quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Dvar Torá: Rosh haShaná 5780 (CIP)

Tem um ditado em ídiche que diz דער מענטש טראכט און גאט לאכט, “as pessoas fazem planos e Deus dá risada”! Pois é…. eu tinha um plano de fazer esta prédica de Rosh haShaná sobre o lado positivo dos nossos erros; tinha lido vários livros, procurado a perspectiva judaica, começado a escrever — eu estava bem atrasado pra conseguir terminar a tempo, mas ia dar. 
Eu sou um consumidor voraz de podcasts, que são tipo o Netflix do rádio: tem um aplicativo no celular e você escolhe o programa que quer ouvir na hora em que quiser. Um dos meus podcasts favoritos, o The Daily, do New York Times, lançou um episódio especial no domingo de manhã [1]. Uma entrevista de uns 30 minutos com Ella Maners, uma menina super fofa que acabou de completar nove anos. Ella tem TOC, o Transtorno Obsessivo Compulsivo, e crises de ansiedade relacionadas, principalmente, ao medo de furacões e de ficar enjoada. No programa, sua mãe conta como na primeira crise de ansiedade que a menina teve, ela fez o que qualquer pai ou mãe leigo e preocupado faria: tentou acalmá-la, dizendo que aqueles medos eram infundados, que tudo ficaria bem.
Ella acabou de voltar de um acampamento de férias na Flórida para crianças com quadros clínicos semelhantes ao dela. Lá, ela deu um nome ao seu TOC, “Ocie”, e aprendeu que, quando Ocie repete na sua cabeça: “você vai ficar enjoada, você vai ficar enjoada, você vai ficar enjoada”, a pior coisa que ela podia fazer para se acalmar era a estratégia que ela e seus pais vinham adotando até então e responder “eu vou ficar bem, eu vou ficar bem, eu vou ficar bem.” Quando, ao invés disso, ela respondeu no seu diálogo interno com Ocie: “sim, eu vou ficar doente”, seu monstrinho interno desistiu de importuná-la, vendo que não conseguia mais gerar o medo paralisador de antes. Nesse acampamento de férias, Ella foi exposta a seus medos e desenvolveu estratégias para lidar com eles. Ao final da semana que ela passou no acampamento, Ella tinha ganho 42 contas para formar um colar, o mesmo número de obstáculos que ela superou neste período.
Depois de escutar este podcast por meia hora, com os olhos vermelhos e o rosto molhado pelas lágrimas e pensando nas conversas que eu tive com meus filhos nos últimos dias, eu decidi - literalmente aos 45 do segundo tempo - mudar o tema da prédica, porque precisamos falar dos nossos medos.
Em hebraico, há algumas palavras para medo. Quando falamos da relação com Deus, em geral, usamos a palavra יראה, ir’á, que está relacionada à reverência, a um medo que vem do respeito, de estarmos impressionados com uma determinada realidade. A palavra פחד, pachad, é muito mais usada no hebraico cotidiano para falar do medo do tipo que a Ella sentia. A rabina Ilana Goldhaber-Gordon resume da seguinte forma a diferença entre as duas palavras: 
Embora “pachad” e “ir’á” sejam, às vezes, sinônimos na literatura antiga, uma pesquisa completa sugere conotações distintas. A reverência tingida de medo que abre a alma, provavelmente, será descrita como “ir'á". O medo opressivo que desliga a pessoa, provavelmente, será descrito como "pachad". [2]
Há, no entanto, na Torá uma história em que a palavra pachad é usada para descrever a relação com Deus. Ela aparece no capítulo 31 de Bereshit, quando o patriarca Iaacov está se despedindo de seu sogro Labán. Há uma discussão entre eles, cada um argumentando que o outro tentou trapaceá-lo. Em um determinado momento, Iaacóv diz ao sogro: 
לוּלֵי אֱלֹהֵי אָבִי אֱלֹהֵי אַבְרָהָם וּפַחַד יִצְחָק הָיָה לִי כִּי עַתָּה רֵיקָם שִׁלַּחְתָּנִי
Não fosse pelo Deus do meu pai, o Deus de Avraham e o medo de Itschak, que esteve comigo, você estaria me mandando embora de mãos vazias. [3]
A palavra que Iaacóv usa para medo nesta passagem é pachad, aquele tipo de medo que paralisa, que nos tranca. Deus é chamado de “pachad de Itschak” — um nome que é adotado em outras situações, incluindo no Machzor de Iom Kipur.
Os comentaristas, é claro, ficam loucos com essa combinação. Rashi, o grande comentarista da Torá e do Talmud, tenta negar o desconforto, argumentando que não se usaria a expressão אלוהי יצחק, “o Deus de Itschak”, enquanto Itschak ainda estava vivo. Avraham Ibn Ezra, que viveu poucas décadas depois de Rashi, aventa a possibilidade de que pachad Itschak seja uma referência à experiência que Itschak teve quando quase foi morto pelo seu pai na parashá que lemos hoje [4]. Nachmanides, que viveu poucas décadas depois de Ibn Ezra, discorda desta teoria e indica que, de acordo com a tradição mística, que esta afirmação se refere ao aspecto divino de דין, din, “Justiça”. A rabina Goldhaber-Gordon explica a leitura de Nachmanides:
Nachmanides era um cabalista, que entendia que cada patriarca canalizava um aspecto diferente de Deus. Avraham expressa “Chesed”, “Bondade”. Segundo a Cabalá, o contrapeso a “Chessed” é “Din”, “Julgamento”, ou “Guevurá”, “Heroísmo”, traços que limitam o fluxo do “Chessed”. Itschak está associado a “Guevurá”. O equilíbrio entre “Chessed” e “Guevurá” é “Emet”, “Verdade Divina”. “Emet” é a característica de Iaacov.
Essas associações uma vez me intrigaram. O homem que tentou abater o filho encarna a bondade? O filho que estava preso no altar representa heroísmo? E Iaacov, com todas as suas enganações, é verdade? Eu as entendi melhor depois de uma conversa com a acadêmica da Bíblia Avivah Zornberg, que explicou que essas são as características com que cada um dos patriarcas mais lutaram, seus sucessos contando tanto quanto seus fracassos. [5]
Transtornado pela experiência de seu quase-sacrifício pelas mãos de seu pai sob ordens de Deus, é com o conceito de Justiça Divina que Itschak precisava se encontrar. Assim como Ella aprendeu, não adiantava negar seus próprios medos e traumas — ele precisava ser exposto a eles para que pudesse desenvolver estratégias para lidar com eles. Quando o repórter pergunta a Ella se ela ainda tem medo, ela responde que sim. “O que mudou, então?”, ele pergunta. “Eles não são mais tão aterrorizantes.”
Meus filhos moram no Rio de Janeiro e estão passando este feriado comigo. Durante o final de semana, minha filha de 11 anos falou do seu medo de que, com o ritmo atual das mudanças climáticas e da elevação dos oceanos, o Rio de Janeiro estará submerso antes que ela possa ter filhos. Meu filho, que tinha cinco anos quando nos mudamos para o Rio de Janeiro, passou um tempo obcecado com tiroteio e arrastão. Esses medos nunca os paralisaram, mas geraram angústias que têm sido implícita e explicitamente expressas. Nessas situações, minha intuição era tentar acalmá-los, minimizando a dimensão dos problemas. A verdade é que o meu maior medo tem a ver com o mundo que estou entregando a eles; ver meus filhos com medo é o que dispara os meus próprios gatilhos e, por isso, eu faço de tudo para livrá-los deste sentimento. Ao ouvir a entrevista com Ella, passei a questionar se esta é a melhor abordagem. Escondê-los de seus medos não resolverá nada! Como pai, minha função é validá-los e ajudá-los a encontrar estratégias para lidar com as situações que lhe embrulham o estômago.
Os serviços de Rosh haShaná e de Iom Kipur oferecem excelentes oportunidades para confrontarmos nossos medos e buscarmos caminhos para transformar pachad, o medo que paralisa, em ir’á, o medo reverente que abre a alma e nos ajuda a buscar soluções. Ao longo destes dias, somos convidados a abaixar nossas defesas e nos expormos frente a Deus e a nós mesmos como realmente somos, sem a possibilidade de nos escondermos sob máscaras ou roupas caras. 
A verdade é que para muitos de nós, é a oportunidade de nos olharmos no espelho sem maquiagem que mais os aterroriza. Passamos tanto tento vivendo a persona que achamos que devíamos ser – agora potencializados pelo megafone das redes sociais – que nos esquecemos de quem realmente somos ou de quem gostaríamos de ser. Numa das peças centrais destes dias, o uNetanê Tokef, somos expostos àquele que, talvez, seja o maior dos nossos medos: confrontar a nossa própria mortalidade e questionar qual será nosso legado quando já não estivermos mais aqui.
Será que teremos coragem para enfrentar de verdade estas perguntas, sem repetirmos para nós mesmos “vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem”? Se Deus estivesse distribuindo contas de colar para cada vez que você realmente se confrontou com um dos seus medos nestes dias, quantas cores teria o seu colar?
Em sua entrevista, Ella e sua mãe contaram que algumas vezes pensaram em desistir da Colônia de Férias: o processo era realmente difícil e doloroso. Ao final da semana, no entanto, Ella declarou: “eu me senti muito bem depois de ter sido exposta [aos meus medos], eu me senti bem, eu me senti feliz, eu me senti corajosa.” A tradição rabínica ensina que Iom Kipur é um dos dois dias mais felizes do calendário judaico – será que este ano conseguiremos terminar o dia repetindo as palavras de Ella, “eu me senti muito bem, eu me senti feliz, eu me senti corajoso”?
Logo mais, começaremos o último Mussaf deste Rosh haShaná; na semana que vem estaremos novamente juntos, rezando e refletindo em Iom Kipur.
בְּראֹשׁ הַשָּׁנָה יִכָּתֵבוּן וּבְיוֹם צוֹם כִּפּוּר יֵחָתֵמוּן
Em Rosh haShaná será escrito e em Iom Kipur será confirmado.
Quem terá coragem de se expor, de correr riscos e revelar seus grandes medos e quem irá se esconder mais uma vez e deixar passar mais esta oportunidade?
Shaná Tová! Shaná Tová uMetucá!


