shabat Shalom!

Ticún da Virada de Shavuot 2020: Modelos judaicos para os desafios do dia

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Dvar Torá: Reconhecendo nossos privilégios e usando-os na luta antirracista (CIP)


Há pouco mais de onze anos, quando eu ainda estava no seminário rabínico, eu fiz parte de um programa organizado por uma entidade judaica norte-americana chamada American Jewish World Service, que se dedica a questões de desenvolvimento internacional. Na minha edição do programa, a sexta desde o seu início, éramos 19 alunos de rabinato de 7 escolas diferentes e fomos para Muchucuxcá, um vilarejo indígena no México, a cerca de 200km de Cancun. Lá, fizemos trabalho voluntário com a comunidade, que estava desenvolvendo um projeto de turismo ecológico e aprendemos mais sobre o que Judaísmo tem a dizer sobre nossa obrigação para com os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades, especialmente em outras partes do mundo.

Dos 19 alunos, eu era o único que não era originalmente do Canadá ou dos Estados Unidos; o único que conseguia se comunicar em espanhol com os moradores locais, ao lado de quem passávamos o dia trabalhando e com quem tínhamos nossas refeições. De alguma forma, eu me sentia como uma ponte entre o mundo dos estudos rabínicos nos Estados Unidos, de onde todos vínhamos, e o mundo da miséria latino-americana, na qual todos estávamos. Logo nos primeiros dias, a pobreza do local me impactou de uma forma muito profunda. O que mais me incomodava era que eu tinha viajado para um lugar a quase 7.000 km de São Paulo para me sensibilizar com uma situação que poderia vivenciar dirigindo 7 km a partir da Praça da Sé — mas a verdade é que a realidade das favelas e das periferias paulistanas nunca tinham me tocado do mesmo jeito que Muchucuxcá me tocava.

De um lado, eu acho que o relacionamento que eu havia desenvolvido com aqueles mexicanos explica em grande parte esta diferença de reações — como formulado pelo Pequeno Príncipe, “você se torna eternamente responsável por aquilo cativa”. Certamente eu também conheço, entre meus contatos pessoais e profissionais, gente que mora em condições semelhantes a Muchucuxcá, mas meus encontros com estas pessoas sempre tinham sido nas minhas condições: nos bairros de classe média ou classe média alta que eu costumo frequentar. Em Muchucuxcá, eu tinha ido encontrá-los nas condições deles...

Também é verdade que nos acostumamos a situações recorrentes, como uma pele dura que se forma e impede que nossos corações se quebrem o tempo todo. É o que permite, por exemplo, que andemos pelas ruas de São Paulo e encontremos seus moradores de rua sem que caiamos em desespero todo dia — uma reação que traz consigo o risco imenso de nos tornarmos insensíveis a estes problemas como se eles fossem invisíveis porque ninguém busca solução para problemas que não enxergam.

Tem ainda um outro lado que, eu acho, ajuda a explicar a diferença em reações: se eu tinha alguma responsabilidade pela condição dos indígenas em Muchucuxcá, ela era tangencial, indireta, ao passo que minha responsabilidade pelas condições de vida dos moradores de São Paulo é muito maior. 

Por isso, era mais fácil, mais seguro, reconhecer a dor pela situação que eu encontrei no México: era uma crise pela qual eu não tinha muita culpa; reconhecer a vulnerabilidade daqueles que moram perto de mim era muito mais arriscado.

Eu fiquei pensando bastante nesta experiência no México nas últimas duas semanas, na sequência resposta ao brutal assassinato de George Floyd por um policial em Minneapolis  documentado em um vídeo no qual vemos o policial pressionando seu joelho sobre o pescoço de Floyd por longuíssimos 8'46'' enquanto ignorava os apelos de “não consigo respirar”. Muitos amigos e colegas postaram imagens pretas nos seus perfis, usaram a hashtag #blacklivesmatter ou #vidasnegrasimportam, organizações lançaram notas de apoio, as pessoas saíram às ruas.

Eram todos protestos profundamente justificados: o assassinato de Floyd foi brutal e o fato de estar documentado em vídeo não nos permite ignorar o que aconteceu nem aceitar uma narrativa alternativa que colocasse a culpa na vítima, como tantas vezes acontece. Eu mesmo chorei várias vezes durante a semana passada, ao escutar depoimentos do seu funeral, descobrir como Floyd queria mudar o mundo, que ele tinha cinco filhos e dois netos, que ele tinha tentado transformar sua vida ao sair da cadeia em 2013 [1]. 

