sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Dvar Torá: o palácio está em chamas e a ajuda está a caminho! (CIP)

Eu não sou muito fã das mídias sociais. A única que eu realmente uso é facebook, e mesmo assim eu me irrito muito rapidamente naquele ambiente e tendo a não usá-lo com frequência. Um aspecto que eu gosto, no entanto, é a forma como facebook me permite estar em contato com rabinos em muitas partes do mundo; gente que estudou comigo, que eu conheci em congressos e conferências, ou até gente que eu só conheço no mundo virtual. Logo depois de Rosh haShaná e de Iom Kipur, foram muitos os meus colegas — em particular, rabinas mulheres — que publicaram suas prédicas nas redes sociais. Através das palavras delas, eu pude ter uma ideia de como está o pulso das comunidades judaicas ao redor do globo. O que as preocupam? Quais são os seus valores? Como elas estão vendo o caminhar deste nosso mundo? Eu selecionei alguns trechos significativos das prédicas que li nas últimas semanas...
A rabina Adina Allen, que fundou o Jewish Studio Project, que junta arte e judaísmo na região de São Francisco, falou sobre a crise ambiental e climática a partir da história da Arca de Noé. Ela disse: 
As coisas no mundo exterior estão rachando e desmoronando; nossos corações e nossas histórias estão da mesma forma. Neste momento de perigo e agitação - à medida que enfrentamos a ameaça de inundações e de outros desastres - somos chamados a sair de nossas conchas para assumir riscos como nunca antes. Fazemos muito para tentar minimizar os riscos, mas evitar riscos é evitar viver. Arriscar é o que nos abre. A alternativa é permanecer seguros, fechados e estagnados.
A história do Dilúvio termina com o arco-íris, brilhante e bonito se estendendo pelo céu, um sinal, como Deus diz, de que Deus nunca fará com que esse tipo de destruição maciça aconteça novamente. "Deus" não vai, mas isso não significa que nós não vamos. (…) Hoje, de certa forma, somos todos Noé e Deus vive dentro de cada um de nós. Todos participamos de nossa destruição compartilhada e todos somos necessários para nossa salvação coletiva.
Como é a ser uma pessoa íntegra em nossa geração. O que isso nos convoca a arriscar? [1]
A rabina Luciana Pajecki Lederman, que esteve conosco aqui na semana passada para se despedir da rabina Fernanda, também falou da crise ambiental. Contou a história de um pescador que construiu uma linda embarcação e convidou as pessoas do seu reino para um passeio no lago. Quando o barco chegou ao meio do lago e todos se divertiam, o pescado tirou uma furadeira e começou a fazer um buraco embaixo do seu banco. Os convidados, desesperados, tentaram convencê-lo a parar, mas o pescador respondeu: "Meu barco, meu banco, minha furadeira, eu vou fazer este buraco…” e continuou: 
“Você não quer que o barco afunde? Você não quer se afogar? (…) Bem, me desculpe, MAS ISTO NÃO É PROBLEMA MEU!!!”. O príncipe do reino, alguém que até então tinha se importado pouco com o sofrimento de seus súditos, desperado, respondeu ao pescador: “O que você quer dizer com ‘Isto não é problema meu?!!!’ Qualquer um aqui consegue enxergar que, se eu tenho um problema, você tem um problema. E que, se você tem um problema, eu tenho um problema. Se qualquer um tem um problema, então todos têm um problema - PORQUE NÓS ESTAMOS TODOS NO MESMO BARCO!!!” [2]
Pois é… estamos todos no mesmo barco!
No ano em que a comunidade judaica americana viveu o pior ataque terrorista de sua história, contra a sinagoga Tree of Life em Pittsburgh, que tirou a vida de 11 pessoas, o antissemitismo também apareceu nas prédicas das minhas colegas. A rabina Sharon Brous, de cuja comunidade eu fiz parte quando morei em Los Angeles e que tem tido grande influência na forma como eu penso meu próprio rabinato, tratou do crescimento do antissemitismo entre outras formas de ódio ao diferente. Ela citou um amigo dela, o rabino Jon Berkun, filho do rabino da sinagoga Tree of Life, que disse: 
Quando alguém escolhe o judaísmo como adulto, o Talmud exige que o rabino primeiro avise: “Você não sabe que o povo judeu está angustiado... é desprezado e perseguido, e que frequentemente sofre dificuldades?” (Yevamot 47a). Dez anos atrás, nos Estados Unidos, eu dizia essa linha como uma espécie de piada. Ela simplesmente não refletia a experiência de ser judeu nos EUA. Mas eu dizia isso mesmo assim, em homenagem ao nosso passado doloroso. Eu não consigo acreditar, mas agora, em 2018, eu preciso dizer isso com seriedade. [3]
As prédicas que eu li pintam um retrato difícil do mundo em seu aniversário 5780. Minha querida amiga e colega de classe, a rabina Rachel Timoner, uma das pessoas mais articuladas e com maior sofisticação de análise que eu conheço, expressou assim seu sentimento na prédica de Rosh haShaná:
Se apenas nos sentássemos aqui, todos nós, e chorássemos juntos hoje, essa seria a resposta mais eloquente ao ano em que vivemos.
Essa pode ser uma maneira de ver Deus.
Hoje se chama Yom Truá. Truá é o som que o shofar faz. Truá é um choro. É um grito que chama a atenção de Deus para o sofrimento deste mundo. No judaísmo, na Torá, chorar não é fraqueza, chorar não é desistir. (…) O choro está associado aos homens de poder. Guerreiros choram e reis choram (…) Chorar é frequentemente o começo de uma nova sabedoria. (…) Chorar é o que fazemos quando não sabemos o que fazer, quando estamos presos, quando estamos perdidos, quando não podemos ver o caminho a seguir. Chorar é o que fazemos quando precisamos de ajuda, quando atingimos os limites de nosso próprio poder e precisamos extrair algo mais profundo.