[1] https://www.nytimes.com/2019/09/29/podcasts/the-daily/children-fears-ocd-anxiety.html
[2] https://forward.com/shma-now/pachad-yitzchak/381263/fear-becomes-strength/
[3] Gen. 31:42a
[4] Esta posição de Ibn Ezra aparece em seu comentário ao verso Gen. 31:53.
[5] https://forward.com/shma-now/pachad-yitzchak/381263/fear-becomes-strength/


sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Lembra de quem queríamos ser?

(originalmente publicado em http://www.institutobrasilisrael.org/2019/09/27/lembra-de-quem-queriamos-ser/)

No universo dos feriados religiosos, Rosh haShaná e Iom Kipur não estariam na lista das 10 datas mais populares. Com suas metáforas sobre o Dia do Julgamento e o nome (em hebraico) de “Dias Terríveis” (Iamim Norayim), estas datas precisam urgentemente da repaginada de marketing que Jon Stewart pediu para outros feriados judaicos. A verdade, no entanto, é que, por trás do nome pouco popular (abandonado na tradução para o português) e das metáforas complicadas, temos conceitos religiosos profundos que se sobrepõem de forma quase paradoxal: uma autocrítica intensa e um otimismo quase ilimitado.

Tanto a crítica quanto o otimismo têm origem no conceito de tshuvá, palavra em hebraico cuja tradução pode variar de “resposta”, a “retorno” a “arrependimento”. Eu gosto de pensar em todos estes sentidos entrelaçados, nos quais a tshuvá da qual falamos nesta época do ano é a resposta que damos ao nosso processo de cheshbon hanefesh, a “contabilidade da alma”, a reflexão sobre os caminhos que nossas vidas estão tomando. Ao reconhecermos nossas conquistas no ano que termina e identificarmos as áreas em que nos afastamos dos nossos objetivos, tentamos voltar à nossa rota; através do arrependimento, voltamos à melhor versão de nós mesmos. O otimismo é expresso na possibilidade permanente de engajarmos neste processo de tshuvá, mesmo quando o “retorno” implica caminhar uma  grande distância. Estes conceitos, eu acho, foram perfeitamente capturados por um antigo supervisor de estágio meu, o rabino Eric Gurvis, que certa vez distribuiu adesivos após sua prédica de Iom Kipur que diziam “Lembre-se de quem você queria ser”.