Ainda assim, há uma clara disparidade se protestamos quando um policial branco americano mata de forma brutal um negro americano, evidenciando a profunda injustiça racial que existe nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que nos calamos frente aos inúmeros assassinatos de negros brasileiros por policiais brasileiros, só a ponta do iceberg da injustiça racial aqui no Brasil.

Em 2019,  a polícia brasileira matou 1650% mais negros do que a polícia norte-americana [2]. Alguns casos ficaram famosos, como o da Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, morta dentro de uma Kombi no Complexo do Alemão no ano passado; ou de João Pedro, de 14 anos, morto em sua residência após uma ação policial deixar 72 marcas de tiros na parede há algumas semanas [3]. Em 2013, Douglas Martins Rodrigues, de 17 anos foi morto pelo tiro de um policial militar a uma quadra da sua casa. Suas últimas palavras: “por que o senhor atirou em mim?”. O policial, que testemunhas acusaram de ter descido a rua atirando, foi absolvido pela justiça sob o argumento de que “faltavam provas para determinar se o tiro foi intencional ou não” [4].

Nenhum desses casos nos levou a emitir condenações públicas, a trocar as nossas fotos de perfil, a sair pelas ruas condenando a profunda falta de justiça racial no Brasil. A pesquisadora brasileira Marina Oliveira Reis, que se prepara para iniciar o doutorado em Teoria Crítica da Raça na Universidade da Califórnia em Los Angeles, afirma que “moradores de favelas, familiares de vítimas e outros coletivos vêm resistindo, protestando e exigindo providências e fim da violência continuamente (…) [mas que] pessoas brancas não mostram disposição de oferecer os próprios corpos para a causa antirracista”. E ela pergunta: “Em que medida nossos aliados usam seus privilégios para avançar na causa antirracista e contra a brutalidade policial? Ou será que ser antirracista no Brasil é só um emblema, um selo?” [5]

Quais seriam esses privilégios?! No ano passado, eu fui parado com meus filhos em uma blitz no Rio de Janeiro. Calmamente, apresentei os documentos ao policial, que me mandou seguir. Em nenhum momento eu precisei ter com meus filhos “a conversa” que todo pai negro tem com os seus: explicando que, frente à autoridade policial, você nunca se exalta, nunca faz movimentos bruscos, abaixa os olhos e indica resignação. Eu nunca precisei me preocupar com o que iria vestir para viajar, com medo de ser tomado por um delinquente no aeroporto; eu nunca precisei mudar meu corte de cabelo para que as pessoas não o considerassem étnico demais. São grandes e pequenos privilégios que configuram um sistema no qual a vida dos negros, infelizmente, não recebe o mesmo valor que a vida dos brancos.

É fundamental que reconheçamos o estado de injustiça em que vivemos e que a busca permanente por justiça é uma das tarefas impostas pela nossa tradição, em particular em defesa dos menos favorecidos.

No finalzinho da parashá desta semana, beHaalotchá, temos um episódio inusitado: Miriam e Aharon criticam Moshé, levantando, entre outras acusações, o fato de ele ter se casado com uma “Cushita”. Os comentaristas debateram em profundidade o significado desta crítica, muitos deles concluindo que era uma reclamação contra a cor da pele negra da esposa de Moshé. Apesar de Miriam e Aharon terem levantado as críticas, só Miriam é punida, com uma doença que, ironicamente,  torna sua pele muito branca. Por isso, ela precisa se afastar da comunidade por sete dias.

Alguns aspectos dessa história merecem destaque: não apenas pelo preconceito racial inerente à crítica de Miriam e de Aharon, mas também pelo fato de que apenas Miriam, mulher, que pertencia ao grupo mais vulnerável, foi punida. A mesma ação, dois resultados radicalmente diferentes. Seu irmão mais velho, homem e sacerdote, foi poupado de qualquer responsabilização pelo episódio. Assim como no nosso contexto, o sistema bíblico de justiça, neste caso pelo menos, estabeleceu dois padrões de justiça e fortaleceu os privilégios que já existiam.