E ela concluiu sua introdução dizendo: “Eu preciso admitir para vocês que eu me sinto emperrada. Eu tenho questionado se estou pronta para liderar vocês neste momento. Não sei para onde estamos indo e não sei o que devemos fazer sobre isso.” [4]
Um midrash compara nosso patriarca Avraham a alguém que estava andando quando viu fogo em um palácio. A pessoa perguntou em voz alta: “será que não tem ninguém tomando conta deste palácio?!” — e seu dono lhe respondeu: “eu sou o dono do palácio”. Segundo o midrash, Avraham teria olhado o caos do mundo e se perguntado, “será que não tem ninguém tomando conta deste mundo?!” e Deus lhe responde: “eu sou o mestre deste mundo”[5].  É hora de reconhecermos: o palácio está em chamas e, assim como minha colega de classe, muitos de nós nos sentimos emperrados — um sentimento sobre o qual eu tenho falado com alguma frequência daqui da bimá.
Amanhã de manhã leremos da Torá a porção especial para um shabat que acontece no meio de Sucot, que também fala de uma situação difícil. O contexto no qual a história se passa é o que aconteceu logo depois do episódio do bezerro de ouro. Em sua ira, Deus diz aos Filhos de Israel que não estará mais entre eles em sua jornada, pois o povo é teimoso e Deus terminaria por destruí-los. É nesse momento de crise absoluta que começa a leitura de amanhã. De uma relação fragilizada, quase destruída, renasce o relacionamento do povo de Israel com Deus. Neste momento de reconciliação, Moshé pede para Deus lhe mostrar Sua presença. Em uma das cenas mais singelas da Torá, Deus diz que ninguém pode ver Sua face e continuar vivo; por isso, cobre os olhos de Moshé ao passar na sua frente, mas permite que Moshé veja as Suas costas.
A fragilidade de um relacionamento abalado permite que Moshé e Deus se encontrem realmente, de forma verdadeira, exposta, arriscada. Paradoxalmente, ao assumirem, juntos, o risco de revelarem suas fragilidades, tomam o passo necessário para construírem uma relação mais sólida e duradoura. 
Em Sucot, saímos das nossas casas estáveis e, de forma metafórica ou concreta, abraçamos nossas fragilidades através de uma construção cujas paredes não têm tijolos, cujo teto é vulnerável ao clima. De coração aberto, sem muito mais a perder, reconhecemos nossas dores, nos expomos sem armaduras e nos permitimos enxergar e sermos enxergados com verdade. Se não podemos olhar a face do Divino, procuramos ver suas costas na fagulha divina que vive em cada uma das pessoas ao nosso redor.
Neste momento, em que tantos de nós nos sentimos vulneráveis, assustados, perdidos, é hora de reconhecermos a fagulha divina em nós mesmos para sermos parceiros de Deus no processo de reconstrução. Da nossa fragilidade, precisamos construir um mundo mais sólido. O castelo está pegando fogo e somos nós que temos que apagá-lo.
Neste shabat, celebramos um grupo de pessoas que trabalha incessantemente para manter o castelo salvo. Muitas vezes nos bastidores, sem que ninguém perceba sua presença. São voluntários da CIP, que estão com a nossa comunidade em seus momentos de maior aflição, dando dignidade às nossas pessoas queridas em sua despedida deste mundo; acompanhando os enlutados em suas rezas diárias; garantindo que esta comunidade possa continuar desenvolvendo projetos sociais no Lar das Crianças e aqui na Antônio Carlos; recebendo cada pessoa que passa pela porta desta sinagoga com um Shabat Shalom e um sorriso no rosto; dedicando grande parte do seu tempo e atenção para melhorar e ampliar a experiência comunitária da CIP.
Em resposta a um cenário difícil, nossos voluntários conseguem extrapolar sua própria dor e agem para criar um ambiente mais acolhedor, para transformar a sociedade em mais justa, para permitir que possamos encontrar aqui um lugar onde crescer judaicamente e curar as feridas das nossas almas. Por tudo isso, somos imensamente gratos — o que vocês fazem é avodat kodesh, um trabalho sagrado, e, além de agradecer e lhes prestar todo o kavod que vocês merecem, nós queremos aprender com o exemplo pessoal de cada um de vocês.
Depois de abrir sua prédica reconhecendo sua dificuldade em saber o que dizer, a rabina Rachel Timoner terminou sua prédica assim:
E nos encontramos aqui. E reunimos nossas mentes, nossos corações e nossos esforços. E nós ouvimos. E sabemos que não estamos sozinhos. E lembramos quem somos juntos. E imaginamos o que seremos juntos. E começamos a ver o caminho.
Quando nosso povo entrou nas profundezas do mar ao sair do Egito, não encontrou monstros marinhos ou dragões. Segundo um midrash, eles encontraram um pomar plantado bem no fundo do mar temível. Uma mãe segurando um bebê chorando a caminho da liberdade estendeu a mão e arrancou frutas maduras no meio da jornada. Quando tudo era desconhecido, com as ondas elevando-se acima deles e o exército do Faraó ameaçando atrás deles, havia frutas, havia beleza, havia doçura, havia sustento.
Pode haver dragões por aí em algum lugar, mas também há frutas maduras. E somos um povo que sabe que precisamos de doçura para nos sustentar em nosso caminho através dos mares perigosos. Quem sabe o que vamos encontrar lá? Podemos encontrar o rosto de Deus.
Nos conhecendo, haverá lágrimas envolvidas. Talvez lágrimas de medo e lágrimas de tristeza. Por favor, Deus permita que também haja lágrimas de redenção e alívio, de gratidão e deleite, de força, de amor, de volta e de salvação.
Queridos voluntários, alguns de vocês plantam as árvores deste pomar, outros cuidam para que as árvores cresçam bem, e há os que apontam para as doces frutas do pomar quando olhamos para trás e, desesperados, vemos as tropas inimigas se aproximando. Realmente muito obrigado! Que sejamos todos abençoados através da sua presença, da sua dedicação, do seu carinho e do seu exemplo.