Para muitos de nós, lembrarmos de quem queríamos ser pode ser um esforço complexo. A necessidade de pagar a conta do aluguel todo mês ou de acordar cedo para levar os filhos à escola faz com que, muitas vezes, abramos mão de valores que nos eram caros mas que não nos ajudam nas demandas práticas da vida. Como mecanismo de defesa, ao nos distanciarmos dos ideais que tínhamos, apagamos os velhos sonhos. Em algum momento, passamos a acreditar que somos o que sempre tínhamos querido ser, apesar de todas as evidências do contrário.

Países ou movimentos nacionais, no entanto, costumam registrar de forma mais sistemática onde eles gostariam de chegar. Neste Rosh haShaná em que Israel tenta, mais uma vez, organizar um novo governo, vale a pena olharmos para os sonhos que o país um dia teve para si mesmo e pensar o que “Lembre-se de quem você queria ser” pode significar neste contexto. Neste processo, busquei a Declaração de Independência, como documento que expressava os sonhos dos fundadores do Estado. Percebe-se um otimismo claro no documento (alguns diriam “ingenuidade”), a esperança de um relacionamento de parceria com a ONU, de relações possíveis com os países vizinhos, de tratamento equânime entre todos os seus habitantes, de respeito aos seus idiomas, religiões e culturas. Cada um de nós terá suas próprias tshuvot na comparação entre este documento e a realidade do Estado de 71 anos, que precisa pagar o aluguel e acordar cedo para levar as crianças, mas que ainda contém dentro de si muitos dos valores registrados na Declaração de Independência. Quando consideramos “Quem Israel gostaria de ser?”, podemos identificar quais sonhos foram largados ao longo do caminho que, agora, gostaríamos de retomar e nos perguntar qual papel nós brasileiros podemos ter nesta retomada de valores e de sonhos?

Shaná Tová!

Que nossas vidas —  os sonhos, as ações, os valores, as restrições — façam diferença e mereçam ser registradas no Livro das Vidas.



sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Dvar Torá: O que fazemos com as passagens ofensivas da Torá? (CIP)

