quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Dvar Torá: Rosh haShaná 5780 (CIP)

Tem um ditado em ídiche que diz דער מענטש טראכט און גאט לאכט, “as pessoas fazem planos e Deus dá risada”! Pois é…. eu tinha um plano de fazer esta prédica de Rosh haShaná sobre o lado positivo dos nossos erros; tinha lido vários livros, procurado a perspectiva judaica, começado a escrever — eu estava bem atrasado pra conseguir terminar a tempo, mas ia dar. 
Eu sou um consumidor voraz de podcasts, que são tipo o Netflix do rádio: tem um aplicativo no celular e você escolhe o programa que quer ouvir na hora em que quiser. Um dos meus podcasts favoritos, o The Daily, do New York Times, lançou um episódio especial no domingo de manhã [1]. Uma entrevista de uns 30 minutos com Ella Maners, uma menina super fofa que acabou de completar nove anos. Ella tem TOC, o Transtorno Obsessivo Compulsivo, e crises de ansiedade relacionadas, principalmente, ao medo de furacões e de ficar enjoada. No programa, sua mãe conta como na primeira crise de ansiedade que a menina teve, ela fez o que qualquer pai ou mãe leigo e preocupado faria: tentou acalmá-la, dizendo que aqueles medos eram infundados, que tudo ficaria bem.
Ella acabou de voltar de um acampamento de férias na Flórida para crianças com quadros clínicos semelhantes ao dela. Lá, ela deu um nome ao seu TOC, “Ocie”, e aprendeu que, quando Ocie repete na sua cabeça: “você vai ficar enjoada, você vai ficar enjoada, você vai ficar enjoada”, a pior coisa que ela podia fazer para se acalmar era a estratégia que ela e seus pais vinham adotando até então e responder “eu vou ficar bem, eu vou ficar bem, eu vou ficar bem.” Quando, ao invés disso, ela respondeu no seu diálogo interno com Ocie: “sim, eu vou ficar doente”, seu monstrinho interno desistiu de importuná-la, vendo que não conseguia mais gerar o medo paralisador de antes. Nesse acampamento de férias, Ella foi exposta a seus medos e desenvolveu estratégias para lidar com eles. Ao final da semana que ela passou no acampamento, Ella tinha ganho 42 contas para formar um colar, o mesmo número de obstáculos que ela superou neste período.
Depois de escutar este podcast por meia hora, com os olhos vermelhos e o rosto molhado pelas lágrimas e pensando nas conversas que eu tive com meus filhos nos últimos dias, eu decidi - literalmente aos 45 do segundo tempo - mudar o tema da prédica, porque precisamos falar dos nossos medos.
Em hebraico, há algumas palavras para medo. Quando falamos da relação com Deus, em geral, usamos a palavra יראה, ir’á, que está relacionada à reverência, a um medo que vem do respeito, de estarmos impressionados com uma determinada realidade. A palavra פחד, pachad, é muito mais usada no hebraico cotidiano para falar do medo do tipo que a Ella sentia. A rabina Ilana Goldhaber-Gordon resume da seguinte forma a diferença entre as duas palavras: 
Embora “pachad” e “ir’á” sejam, às vezes, sinônimos na literatura antiga, uma pesquisa completa sugere conotações distintas. A reverência tingida de medo que abre a alma, provavelmente, será descrita como “ir'á". O medo opressivo que desliga a pessoa, provavelmente, será descrito como "pachad". [2]
Há, no entanto, na Torá uma história em que a palavra pachad é usada para descrever a relação com Deus. Ela aparece no capítulo 31 de Bereshit, quando o patriarca Iaacov está se despedindo de seu sogro Labán. Há uma discussão entre eles, cada um argumentando que o outro tentou trapaceá-lo. Em um determinado momento, Iaacóv diz ao sogro: 
לוּלֵי אֱלֹהֵי אָבִי אֱלֹהֵי אַבְרָהָם וּפַחַד יִצְחָק הָיָה לִי כִּי עַתָּה רֵיקָם שִׁלַּחְתָּנִי
Não fosse pelo Deus do meu pai, o Deus de Avraham e o medo de Itschak, que esteve comigo, você estaria me mandando embora de mãos vazias. [3]
A palavra que Iaacóv usa para medo nesta passagem é pachad, aquele tipo de medo que paralisa, que nos tranca. Deus é chamado de “pachad de Itschak” — um nome que é adotado em outras situações, incluindo no Machzor de Iom Kipur.
Os comentaristas, é claro, ficam loucos com essa combinação. Rashi, o grande comentarista da Torá e do Talmud, tenta negar o desconforto, argumentando que não se usaria a expressão אלוהי יצחק, “o Deus de Itschak”, enquanto Itschak ainda estava vivo. Avraham Ibn Ezra, que viveu poucas décadas depois de Rashi, aventa a possibilidade de que pachad Itschak seja uma referência à experiência que Itschak teve quando quase foi morto pelo seu pai na parashá que lemos hoje [4]. Nachmanides, que viveu poucas décadas depois de Ibn Ezra, discorda desta teoria e indica que, de acordo com a tradição mística, que esta afirmação se refere ao aspecto divino de דין, din, “Justiça”. A rabina Goldhaber-Gordon explica a leitura de Nachmanides:
Nachmanides era um cabalista, que entendia que cada patriarca canalizava um aspecto diferente de Deus. Avraham expressa “Chesed”, “Bondade”. Segundo a Cabalá, o contrapeso a “Chessed” é “Din”, “Julgamento”, ou “Guevurá”, “Heroísmo”, traços que limitam o fluxo do “Chessed”. Itschak está associado a “Guevurá”. O equilíbrio entre “Chessed” e “Guevurá” é “Emet”, “Verdade Divina”. “Emet” é a característica de Iaacov.