Shabat Shalom e Chag Sameach!

[1] https://www.facebook.com/adina.allen.5/posts/10101812354169528 
[2] Luciana Pajecki Lederman, Teshuvá Sistêmica: Mudando nossa postura de "Não é problema meu ..." para "Estamos todos no mesmo barco"  (mimeo) 
[3] https://ikar-la.org/wp-content/uploads/YK-family-ties.pdf 
[4] https://www.facebook.com/rachel.timoner/posts/10156500453502327 
[5] Bereshit Rabá 39:1. 

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Dvar Torá: Rosh haShaná 5780 (CIP)

Tem um ditado em ídiche que diz דער מענטש טראכט און גאט לאכט, “as pessoas fazem planos e Deus dá risada”! Pois é…. eu tinha um plano de fazer esta prédica de Rosh haShaná sobre o lado positivo dos nossos erros; tinha lido vários livros, procurado a perspectiva judaica, começado a escrever — eu estava bem atrasado pra conseguir terminar a tempo, mas ia dar. 
Eu sou um consumidor voraz de podcasts, que são tipo o Netflix do rádio: tem um aplicativo no celular e você escolhe o programa que quer ouvir na hora em que quiser. Um dos meus podcasts favoritos, o The Daily, do New York Times, lançou um episódio especial no domingo de manhã [1]. Uma entrevista de uns 30 minutos com Ella Maners, uma menina super fofa que acabou de completar nove anos. Ella tem TOC, o Transtorno Obsessivo Compulsivo, e crises de ansiedade relacionadas, principalmente, ao medo de furacões e de ficar enjoada. No programa, sua mãe conta como na primeira crise de ansiedade que a menina teve, ela fez o que qualquer pai ou mãe leigo e preocupado faria: tentou acalmá-la, dizendo que aqueles medos eram infundados, que tudo ficaria bem.
Ella acabou de voltar de um acampamento de férias na Flórida para crianças com quadros clínicos semelhantes ao dela. Lá, ela deu um nome ao seu TOC, “Ocie”, e aprendeu que, quando Ocie repete na sua cabeça: “você vai ficar enjoada, você vai ficar enjoada, você vai ficar enjoada”, a pior coisa que ela podia fazer para se acalmar era a estratégia que ela e seus pais vinham adotando até então e responder “eu vou ficar bem, eu vou ficar bem, eu vou ficar bem.” Quando, ao invés disso, ela respondeu no seu diálogo interno com Ocie: “sim, eu vou ficar doente”, seu monstrinho interno desistiu de importuná-la, vendo que não conseguia mais gerar o medo paralisador de antes. Nesse acampamento de férias, Ella foi exposta a seus medos e desenvolveu estratégias para lidar com eles. Ao final da semana que ela passou no acampamento, Ella tinha ganho 42 contas para formar um colar, o mesmo número de obstáculos que ela superou neste período.
Depois de escutar este podcast por meia hora, com os olhos vermelhos e o rosto molhado pelas lágrimas e pensando nas conversas que eu tive com meus filhos nos últimos dias, eu decidi - literalmente aos 45 do segundo tempo - mudar o tema da prédica, porque precisamos falar dos nossos medos.
Em hebraico, há algumas palavras para medo. Quando falamos da relação com Deus, em geral, usamos a palavra יראה, ir’á, que está relacionada à reverência, a um medo que vem do respeito, de estarmos impressionados com uma determinada realidade. A palavra פחד, pachad, é muito mais usada no hebraico cotidiano para falar do medo do tipo que a Ella sentia. A rabina Ilana Goldhaber-Gordon resume da seguinte forma a diferença entre as duas palavras: 
Embora “pachad” e “ir’á” sejam, às vezes, sinônimos na literatura antiga, uma pesquisa completa sugere conotações distintas. A reverência tingida de medo que abre a alma, provavelmente, será descrita como “ir'á". O medo opressivo que desliga a pessoa, provavelmente, será descrito como "pachad". [2]
Há, no entanto, na Torá uma história em que a palavra pachad é usada para descrever a relação com Deus. Ela aparece no capítulo 31 de Bereshit, quando o patriarca Iaacov está se despedindo de seu sogro Labán. Há uma discussão entre eles, cada um argumentando que o outro tentou trapaceá-lo. Em um determinado momento, Iaacóv diz ao sogro: 
לוּלֵי אֱלֹהֵי אָבִי אֱלֹהֵי אַבְרָהָם וּפַחַד יִצְחָק הָיָה לִי כִּי עַתָּה רֵיקָם שִׁלַּחְתָּנִי
Não fosse pelo Deus do meu pai, o Deus de Avraham e o medo de Itschak, que esteve comigo, você estaria me mandando embora de mãos vazias. [3]
A palavra que Iaacóv usa para medo nesta passagem é pachad, aquele tipo de medo que paralisa, que nos tranca. Deus é chamado de “pachad de Itschak” — um nome que é adotado em outras situações, incluindo no Machzor de Iom Kipur.
Os comentaristas, é claro, ficam loucos com essa combinação. Rashi, o grande comentarista da Torá e do Talmud, tenta negar o desconforto, argumentando que não se usaria a expressão אלוהי יצחק, “o Deus de Itschak”, enquanto Itschak ainda estava vivo. Avraham Ibn Ezra, que viveu poucas décadas depois de Rashi, aventa a possibilidade de que pachad Itschak seja uma referência à experiência que Itschak teve quando quase foi morto pelo seu pai na parashá que lemos hoje [4]. Nachmanides, que viveu poucas décadas depois de Ibn Ezra, discorda desta teoria e indica que, de acordo com a tradição mística, que esta afirmação se refere ao aspecto divino de דין, din, “Justiça”. A rabina Goldhaber-Gordon explica a leitura de Nachmanides:
Nachmanides era um cabalista, que entendia que cada patriarca canalizava um aspecto diferente de Deus. Avraham expressa “Chesed”, “Bondade”. Segundo a Cabalá, o contrapeso a “Chessed” é “Din”, “Julgamento”, ou “Guevurá”, “Heroísmo”, traços que limitam o fluxo do “Chessed”. Itschak está associado a “Guevurá”. O equilíbrio entre “Chessed” e “Guevurá” é “Emet”, “Verdade Divina”. “Emet” é a característica de Iaacov.
Essas associações uma vez me intrigaram. O homem que tentou abater o filho encarna a bondade? O filho que estava preso no altar representa heroísmo? E Iaacov, com todas as suas enganações, é verdade? Eu as entendi melhor depois de uma conversa com a acadêmica da Bíblia Avivah Zornberg, que explicou que essas são as características com que cada um dos patriarcas mais lutaram, seus sucessos contando tanto quanto seus fracassos. [5]
Transtornado pela experiência de seu quase-sacrifício pelas mãos de seu pai sob ordens de Deus, é com o conceito de Justiça Divina que Itschak precisava se encontrar. Assim como Ella aprendeu, não adiantava negar seus próprios medos e traumas — ele precisava ser exposto a eles para que pudesse desenvolver estratégias para lidar com eles. Quando o repórter pergunta a Ella se ela ainda tem medo, ela responde que sim. “O que mudou, então?”, ele pergunta. “Eles não são mais tão aterrorizantes.”
Meus filhos moram no Rio de Janeiro e estão passando este feriado comigo. Durante o final de semana, minha filha de 11 anos falou do seu medo de que, com o ritmo atual das mudanças climáticas e da elevação dos oceanos, o Rio de Janeiro estará submerso antes que ela possa ter filhos. Meu filho, que tinha cinco anos quando nos mudamos para o Rio de Janeiro, passou um tempo obcecado com tiroteio e arrastão. Esses medos nunca os paralisaram, mas geraram angústias que têm sido implícita e explicitamente expressas. Nessas situações, minha intuição era tentar acalmá-los, minimizando a dimensão dos problemas. A verdade é que o meu maior medo tem a ver com o mundo que estou entregando a eles; ver meus filhos com medo é o que dispara os meus próprios gatilhos e, por isso, eu faço de tudo para livrá-los deste sentimento. Ao ouvir a entrevista com Ella, passei a questionar se esta é a melhor abordagem. Escondê-los de seus medos não resolverá nada! Como pai, minha função é validá-los e ajudá-los a encontrar estratégias para lidar com as situações que lhe embrulham o estômago.
Os serviços de Rosh haShaná e de Iom Kipur oferecem excelentes oportunidades para confrontarmos nossos medos e buscarmos caminhos para transformar pachad, o medo que paralisa, em ir’á, o medo reverente que abre a alma e nos ajuda a buscar soluções. Ao longo destes dias, somos convidados a abaixar nossas defesas e nos expormos frente a Deus e a nós mesmos como realmente somos, sem a possibilidade de nos escondermos sob máscaras ou roupas caras. 
A verdade é que para muitos de nós, é a oportunidade de nos olharmos no espelho sem maquiagem que mais os aterroriza. Passamos tanto tento vivendo a persona que achamos que devíamos ser – agora potencializados pelo megafone das redes sociais – que nos esquecemos de quem realmente somos ou de quem gostaríamos de ser. Numa das peças centrais destes dias, o uNetanê Tokef, somos expostos àquele que, talvez, seja o maior dos nossos medos: confrontar a nossa própria mortalidade e questionar qual será nosso legado quando já não estivermos mais aqui.
Será que teremos coragem para enfrentar de verdade estas perguntas, sem repetirmos para nós mesmos “vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem”? Se Deus estivesse distribuindo contas de colar para cada vez que você realmente se confrontou com um dos seus medos nestes dias, quantas cores teria o seu colar?
Em sua entrevista, Ella e sua mãe contaram que algumas vezes pensaram em desistir da Colônia de Férias: o processo era realmente difícil e doloroso. Ao final da semana, no entanto, Ella declarou: “eu me senti muito bem depois de ter sido exposta [aos meus medos], eu me senti bem, eu me senti feliz, eu me senti corajosa.” A tradição rabínica ensina que Iom Kipur é um dos dois dias mais felizes do calendário judaico – será que este ano conseguiremos terminar o dia repetindo as palavras de Ella, “eu me senti muito bem, eu me senti feliz, eu me senti corajoso”?
Logo mais, começaremos o último Mussaf deste Rosh haShaná; na semana que vem estaremos novamente juntos, rezando e refletindo em Iom Kipur.
בְּראֹשׁ הַשָּׁנָה יִכָּתֵבוּן וּבְיוֹם צוֹם כִּפּוּר יֵחָתֵמוּן
Em Rosh haShaná será escrito e em Iom Kipur será confirmado.
Quem terá coragem de se expor, de correr riscos e revelar seus grandes medos e quem irá se esconder mais uma vez e deixar passar mais esta oportunidade?
Shaná Tová! Shaná Tová uMetucá!