Vocês já devem ter ouvido a história da discussão entre dois rabinos sobre qual o versículo mais importante da Torá [1]. Um deles escolhe o verso “Ama a teu próximo como a ti mesmo” e outro escolhe um verso que fala da criação dos seres humanos à imagem de Deus. Rabinos adoram contar essa história porque ela fala de valores que nos são caros e que estão relacionados ao papel que acreditamos que o Judaísmo deve ter nas nossas vidas: a empatia e a dignidade inalienável de todo ser humano, além de falar do pluralismo judaico.
Mas uma comunidade judaica liberal com um projeto de educar para um judaísmo crítico, verdadeiro na relação com suas fontes e que dialogue com adultos, precisa reconhecer que nem todos os versículos da Torá valorizam a empatia ou a dignidade humana.
Na semana passada, eu estava em uma conversa com educadores judaicos, que estavam manifestando desconforto em terem que ler um verso da Torá cujo sentido literal está em oposição direta ao projeto de educação judaica que eles se propõem a desenvolver. 
O que fazemos quando as palavras da tradição não refletem os valores que acreditamos que o Judaísmo defende ou, ainda pior, quando elas refletem os valores opostos?
Esta não é uma questão única da CIP e nem mesmo recente. Desde o começo da era rabínica, há cerca de 2000 anos, os Rabinos vêm expressando seu desconforto com partes da tradição e buscando estratégias para lidar com ela em midrashim, no Talmud e em outros comentários.
A parashá desta semana, Ki Tetsê, é considerada a parashá com o maior número de mitsvot de toda a Torá; de acordo com uma contagem, são 72. Algumas delas, estão profundamente enraizadas nos nossos valores, como o conceito de que não podemos atrasar o salário dos nossos empregados, pois eles dependem destes pagamentos [2], a obrigação de não subverter os direitos dos oprimidos pois fomos oprimidos na terra de Mitsrayim [3] ou ainda a de devolver um objeto perdido que tenhamos encontrado ou de tomar conta dele até que encontremos o dono [4]. Há mitsvot da nossa parashá cuja razão não nos parece óbvia mas que tampouco nos ofende, como a proibição de usarmos roupas que misturem lã e linho [5]. Mas há também diversas mitsvot nesta parashá que entram em conflito com os meus valores e imagino que com os de vocês também. 
Há a instrução de que um filho desafiador e rebelde deve ser levado por seus pais até os anciãos da cidade para que ele seja condenado à morte [6], a de um homem que violentar uma mulher solteira será condenado a pagar uma multa ao pai dele e casar-se com ela sem a chance de divórcio [7] e a de que um homem que acusar sua esposa de ter mentido sobre sua virgindade – se os pais dela mostrarem que ele está mentindo, ele é castigado fisicamente, paga uma multa e perde o direito de divorciar sua esposa, mas se os pais dela não conseguirem mostrar que ela era virgem, ela será condenada à morte [8].
Muitos de vocês talvez não conhecessem estas regras. Elas não fazem parte da lista de mitsvot que nós, rabinos, gostamos de divulgar. Talvez se sintam chocados e incomodados com os valores que elas expressam: a incompreensão de como lidamos com as divergências dentro das nossas famílias ou a absoluta falta de empatia para com a perspectiva feminina em regras sobre o comportamento conjugal. Pessoalmente, eu reconheço que estas regras me deixam chocado e incomodado, só para usar eufemismos.
Frente a regras como estas, precisamos de estratégias para não descartarmos o Judaísmo como um todo, para não jogar o bebê com a água suja. 
Eu conheço quatro estratégias distintas – quatro estratégias que estão todas elas fundamentadas na tradição judaica e que têm seus adeptos hoje em dia. Muita gente, talvez a maioria de vocês, alterna em diferentes estratégias para cada situação ou ao longo de suas vidas.
A primeira estratégia nega o desconforto, atribuindo qualquer restrição que possamos ter a estas mitsvot à nossa própria incapacidade de reconhecer sua sabedoria. “Se está na Torá, vem de Deus”, seus proponentes afirmam. “Se vem de Deus, só nos resta cumprir sem questionar. Ou você acha que, na sua limitada capacidade, consegue compreender toda a lógica Divina?!”. O que os defensores desta estratégia preferem ignorar é que a tradição judaica questiona decisões Divinas o tempo todo! Avraham questionou Deus de maneira absolutamente enfática quando soube da decisão Divina de destruir Sodoma e Gomorra [9]; Moshé desafiou Deus quando soube da decisão de destruir o povo depois do episódio do bezerro de ouro [10] e, novamente, depois do episódio dos 12 espiões enviados antes da chegada à Terra de Israel [11]. Na tradição rabínica, uma das passagens mais famosas do Talmud conta como Deus decidiu intervir em um debate e de como os rabinos responderam: לא בשמיים היא, “Você nos deu a Torá e agora ela é nossa para decidirmos como interpretá-la”. Como Deus reagiu a este ato de chutspá e desafio à autoridade? Com orgulho, dizendo נצחוני בניי, “meus filhos me derrotaram”, como o pai satisfeito que perde para a filha no jogo de xadrez. A resposta de que não temos capacidade para compreender toda a complexidade da lógica Divina pode até estar correta, mas ela nunca preveniu a tradição judaica de questionar e até mesmo desafiar Deus quando temos discordâncias.
A segunda estratégia é aquela que os educadores com quem eu me reuni tinham proposto: por que não damos sumiço, paramos de ler as passagens que consideramos especialmente problemáticas? Pessoalmente, eu sou adepto de adequar alguns dos nossos textos litúrgicos, de modificar um pouco a formulação de algumas rezas. Mas a Torá?! O verbo de ação que aparece na brachá para o estudo da Torá é לעסוק, "laasók", nas palavras da Torá. A raiz do verbo é a mesma raiz de עסק, "essek", "negócio". O estudo verdadeiro da Torá é algo que vai além do plano puramente filosófico. Ele não fica só no cérebro, envolve coração, braços, pernas e nossos órgãos internos: realmente nos envolvemos de corpo e alma. Quem já trabalhou com jardinagem vai entender a metáfora de que ficamos com a unha cheia de terra – essa é a medida do estudo verdadeiro da Torá. Será que conseguiríamos este resultado se omitíssemos todas as passagens que nos incomodassem? 
O incômodo é parte deste processo de crescimento judaico – e se eliminarmos todas as passagens que nos causam incômodo, limitaríamos tremendamente nosso crescimento no encontro com a Torá!
Uma terceira estratégia é a de analisar o texto da Torá em seu contexto histórico. As leis que estabelecem uniões conjugais absolutamente assimétricas não seriam tão injustas porque a cultura da época dava ainda menos autonomia para as mulheres. Na comparação, o texto até parece um pouco mais igualitário. Em muitos círculos liberais, esta é a estratégia adotada na maior parte dos casos para lidar com trechos problemáticos. Seus adeptos argumentam que você não pode julgar um texto que tem, pelo menos, 2500 anos de história a partir das sensibilidades do século 21. Pessoalmente, meu problema com esta abordagem é que eu quero que este texto tenha relevância para a minha vida em 2019. Quando eu leio a Torá como acadêmico, eu não tenho problema nenhum em colocá-la em diálogo com as outras culturas da região ou da mesma época. Mas quando eu, um judeu adulto do século 21, leio a Torá em um contexto religioso, eu procuro no texto valores e referências que me ajudem a definir meu comportamento com relação aos oprimidos do meu tempo, a negociar o relacionamento com meus filhos quando eles se mostram desafiadores e rebeldes, a questionar minha própria relação com a autoridade. Para mim, a Torá não é simplesmente uma obra de literatura histórica que eu me permito ler com uma postura distanciada. Este livro contém as histórias sagradas do meu povo, que me convidam e me desafiam a me tornar uma versão melhor de mim a cada vez que eu o leio.
Como, então, lidar com as passagens cujos valores não estão alinhados aos meus?
A quarta estratégia – e deve ser óbvio a essa altura que essa é a estratégia com a qual eu mais me identifico – diz que as mitsvot da Torá – aqui incluídas todas as 72 mitsvot desta parashá, mesmo aquelas que eu destaquei no início como especialmente alinhadas com nossos valores – não devem ser tomadas como instruções literais, mas como convites para aprofundarmos as discussões a respeito dos temas que elas introduzem. Qualquer bom professor sabe que, em algumas situações, não há nada mais eficiente para dar início a debates produtivos que afirmações polêmicas - e é isso que a Torá nos dá em algumas situações. Nesta abordagem, as afirmações polêmicas são só o "gatilho" para dar início ao debate; elas não resumem, de forma nenhuma, o que a Torá quer que aprendamos destas conversas. A partir do "gatilho" proposto pela Torá, cada grupo estabelecerá sua conversa a respeito dos temas propostos e chegará a conclusões distintas, que mudarão ao longo do tempo e de um grupo para outro. Assim, a Torá se mantém a "árvore da vide para quem lhe dá apoio"!
Como lidar com a assimetria intrínseca às relações de trabalho? Que estratégias podemos adotar quando nossos filhos questionam o que nos é mais caro? Quais são as respostas possíveis para situações de violência sexual? Ou de infidelidade conjugal? Ou de comportamentos durante o processo de divórcio que parecem negar que sejam as mesmas pessoas que, alguns anos antes, se amavam tanto que prometeram passar o resto da vida juntos? Como garantir que a ética tenha lugar nas nossas divergências, mesmo nas disputas mais violentas, como a guerra?
Estas são algumas das conversas fundamentais que a parashá desta semana nos convida – alguns diriam, nos instrui – a termos. Numa semana em que um deputado estadual do Espírito Santo ofereceu uma recompensa de R$10.000 reais pela morte do suspeito de um assassinato [13], na qual fui divulgada a estatística de que quatro meninas de até 13 anos são violentadas por hora no Brasil [14], estes temas parecem especialmente adequados, temas para conversas urgentes, que não podemos mais ignorar.
A tradição rabínica diz que nunca houve e nunca haverá um filho desafiador e rebelde que justifique o processo descrito nesta parashá. Em resposta à pergunta “então, por que este trecho foi incluído na Torá?”, a própria tradição responde “para dar um prêmio àqueles que debaterem seriamente esta questão” [15]. O prêmio é o debate!
Um judaísmo crítico, contemporâneo e relevante não tem respostas prontas, muitas vezes nos desafia e nos causa algum nível de desconforto. Mas o prêmio para aquele que se engaja com ele verdadeiramente de corpo e de alma, até ficar com as unhas cheias de terra, é absolutamente recompensador, trazendo significado e textura a cada passo que damos, a cada ação que tomamos, a cada emoção que sentimos.
Shabat Shalom!