Essas associações uma vez me intrigaram. O homem que tentou abater o filho encarna a bondade? O filho que estava preso no altar representa heroísmo? E Iaacov, com todas as suas enganações, é verdade? Eu as entendi melhor depois de uma conversa com a acadêmica da Bíblia Avivah Zornberg, que explicou que essas são as características com que cada um dos patriarcas mais lutaram, seus sucessos contando tanto quanto seus fracassos. [5]
Transtornado pela experiência de seu quase-sacrifício pelas mãos de seu pai sob ordens de Deus, é com o conceito de Justiça Divina que Itschak precisava se encontrar. Assim como Ella aprendeu, não adiantava negar seus próprios medos e traumas — ele precisava ser exposto a eles para que pudesse desenvolver estratégias para lidar com eles. Quando o repórter pergunta a Ella se ela ainda tem medo, ela responde que sim. “O que mudou, então?”, ele pergunta. “Eles não são mais tão aterrorizantes.”
Meus filhos moram no Rio de Janeiro e estão passando este feriado comigo. Durante o final de semana, minha filha de 11 anos falou do seu medo de que, com o ritmo atual das mudanças climáticas e da elevação dos oceanos, o Rio de Janeiro estará submerso antes que ela possa ter filhos. Meu filho, que tinha cinco anos quando nos mudamos para o Rio de Janeiro, passou um tempo obcecado com tiroteio e arrastão. Esses medos nunca os paralisaram, mas geraram angústias que têm sido implícita e explicitamente expressas. Nessas situações, minha intuição era tentar acalmá-los, minimizando a dimensão dos problemas. A verdade é que o meu maior medo tem a ver com o mundo que estou entregando a eles; ver meus filhos com medo é o que dispara os meus próprios gatilhos e, por isso, eu faço de tudo para livrá-los deste sentimento. Ao ouvir a entrevista com Ella, passei a questionar se esta é a melhor abordagem. Escondê-los de seus medos não resolverá nada! Como pai, minha função é validá-los e ajudá-los a encontrar estratégias para lidar com as situações que lhe embrulham o estômago.
Os serviços de Rosh haShaná e de Iom Kipur oferecem excelentes oportunidades para confrontarmos nossos medos e buscarmos caminhos para transformar pachad, o medo que paralisa, em ir’á, o medo reverente que abre a alma e nos ajuda a buscar soluções. Ao longo destes dias, somos convidados a abaixar nossas defesas e nos expormos frente a Deus e a nós mesmos como realmente somos, sem a possibilidade de nos escondermos sob máscaras ou roupas caras. 
A verdade é que para muitos de nós, é a oportunidade de nos olharmos no espelho sem maquiagem que mais os aterroriza. Passamos tanto tento vivendo a persona que achamos que devíamos ser – agora potencializados pelo megafone das redes sociais – que nos esquecemos de quem realmente somos ou de quem gostaríamos de ser. Numa das peças centrais destes dias, o uNetanê Tokef, somos expostos àquele que, talvez, seja o maior dos nossos medos: confrontar a nossa própria mortalidade e questionar qual será nosso legado quando já não estivermos mais aqui.
Será que teremos coragem para enfrentar de verdade estas perguntas, sem repetirmos para nós mesmos “vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem”? Se Deus estivesse distribuindo contas de colar para cada vez que você realmente se confrontou com um dos seus medos nestes dias, quantas cores teria o seu colar?
Em sua entrevista, Ella e sua mãe contaram que algumas vezes pensaram em desistir da Colônia de Férias: o processo era realmente difícil e doloroso. Ao final da semana, no entanto, Ella declarou: “eu me senti muito bem depois de ter sido exposta [aos meus medos], eu me senti bem, eu me senti feliz, eu me senti corajosa.” A tradição rabínica ensina que Iom Kipur é um dos dois dias mais felizes do calendário judaico – será que este ano conseguiremos terminar o dia repetindo as palavras de Ella, “eu me senti muito bem, eu me senti feliz, eu me senti corajoso”?
Logo mais, começaremos o último Mussaf deste Rosh haShaná; na semana que vem estaremos novamente juntos, rezando e refletindo em Iom Kipur.
בְּראֹשׁ הַשָּׁנָה יִכָּתֵבוּן וּבְיוֹם צוֹם כִּפּוּר יֵחָתֵמוּן
Em Rosh haShaná será escrito e em Iom Kipur será confirmado.
Quem terá coragem de se expor, de correr riscos e revelar seus grandes medos e quem irá se esconder mais uma vez e deixar passar mais esta oportunidade?
Shaná Tová! Shaná Tová uMetucá!


[1] https://www.nytimes.com/2019/09/29/podcasts/the-daily/children-fears-ocd-anxiety.html
[2] https://forward.com/shma-now/pachad-yitzchak/381263/fear-becomes-strength/
[3] Gen. 31:42a
[4] Esta posição de Ibn Ezra aparece em seu comentário ao verso Gen. 31:53.
[5] https://forward.com/shma-now/pachad-yitzchak/381263/fear-becomes-strength/


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