[1] https://www.nytimes.com/2019/09/29/podcasts/the-daily/children-fears-ocd-anxiety.html
[2] https://forward.com/shma-now/pachad-yitzchak/381263/fear-becomes-strength/
[3] Gen. 31:42a
[4] Esta posição de Ibn Ezra aparece em seu comentário ao verso Gen. 31:53.
[5] https://forward.com/shma-now/pachad-yitzchak/381263/fear-becomes-strength/


sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Lembra de quem queríamos ser?

(originalmente publicado em http://www.institutobrasilisrael.org/2019/09/27/lembra-de-quem-queriamos-ser/)

No universo dos feriados religiosos, Rosh haShaná e Iom Kipur não estariam na lista das 10 datas mais populares. Com suas metáforas sobre o Dia do Julgamento e o nome (em hebraico) de “Dias Terríveis” (Iamim Norayim), estas datas precisam urgentemente da repaginada de marketing que Jon Stewart pediu para outros feriados judaicos. A verdade, no entanto, é que, por trás do nome pouco popular (abandonado na tradução para o português) e das metáforas complicadas, temos conceitos religiosos profundos que se sobrepõem de forma quase paradoxal: uma autocrítica intensa e um otimismo quase ilimitado.

Tanto a crítica quanto o otimismo têm origem no conceito de tshuvá, palavra em hebraico cuja tradução pode variar de “resposta”, a “retorno” a “arrependimento”. Eu gosto de pensar em todos estes sentidos entrelaçados, nos quais a tshuvá da qual falamos nesta época do ano é a resposta que damos ao nosso processo de cheshbon hanefesh, a “contabilidade da alma”, a reflexão sobre os caminhos que nossas vidas estão tomando. Ao reconhecermos nossas conquistas no ano que termina e identificarmos as áreas em que nos afastamos dos nossos objetivos, tentamos voltar à nossa rota; através do arrependimento, voltamos à melhor versão de nós mesmos. O otimismo é expresso na possibilidade permanente de engajarmos neste processo de tshuvá, mesmo quando o “retorno” implica caminhar uma  grande distância. Estes conceitos, eu acho, foram perfeitamente capturados por um antigo supervisor de estágio meu, o rabino Eric Gurvis, que certa vez distribuiu adesivos após sua prédica de Iom Kipur que diziam “Lembre-se de quem você queria ser”.

Para muitos de nós, lembrarmos de quem queríamos ser pode ser um esforço complexo. A necessidade de pagar a conta do aluguel todo mês ou de acordar cedo para levar os filhos à escola faz com que, muitas vezes, abramos mão de valores que nos eram caros mas que não nos ajudam nas demandas práticas da vida. Como mecanismo de defesa, ao nos distanciarmos dos ideais que tínhamos, apagamos os velhos sonhos. Em algum momento, passamos a acreditar que somos o que sempre tínhamos querido ser, apesar de todas as evidências do contrário.