[1] Talmud de Jerusalém, Nedarim 30B
[2] Deut. 24:14-15
[3] Deut 24:17-18
[4] Deut 22:1-4
[5] Deut. 22:11
[6] Deut. 21:18-21
[7] Deut. 22:28-29
[8] Deut. 22:13-21
[9] Gen. 18:23-25
[10] Ex. 32:9-14
[11] Num. 14:11-25
[12] Talmud Bavli Baba Metsia 59b
[13] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/09/deputado-do-psl-oferece-r-10-mil-a-quem-matar-suspeito-de-assassinato-no-es.shtm
[14] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/09/10/4-meninas-de-ate-13-anos-sao-estupradas-por-hora-no-brasil.htm
[15] Tosefta Sanhedrin 11:6





Em busca do discurso respeitoso

Há alguns anos, eu tive a honra de convidar uma líder comunitária para falar com meninas em preparação para seu bat-mitsvá sobre o significado, para ela, de ser uma mulher adulta judia. Esta líder, uma senhora ortodoxa, falou com muita paixão sobre o preceito judaico de “Ama a teu próximo como a ti mesmo” (Lev. 19:18). “Amar nossos pais, nossos amigos, nossos professores queridos é fácil”, ela disse às meninas e continuou: “difícil é amar a criança que implica com a gente no recreio, difícil é amar o professor da matéria que a gente não gosta tanto; difícil é amar o desconhecido que precisa de ajuda quando tropeça na rua.” 


Com alguma frequência, em nossas vidas cotidianas, somos tentados a nos comportarmos da maneira oposta: tratando muito bem as pessoas que nos são próximas e queridas e não demonstrando qualquer empatia àqueles que nos são distantes. Um ditado brasileiro expressava este comportamento quando adotado de forma institucional, dizendo: “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei.” Em tempos de polarizações políticas extremas como a época em que estamos vivendo, esta tendência assume aspectos ainda mais maquiavélicos. Justificamos regimes totalitários quando eles acontecem em países sob orientação ideológica similar à nossa; rejeitamos a defesa dos direitos humanos quando nos é expediente; quando a força da lei não é suficiente para condenar aqueles com quem discordamos, justificamos posturas que se colocam acima da lei “pelo bem maior”; demonizamos as pessoas com opiniões opostas às nossas. Institucionalizamos a postura de que “os fins justificam os meios.”


Entre as muitas regras relacionadas ao comportamento de guerra mencionadas na parashá desta semana está a de que “quando você for acampar contra seu inimigo, se guarde de toda coisa ruim” (Deut 23:10). Desta forma, a Torá nos alerta que, mesmo em tempos de guerra, a batalha contra um inimigo não justifica a adoção de comportamento que contrarie a ética. “Kol davar rá”, a expressão em hebraico para “toda coisa ruim” da qual a parashá adverte para  nos guardarmos em nossas disputas, guarda semelhança com o nome que a tradição dá às ofensas e fofocas expressas com objetivos espúrios, “lashon ha’rá” (a linguagem do mal). Neste mês de Elul, quando o processo de cheshbon ha’nefesh (contabilidade da alma) nos leva a refletir sobre nossas ações no ano que se encerra, é particularmente apropriado considerar em que medida adotamos discursos contra aqueles de quem discordamos que, no calor da batalha, negam nossos próprios valores e considerar de que forma podemos conduzir nossas divergências sem nos aproximarmos de kol davar rá nem praticarmos lashon ha’rá.


Que neste shabat, a busca pelo discurso construtivo esteja presente em todas as nossas falas, nos consensos e nas divergências, entre amigos e, especialmente, entre adversários. 


Shabat Shalom,

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Dvar Torá: Tishá b'Av – do desespero à esperança (CIP)