Muitas pessoas reconhecem o rabino e teólogo Abraham Joshua Heschel, pelas fotos em que ele aparece marchando de braços dados com o Reverendo Martin Luther King Jr., em defesa dos Direitos Civis dos negros americanos. Eles se conheceram na Conferência Nacional sobre Religião e Raça, em 1963, na qual Heschel fez o discurso de abertura. Em sua fala, ele disse: 

Na primeira conferência sobre religião e raça, os principais participantes foram faraó e Moisés. (…) O resultado dessa reunião de cúpula não chegou ao fim. O faraó não está pronto para capitular. O êxodo começou, mas está longe de ter sido concluído. De fato, era mais fácil para os filhos de Israel atravessar o Mar Vermelho do que para um negro atravessar certos campus universitários. 
Não vamos evitar nenhum assunto. Não cederemos um centímetro ao fanatismo preconceituoso, não cederemos para a insensibilidade. 
Nas palavras de William Lloyd Garrison: "Serei tão duro quanto a verdade e tão intransigente quanto a justiça. Sobre o assunto da escravidão, não desejo pensar, falar ou escrever com moderação. Sou diligente: não vou me esquivar, não vou perdoar,  não recuarei nem um centímetro, e serei ouvido."

Religião e raça. Como os dois podem ser expressos juntos? Agir no espírito da religião é unir o que está à parte, lembrar que a humanidade como um todo é o filho amado de Deus. Agir no espírito da raça é separar, cortar, desmembrar a carne da humanidade viva. É assim que se honra um pai: tortura seu filho? Como podemos ouvir a palavra "raça" e não sentir auto-censura? (…)

De várias maneiras, o ser humano é separado de todos os [outros] seres criados nos seis dias. A Bíblia não diz, Deus criou a planta ou o animal, ela diz: Deus criou diferentes tipos plantas, diferentes tipos de animais. Em flagrante contraste, ela não diz que Deus criou diferentes tipos de pessoas, pessoas de cores e raças diferentes; ela proclama: Deus criou um único ser humano. De um único ser humano todas as pessoas descendem. [6]

Dessa forma, Heschel estabelecia a relação entre a luta dos hebreus por liberdade em Mitsrayim e a luta dos negros americanos. De forma implícita, ele afirmava que a tradição judaica determinava o apoio ao movimento pelos Direitos Civis; negá-lo significaria negar a nossa história e a nossa tradição. 

Também neste momento, em que mais uma vez nos confrontamos com a profunda injustiça racial nos Estados Unidos e no Brasil, a tradição judaica  e a nossa experiência histórica determinam que não podemos nos calar. 

Precisamos ser mais inclusivos, dar mais espaço e voz aos negros membros das nossas comunidades, inclusive na CIP, temos que reconhecer os privilégios de que desfrutamos e estarmos dispostos a usá-los como escudo para que o movimento negro possa ter protagonismo, para que possamos, juntos, criar um Brasil mais inclusivo, mais multi-racial e mais justo.

Nas palavras de Heschel, “nem todos somos culpados, mas todos somos responsáveis”. É a hora de reconhecermos nossa responsabilidade, e exercermos aquilo que determina nossa tradição, indo além das hashtags e das fotos de perfil e sermos parceiros na construção deste futuro.

Shabat Shalom.

[1] https://www.nytimes.com/2020/06/10/podcasts/the-daily/george-floyd-protests-funeral.html
[2]  https://www.poder360.com.br/internacional/policia-brasileira-matou-17-vezes-o-n-de-negros-do-que-a-dos-eua-em-2019/
[3] https://www.poder360.com.br/brasil/casa-onde-adolescente-foi-morto-tem-72-marcas-de-tiros-diz-entidade/
[4] https://noticias.r7.com/brasil/o-desfecho-de-cinco-casos-emblematicos-de-morte-de-negros-pela-policia-no-brasil-10062020
[5] https://ponte.org/diferente-dos-eua-no-brasil-os-brancos-nao-oferecem-seus-corpos-para-a-luta-antirracista/
[6] Heschel, Abraham Joshua. The Insecurity of Freedom: Essays on Human Existence. Farrar, Straus & Giroux: New York. 1967. pp.85-87. A tradução foi adaptada para ser mais inclusiva do ponto de vista de gênero.