Países ou movimentos nacionais, no entanto, costumam registrar de forma mais sistemática onde eles gostariam de chegar. Neste Rosh haShaná em que Israel tenta, mais uma vez, organizar um novo governo, vale a pena olharmos para os sonhos que o país um dia teve para si mesmo e pensar o que “Lembre-se de quem você queria ser” pode significar neste contexto. Neste processo, busquei a Declaração de Independência, como documento que expressava os sonhos dos fundadores do Estado. Percebe-se um otimismo claro no documento (alguns diriam “ingenuidade”), a esperança de um relacionamento de parceria com a ONU, de relações possíveis com os países vizinhos, de tratamento equânime entre todos os seus habitantes, de respeito aos seus idiomas, religiões e culturas. Cada um de nós terá suas próprias tshuvot na comparação entre este documento e a realidade do Estado de 71 anos, que precisa pagar o aluguel e acordar cedo para levar as crianças, mas que ainda contém dentro de si muitos dos valores registrados na Declaração de Independência. Quando consideramos “Quem Israel gostaria de ser?”, podemos identificar quais sonhos foram largados ao longo do caminho que, agora, gostaríamos de retomar e nos perguntar qual papel nós brasileiros podemos ter nesta retomada de valores e de sonhos?

Shaná Tová!

Que nossas vidas —  os sonhos, as ações, os valores, as restrições — façam diferença e mereçam ser registradas no Livro das Vidas.



sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Dvar Torá: O que fazemos com as passagens ofensivas da Torá? (CIP)