Antes de começar a trabalhar na CIP em janeiro deste ano, eu passei dois anos trabalhando no Rio de Janeiro. Como coordenador de cultura judaica de uma das escolas judaicas de lá, eu tive a oportunidade de escutar relatos de alguns sobreviventes da Shoá. Invariavelmente, eles começavam contando como eles tinham desembarcado do navio durante o Carnaval e falavam do choque com a informalidade da cultura brasileira para alguém recém-chegado da Europa. Com o tempo, descobri o que já era piada corrente entre os estudiosos da história judaica do Rio de Janeiro: se todos estes relatos fossem precisos, o porto da cidade do Rio teria passado os meses de fevereiro das décadas de 1930 e 1940 desembarcando apenas imigrantes judeus, que não teriam chegado em nenhum outro mês do ano. Provavelmente, o choque relatado por estes imigrantes com a informalidade brasileira, com o Carnaval em particular, era verdadeiro, ainda que nem todos tivessem chegado em fevereiro. Às vezes, nossas memórias nos traem e construímos narrativas que não são 100% precisas - e, mesmo assim, revelam muita verdade.
Quem já passou os meses de junho a agosto em Israel, especialmente nas suas cidades litorâneas, deve ter ouvido a expressão ”חום כזה עוד לא היה!”, “nunca tivemos um calor como este!”. Neste caso também, a percepção popular não é 100% precisa, mas aponta para uma tendência real. A temperatura em Tel Aviv não tem crescido de forma linear de ano pra ano, mas a última média disponível para o mês de julho foi de 27,1º, 1,5º mais alto do que a média observada em 1900 e o crescimento em pouco mais de um século tem sido lento, mas constante. Segundo projeções publicadas pela BBC há algumas semanas, as expectativas mais pessimistas indicam que, se nada for feito para o controle das mudanças climáticas, a média das temperaturas de julho em Tel Aviv pode chegar a 31,4º em 2100, 5,9º mais alto do que a média verificada 200 anos antes. O ditado popular, baseado na memória, novamente reflete algo verdadeiro.
A chegada no Carnaval e o calor que nunca houve igual são parte da nossa memória coletiva, da forma como nos relacionamos com o passado, ainda que não reflitam exatamente como os fatos aconteceram.
A data judaica de hoje é Tishá b’Av, nono dia do mês de Av. Tradicionalmente, é a data mais triste do calendário. Este ano, excepcionalmente, como Tishá b’Av cai em um Shabat, as práticas relacionadas à tristeza, o jejum e as rezas especias são adiadas até amanhã à noite. A data reúne, na memória coletiva judaica, mesmo que não na nossa história, diversas tragédias que se abateram sobre o povo judeu ao longo de sua história: a destruição do Primeiro Templo pelos Babilônios em 587 aEC e do Segundo Templo em 70 EC, a expulsão dos judeus da Inglaterra em 1290, da França em 1306, da Espanha em 1492, a aprovação da “Solução Final” na Alemanha Nazista em 1941, o início da deportação em massa do Gueto de Varsóvia para Treblinka em 1942. Recentemente, o atentado à AMIA, em Buenos Aires, o maior atentado terrorista da América Latina, que matou 85 pessoas e deixou centenas feridas, aconteceu no dia 10 de Av de 1994.
Na discussão sobre a destruição do Segundo Templo, o Talmud indica que o motivo foi "שנאת חינם", o "ódio injustificado" que fez com que as pessoas fossem indiferentes ao sofrimento e à humilhação uns dos outros.
Imagino que todos aqui já expressaram ou escutaram a perspectiva de que nunca vivemos em um ambiente tão contaminado pela intolerância e pelo ódio àquele que é ou que pensa diferente. A intolerância tem feito com que a convivência nos jantares familiares tenha se tornado mais complicada. No grupo de whatsapp dos meus colegas de escola, toda semana tem alguém que sai do grupo, ofendido por algo que foi dito ou pelo tom com que foi dito.
Assim como na história da chegada dos judeus ao Rio de Janeiro e do calor de Tel Aviv. há um certo exagero nesta percepção e um núcleo de verdade. A intolerância, o ódio ao diferente e a violência contra aqueles que ousam ter uma opinião diferente da nossa não apareceu, de forma alguma, neste governo, na eleição do ano passado ou nas manifestações que tiveram início em junho de 2013. Ao mesmo tempo, é inegável que, em escala global, os últimos cinco anos têm assistido a um aumento assustador dos crimes de ódio e da intolerância ao diferente. Nos Estados Unidos, passamos a nos acostumar com assassinatos em massa quase todo mês, cada vez dirigido a um grupo étnico diferente. Os negros, os cristãos, os muçulmanos, a comunidade hispânica, a comunidade LGBTQ já foram vítimas destas onde de violência, assim como a comunidade judaica, que sempre se sentiu em casa nos EUA e que passou a ter que conviver com o medo de novos ataques neonazistas ou de supremacistas brancos.
No Brasil, temos assistido a fenômenos semelhantes. O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil aponta, com dados de 2017, aumento em 14 dos 19 tipos de violência contra indígenas estudados. Uma pessoa trans ou gênero diversa é assassinada no Brasil a cada dois dias, o que representa 52% de todos os casos deste tipo registrados no mundo. Uma mulher registra uma queixa baseada na Lei Maria da Penha a cada dois minutos. Os clássicos do futebol paulista têm sido realizados com torcida única para evitar o conflito de torcedores e, mesmo assim, o Brasil foi considerado em 2014 o país em que mais pessoas foram mortas por conflito entre torcidas de futebol. A um ritmo terrível, nos acostumamos a assistir a massacres acontecidos nas nossas cadeias: no primeiro semestre de 2017, foram mortos 349 detentos, um aumento de 82% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Chegamos a um ponto que beira a barbárie.
Um midrash em Eichá Rabá [1], a coleção de midrashim associada à data de Tishá b’Av, conta que, em resposta à destruição de Jerusalém, Deus perguntou aos seus anjos como um rei humano responderia se tivesse perdido um filho. Os anjos responderam: um rei humano penduraria sacos na sua porta, apagarias as luzes, viraria o sofá, andaria sem sapatos, rasgaria suas roupas, sentaria em silêncio e choraria. “Eu vou fazer o mesmo”, respondeu Deus, “eu vou pendurar sacos na porta, apagar as luzes, virar o sofá, andar sem sapatos, rasgar minhas roupas, sentar em silêncio e chorar.”
Para muitos de nós, é isso que gostaríamos de fazer neste Tishá b’Av. Frente à intolerância, à violência, às fotos de crianças vítimas do preconceito, a vontade, muitas vezes, é de nos escondermos embaixo da coberta e esperarmos esta onda passar; aguardarmos até que o pêndulo da civilização volta ao seu lugar, até que o respeito, a civilidade e a empatia voltem a ser a norma da conduta humana.
Infelizmente, esta opção não está disponível. Martin Luther King Jr, o pastor protestante e ativista social dos Estados Unidos, disse que “nunca se pode afastar a escuridão com mais escuridão: somente a luz tem este poder; nunca se pode afastar o ódio com mais ódio. somente o amor pode fazer isso”. Por seu lado, Elie Wiesel, o sobrevivente do campo de Auschwitz que se tornou uma referência na consciência ética e moral do pós-Guerra, afirmou que “o oposto do amor não é o ódio, é a indiferença.” Não temos a prerrogativa de nos mantermos passivos neste momento - temos que agir contra a indiferença, trazendo luz e amor ao mundo para espantar a escuridão e o ódio. Amanhã à noite, ao marcarmos Tishá b’Av, sentaremos no chão para chorar mas ao término deste dia de luto e memória, temos que levantar. Para honrar nossa história e nossa memória de muitos outros Tishá b’Av do passado, quando fomos expulsos, oprimidos, discriminados e quase exterminados, é essencial que não permaneçamos indiferentes.
Temos que buscar reconstruir o diálogo com aqueles de quem discordamos — mesmo as divergências mais profundas, pelas quais acreditávamos que não haveria mais volta.
Ao abrir o jornal de manhã, precisamos fazê-lo com empatia; sem procurar os pontos fracos dos argumentos com que discordamos para poder vencê-los no debate, mas buscando a lógica que alimenta a perspectiva de quem está do outro lado do rio e uma forma de construir uma ponte.
Ao percebermos atos de violência à nossa volta, mesmo as violências verbais, como quando usam palavras desumanizadoras para se referir àqueles com quem discordam - vermes, ratos, baratas, câncer - é nossa obrigação levantar nossa voz e pedir que os termos do debate sejam respeitosos, ainda que as divergências sejam reais.
É tradicional jejuar em Tishá b’Av. No mundo judaico-liberal, este é uma tradição que perdeu força mas alguns de nós a praticaremos a partir de amanhã à noite. Eu quero convidá-los a considerar um tipo diferente de jejum nas 25 horas que começam no sábado à noite: eu peço que – por 25 horas – vocês deixem de lado suas próprias convicções e ceticismos e considerem como seria olhar o mundo através da perspectiva daqueles de quem você discorda. Sem maniqueísmos, sem dizer que este é ladrão, ou fascista, ou terrorista, ou ingênuo, ou totalitário, ou manipulador. Realmente tentar entender quais são os motivos que o fazem ficar acordado à noite; onde o calo dela aperta; quais são suas paixões e o que a motiva a sair da cama todo dia de manhã. Quem sabe, um jejum deste tipo não nos ajude a abrir os portões dos nossos corações?
O nigun com que começamos o serviço, “עוֹלָם חֶסֶד יִבָּנֶה”, significa em hebraico “um mundo de amor será construído”. A letra original, escrita pelo rabino Menachem Creditor, inclui quatro frases em inglês, que tiram a passividade da frase em hebraico: “Eu construirei este mundo a partir do amor; e você precisa construir este mundo a partir do amor; e se nós construirmos este mundo a partir do amor; então Deus construirá este mundo a partir do amor.”
Nas cerimônias de Tishá b’Av, que começam amanhã a partir das 17:00 aqui na CIP, vamos tomar um tempo para sentar no chão, chorar e lamentar. Quando elas terminarem no domingo à noite, é nossa obrigação construir este mundo a partir do amor. “לֹא עָלֶיךָ הַמְּלָאכָה לִגְמוֹר, וְלֹא אַתָּה בֶן חוֹרִין לִבָּטֵל מִמֶּנָּה”, “você não tem a obrigação de terminar a tarefa, mas tampouco está livre para desistir dela.” [2]
Shabat Shalom!