Vocês já devem ter ouvido a história da discussão entre dois rabinos sobre qual o versículo mais importante da Torá [1]. Um deles escolhe o verso “Ama a teu próximo como a ti mesmo” e outro escolhe um verso que fala da criação dos seres humanos à imagem de Deus. Rabinos adoram contar essa história porque ela fala de valores que nos são caros e que estão relacionados ao papel que acreditamos que o Judaísmo deve ter nas nossas vidas: a empatia e a dignidade inalienável de todo ser humano, além de falar do pluralismo judaico.
Mas uma comunidade judaica liberal com um projeto de educar para um judaísmo crítico, verdadeiro na relação com suas fontes e que dialogue com adultos, precisa reconhecer que nem todos os versículos da Torá valorizam a empatia ou a dignidade humana.
Na semana passada, eu estava em uma conversa com educadores judaicos, que estavam manifestando desconforto em terem que ler um verso da Torá cujo sentido literal está em oposição direta ao projeto de educação judaica que eles se propõem a desenvolver. 
O que fazemos quando as palavras da tradição não refletem os valores que acreditamos que o Judaísmo defende ou, ainda pior, quando elas refletem os valores opostos?
Esta não é uma questão única da CIP e nem mesmo recente. Desde o começo da era rabínica, há cerca de 2000 anos, os Rabinos vêm expressando seu desconforto com partes da tradição e buscando estratégias para lidar com ela em midrashim, no Talmud e em outros comentários.
A parashá desta semana, Ki Tetsê, é considerada a parashá com o maior número de mitsvot de toda a Torá; de acordo com uma contagem, são 72. Algumas delas, estão profundamente enraizadas nos nossos valores, como o conceito de que não podemos atrasar o salário dos nossos empregados, pois eles dependem destes pagamentos [2], a obrigação de não subverter os direitos dos oprimidos pois fomos oprimidos na terra de Mitsrayim [3] ou ainda a de devolver um objeto perdido que tenhamos encontrado ou de tomar conta dele até que encontremos o dono [4]. Há mitsvot da nossa parashá cuja razão não nos parece óbvia mas que tampouco nos ofende, como a proibição de usarmos roupas que misturem lã e linho [5]. Mas há também diversas mitsvot nesta parashá que entram em conflito com os meus valores e imagino que com os de vocês também. 
Há a instrução de que um filho desafiador e rebelde deve ser levado por seus pais até os anciãos da cidade para que ele seja condenado à morte [6], a de um homem que violentar uma mulher solteira será condenado a pagar uma multa ao pai dele e casar-se com ela sem a chance de divórcio [7] e a de que um homem que acusar sua esposa de ter mentido sobre sua virgindade – se os pais dela mostrarem que ele está mentindo, ele é castigado fisicamente, paga uma multa e perde o direito de divorciar sua esposa, mas se os pais dela não conseguirem mostrar que ela era virgem, ela será condenada à morte [8].
Muitos de vocês talvez não conhecessem estas regras. Elas não fazem parte da lista de mitsvot que nós, rabinos, gostamos de divulgar. Talvez se sintam chocados e incomodados com os valores que elas expressam: a incompreensão de como lidamos com as divergências dentro das nossas famílias ou a absoluta falta de empatia para com a perspectiva feminina em regras sobre o comportamento conjugal. Pessoalmente, eu reconheço que estas regras me deixam chocado e incomodado, só para usar eufemismos.
Frente a regras como estas, precisamos de estratégias para não descartarmos o Judaísmo como um todo, para não jogar o bebê com a água suja. 
Eu conheço quatro estratégias distintas – quatro estratégias que estão todas elas fundamentadas na tradição judaica e que têm seus adeptos hoje em dia. Muita gente, talvez a maioria de vocês, alterna em diferentes estratégias para cada situação ou ao longo de suas vidas.
A primeira estratégia nega o desconforto, atribuindo qualquer restrição que possamos ter a estas mitsvot à nossa própria incapacidade de reconhecer sua sabedoria. “Se está na Torá, vem de Deus”, seus proponentes afirmam. “Se vem de Deus, só nos resta cumprir sem questionar. Ou você acha que, na sua limitada capacidade, consegue compreender toda a lógica Divina?!”. O que os defensores desta estratégia preferem ignorar é que a tradição judaica questiona decisões Divinas o tempo todo! Avraham questionou Deus de maneira absolutamente enfática quando soube da decisão Divina de destruir Sodoma e Gomorra [9]; Moshé desafiou Deus quando soube da decisão de destruir o povo depois do episódio do bezerro de ouro [10] e, novamente, depois do episódio dos 12 espiões enviados antes da chegada à Terra de Israel [11]. Na tradição rabínica, uma das passagens mais famosas do Talmud conta como Deus decidiu intervir em um debate e de como os rabinos responderam: לא בשמיים היא, “Você nos deu a Torá e agora ela é nossa para decidirmos como interpretá-la”. Como Deus reagiu a este ato de chutspá e desafio à autoridade? Com orgulho, dizendo נצחוני בניי, “meus filhos me derrotaram”, como o pai satisfeito que perde para a filha no jogo de xadrez. A resposta de que não temos capacidade para compreender toda a complexidade da lógica Divina pode até estar correta, mas ela nunca preveniu a tradição judaica de questionar e até mesmo desafiar Deus quando temos discordâncias.
A segunda estratégia é aquela que os educadores com quem eu me reuni tinham proposto: por que não damos sumiço, paramos de ler as passagens que consideramos especialmente problemáticas? Pessoalmente, eu sou adepto de adequar alguns dos nossos textos litúrgicos, de modificar um pouco a formulação de algumas rezas. Mas a Torá?! O verbo de ação que aparece na brachá para o estudo da Torá é לעסוק, "laasók", nas palavras da Torá. A raiz do verbo é a mesma raiz de עסק, "essek", "negócio". O estudo verdadeiro da Torá é algo que vai além do plano puramente filosófico. Ele não fica só no cérebro, envolve coração, braços, pernas e nossos órgãos internos: realmente nos envolvemos de corpo e alma. Quem já trabalhou com jardinagem vai entender a metáfora de que ficamos com a unha cheia de terra – essa é a medida do estudo verdadeiro da Torá. Será que conseguiríamos este resultado se omitíssemos todas as passagens que nos incomodassem? 
O incômodo é parte deste processo de crescimento judaico – e se eliminarmos todas as passagens que nos causam incômodo, limitaríamos tremendamente nosso crescimento no encontro com a Torá!
Uma terceira estratégia é a de analisar o texto da Torá em seu contexto histórico. As leis que estabelecem uniões conjugais absolutamente assimétricas não seriam tão injustas porque a cultura da época dava ainda menos autonomia para as mulheres. Na comparação, o texto até parece um pouco mais igualitário. Em muitos círculos liberais, esta é a estratégia adotada na maior parte dos casos para lidar com trechos problemáticos. Seus adeptos argumentam que você não pode julgar um texto que tem, pelo menos, 2500 anos de história a partir das sensibilidades do século 21. Pessoalmente, meu problema com esta abordagem é que eu quero que este texto tenha relevância para a minha vida em 2019. Quando eu leio a Torá como acadêmico, eu não tenho problema nenhum em colocá-la em diálogo com as outras culturas da região ou da mesma época. Mas quando eu, um judeu adulto do século 21, leio a Torá em um contexto religioso, eu procuro no texto valores e referências que me ajudem a definir meu comportamento com relação aos oprimidos do meu tempo, a negociar o relacionamento com meus filhos quando eles se mostram desafiadores e rebeldes, a questionar minha própria relação com a autoridade. Para mim, a Torá não é simplesmente uma obra de literatura histórica que eu me permito ler com uma postura distanciada. Este livro contém as histórias sagradas do meu povo, que me convidam e me desafiam a me tornar uma versão melhor de mim a cada vez que eu o leio.
Como, então, lidar com as passagens cujos valores não estão alinhados aos meus?
A quarta estratégia – e deve ser óbvio a essa altura que essa é a estratégia com a qual eu mais me identifico – diz que as mitsvot da Torá – aqui incluídas todas as 72 mitsvot desta parashá, mesmo aquelas que eu destaquei no início como especialmente alinhadas com nossos valores – não devem ser tomadas como instruções literais, mas como convites para aprofundarmos as discussões a respeito dos temas que elas introduzem. Qualquer bom professor sabe que, em algumas situações, não há nada mais eficiente para dar início a debates produtivos que afirmações polêmicas - e é isso que a Torá nos dá em algumas situações. Nesta abordagem, as afirmações polêmicas são só o "gatilho" para dar início ao debate; elas não resumem, de forma nenhuma, o que a Torá quer que aprendamos destas conversas. A partir do "gatilho" proposto pela Torá, cada grupo estabelecerá sua conversa a respeito dos temas propostos e chegará a conclusões distintas, que mudarão ao longo do tempo e de um grupo para outro. Assim, a Torá se mantém a "árvore da vide para quem lhe dá apoio"!
Como lidar com a assimetria intrínseca às relações de trabalho? Que estratégias podemos adotar quando nossos filhos questionam o que nos é mais caro? Quais são as respostas possíveis para situações de violência sexual? Ou de infidelidade conjugal? Ou de comportamentos durante o processo de divórcio que parecem negar que sejam as mesmas pessoas que, alguns anos antes, se amavam tanto que prometeram passar o resto da vida juntos? Como garantir que a ética tenha lugar nas nossas divergências, mesmo nas disputas mais violentas, como a guerra?
Estas são algumas das conversas fundamentais que a parashá desta semana nos convida – alguns diriam, nos instrui – a termos. Numa semana em que um deputado estadual do Espírito Santo ofereceu uma recompensa de R$10.000 reais pela morte do suspeito de um assassinato [13], na qual fui divulgada a estatística de que quatro meninas de até 13 anos são violentadas por hora no Brasil [14], estes temas parecem especialmente adequados, temas para conversas urgentes, que não podemos mais ignorar.
A tradição rabínica diz que nunca houve e nunca haverá um filho desafiador e rebelde que justifique o processo descrito nesta parashá. Em resposta à pergunta “então, por que este trecho foi incluído na Torá?”, a própria tradição responde “para dar um prêmio àqueles que debaterem seriamente esta questão” [15]. O prêmio é o debate!
Um judaísmo crítico, contemporâneo e relevante não tem respostas prontas, muitas vezes nos desafia e nos causa algum nível de desconforto. Mas o prêmio para aquele que se engaja com ele verdadeiramente de corpo e de alma, até ficar com as unhas cheias de terra, é absolutamente recompensador, trazendo significado e textura a cada passo que damos, a cada ação que tomamos, a cada emoção que sentimos.
Shabat Shalom!

[1] Talmud de Jerusalém, Nedarim 30B
[2] Deut. 24:14-15
[3] Deut 24:17-18
[4] Deut 22:1-4
[5] Deut. 22:11
[6] Deut. 21:18-21
[7] Deut. 22:28-29
[8] Deut. 22:13-21
[9] Gen. 18:23-25
[10] Ex. 32:9-14
[11] Num. 14:11-25
[12] Talmud Bavli Baba Metsia 59b
[13] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/09/deputado-do-psl-oferece-r-10-mil-a-quem-matar-suspeito-de-assassinato-no-es.shtm
[14] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/09/10/4-meninas-de-ate-13-anos-sao-estupradas-por-hora-no-brasil.htm
[15] Tosefta Sanhedrin 11:6





Em busca do discurso respeitoso

Há alguns anos, eu tive a honra de convidar uma líder comunitária para falar com meninas em preparação para seu bat-mitsvá sobre o significado, para ela, de ser uma mulher adulta judia. Esta líder, uma senhora ortodoxa, falou com muita paixão sobre o preceito judaico de “Ama a teu próximo como a ti mesmo” (Lev. 19:18). “Amar nossos pais, nossos amigos, nossos professores queridos é fácil”, ela disse às meninas e continuou: “difícil é amar a criança que implica com a gente no recreio, difícil é amar o professor da matéria que a gente não gosta tanto; difícil é amar o desconhecido que precisa de ajuda quando tropeça na rua.” 


Com alguma frequência, em nossas vidas cotidianas, somos tentados a nos comportarmos da maneira oposta: tratando muito bem as pessoas que nos são próximas e queridas e não demonstrando qualquer empatia àqueles que nos são distantes. Um ditado brasileiro expressava este comportamento quando adotado de forma institucional, dizendo: “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei.” Em tempos de polarizações políticas extremas como a época em que estamos vivendo, esta tendência assume aspectos ainda mais maquiavélicos. Justificamos regimes totalitários quando eles acontecem em países sob orientação ideológica similar à nossa; rejeitamos a defesa dos direitos humanos quando nos é expediente; quando a força da lei não é suficiente para condenar aqueles com quem discordamos, justificamos posturas que se colocam acima da lei “pelo bem maior”; demonizamos as pessoas com opiniões opostas às nossas. Institucionalizamos a postura de que “os fins justificam os meios.”


Entre as muitas regras relacionadas ao comportamento de guerra mencionadas na parashá desta semana está a de que “quando você for acampar contra seu inimigo, se guarde de toda coisa ruim” (Deut 23:10). Desta forma, a Torá nos alerta que, mesmo em tempos de guerra, a batalha contra um inimigo não justifica a adoção de comportamento que contrarie a ética. “Kol davar rá”, a expressão em hebraico para “toda coisa ruim” da qual a parashá adverte para  nos guardarmos em nossas disputas, guarda semelhança com o nome que a tradição dá às ofensas e fofocas expressas com objetivos espúrios, “lashon ha’rá” (a linguagem do mal). Neste mês de Elul, quando o processo de cheshbon ha’nefesh (contabilidade da alma) nos leva a refletir sobre nossas ações no ano que se encerra, é particularmente apropriado considerar em que medida adotamos discursos contra aqueles de quem discordamos que, no calor da batalha, negam nossos próprios valores e considerar de que forma podemos conduzir nossas divergências sem nos aproximarmos de kol davar rá nem praticarmos lashon ha’rá.


Que neste shabat, a busca pelo discurso construtivo esteja presente em todas as nossas falas, nos consensos e nas divergências, entre amigos e, especialmente, entre adversários. 


Shabat Shalom,