sexta-feira, 19 de julho de 2019

Escute a verdade, de quem quer que a diga


Maimônides, o médico, filósofo e comentarista judeu que viveu no mundo árabe no século XII (que incluía a península Ibérica), foi duramente criticado por suas obras em filosofia, na qual ele procurava estabelecer um diálogo entre a tradição judaica e a filosofia aristotélica. Acusado de heresia por fazer referência a obras e autores fora do universo intelectual judaico, a resposta de Maimônides permanece válida até os dias de hoje: “Shmá ha-emet, me-mi she-omrá”, “escute a verdade, de quem quer que a diga”  – ou seja, devemos considerar a validade de um argumento baseado nos seus próprios méritos, não na nossa afinidade com quem o disse.

Na parashá desta semana, o rei moabita Balak (que dá nome à parashá), temeroso pela chegada dos hebreus, contrata um feiticeiro, Bilam, para amaldiçoá-los.  Nada muito diferente do conflito estabelecido no primeiro encontro entre o faraó e Moshé, em que os mágicos egípcios foram chamados para confrontar os sinais do poder de Deus exibidos por Moshé (Ex. 7:8-13). O surpreendente, neste caso, é que Bilam - um feiticeiro pagão - chama Deus pelo Seu nome impronunciável (aquele que, quando encontramos na Torá ou no sidur, lemos como “haShem” ou como “Adonai”). Mais que isso, o feiticeiro parece realmente conseguir acessar o Divino, pois se estabelece um diálogo entre Bilam e Deus.

Os comentaristas clássicos ficaram muito incomodados com isso… Segundo Rashi (França, sec. XI), Deus só apareceu a Bilam para enganá-lo; segundo Ibn Ezra (Espanha, sec. XII), a aparição Divina foi por respeito ao povo de Israel. Os sábios do Talmud foram ainda mais críticos em seus comentários sobre Bilam, assegurando que ele não teve um lugar no mundo-vindouro (Bavli Sanhedrin 105a-b).

Quando chegou a hora de Bilam amaldiçoar os Filhos de Israel, Deus colocou as palavras na sua boca, que acabaram sendo bênçãos sobre os israelitas. Uma frase destas bençãos, “Ma tovu ohalêcha, Iaacov, mishkenotêcha, Israel”, “como são boas as tuas tendas, Iaacov, e as tuas moradas, Israel”, se tornou parte da reza que dizemos ao ver ou ao entrar em uma sinagoga e com a qual começamos os serviços religiosos na CIP.

Apesar do desconforto dos rabinos com Bilam, suas palavras foram percebidas como Divinamente inspiradas e incorporadas à nossa tradição. Em um mundo cada vez mais marcado pela dicotomia ideológica, no qual escutar a opinião daqueles com quem discordamos passou a ser um evento raríssimo e no qual nossas posturas frente aos fatos dependem de quem os relata, a parashá desta semana nos convida a considerar a perspectiva de Maimônides, “escute a verdade de quem quer que a diga”. Assim como aconteceu com Bilam, algumas vezes encontraremos a verdade na boca daqueles com quem geralmente debatemos e não nos servirá em nada rejeitar a verdade simplesmente porque não gostamos de quem a expressa.

Que nesse Shabat possamos viver longe dos conflitos, construindo consensos e procurando o positivo nas palavras de todos ao nosso redor.

Shabat Shalom!

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Dvar Torá: Procurando uma vaca vermelha para os moradores de rua de São Paulo (CIP)

Em 2004, um projeto de consultoria me levou para Johanesburgo, na África do Sul, onde eu trabalhei por 3 meses. Um dia, voltando do almoço, um morador de rua com um cartaz no pescoço se posicionou sobre a faixa de segurança quando o sinal estava fechado, esperando os carros se aproximarem. Eu fiz como sempre fazemos em São Paulo: me aproximei mas parei de avançar quando o carro estava a uns cinco metros daquele homem.

Meu ato o ofendeu intensamente. O sujeito se postou bem na frente do meu carro (respeitando os cinco metros que eu tinha deixado) e, acenando com as mãos, indicou que ele exigia que eu me aproximasse. Constrangindo e sem saber o que fazer, avancei o carro até chegar à linha da faixa de segurança. Com sua dignidade re-estabelecida, o morador de rua continuou com sua rotina, sem se importar comigo.

Esta cena me marcou profundamente. Através dela, pude reconhecer a forma desumanizadora com que nos relacionamentos com alguns segmentos da população, especialmente os mais vulneráveis: os moradores de rua, pessoas que sofrem de questões de saúde mental, aqueles que se ocupam dos empregos com menor remuneração e status social.

Esta semana, por acaso, piscou nas minhas mídias sociais um artigo entitulado "Making Eye Contact with Homeless People Is Important", ou "Estabelecer contato visual com moradores de rua é importante". Nele, a autora, Kayla Robbins, faz o seguinte comentário:

É difícil imaginar que não se envolver com uma pessoa nas ruas esteja causando algum dano real. Afinal, você passa muitas pessoas que não são sem-teto todos os dias com as quais você também não reconhece ou faz contato visual.
Certamente isso é exagerado, certo?
Bom, sim e não.
Você está certo de que há pouco ou nenhum mal em uma única pessoa ignorando uma pessoa sem-teto tentando interagir com ela. Pode ser rude, mas não vai fazer ou quebrar o dia de ninguém.
Mas a questão é que nunca é apenas uma pessoa.
Você não pode realmente se dar conta da escala do problema, a menos que você mesmo o experimente. A maioria das pessoas se comporta exatamente da mesma maneira, e o efeito é cumulativo.
Imagine um dia em que nenhum de seus colegas de trabalho olhasse para você, sua família te ignorasse quando você tentasse falar com eles e até mesmo estranhos na rua faziam de tudo para evitar você.
Como isso seria?
Agora imagine isso acontecendo todos os dias.
Depois de um tempo, os sem-teto que estão sujeitos a esse tratamento começam a se sentir como se fossem fantasmas observando o mundo, incapazes de participar plenamente dele. Se eles tentam iniciar conversas, suas palavras caem em ouvidos surdos. Eles são ignorados, desumanizados e invisíveis.
Imagine se a sensação daquela reunião em que você tentou participar e não conseguiu fosse o resumo da sua experiência cotidiana e diária. Sua existência sendo negada o tempo todo, sua voz calada; se as pessoas mudassem de lado da calçada para não passar perto de você, não respondessem quando você inicia a conversa. Eu não consigo nem começar a imaginar quão terrível é esta situação.
Também esta semana, um dos meus podcasts favoritos, o Foro de Teresina, destacou uma notícia da sua mantenedora, a revista Piauí, que indicava que 107.578 pessoas foram moradores de rua na cidade de São Paulo em algum momento durante 2018. Dos mais de 5.500 municípios do Brasil. só 290 tem população superior ao número de moradores de rua da cidade de São Paulo. Ou seja, se fosse um município, os moradores de rua estariam entre os 6% das maiores cidades do Brasil. E esta era a realidade do ano passado! Para quem, como eu, caminha pelas ruas da cidade, é inegável o aumento constante no número de moradores de rua: são famílias inteiras se escondendo do Sol, da chuva e do frio, tendo que lidar constantemente com pessoas que evitam estabelecer contato visual. Me dói e me envergonha confessar que eu, tampouco, olho nos olhos destes seres humanos, criados à imagem Divina. Da mesma forma que uma criança acredita que quando tapa os olhos o mundo ao seu redor desaparece, ao não olharmos para nos olhos dos moradores de rua, fingimos que eles não existem. Brincadeira de criança que, claro, não resolve nada – pelo contrário, desumaniza e aumenta o problema de milhares e milhares de paulistanos. 

No comecinho da parashá desta semana, somos instruídos sobre o ritual da pará adumá, a vaca vermelha cujas cinzas são usadas para um processo de purificação. A impureza ritual tratada na parashá é o contato com cadáveres, que exige um processo de purificação de sete dias que inclui o uso das cinzas da vaca vermelha. Nesta parashá também temos a morte de Miriam, que na leitura de algumas semanas atrás, sofreu de tsaraat e teve que ser separada da comunidade. Lemos estas passagens com desconforto, imaginando a alienação dos enfermos causada pelo seu total isolamento do resto da comunidade. A verdade, no entanto, é que Miriam volta à comunidade uma vez curada; a pessoa que teve contato com um morto pode voltar à comunidade depois de ter passado pelo seu processo de purificação. 

Como sociedade, que passos estamos tomando para re-integrar os moradores de rua da cidade de São Paulo ao nosso convívio? Que passos podemos tomar para re-estabelecer a sua humanidade, a sua dignidade, o respeito de cada um deles consigo próprio? Como comunidade judaica, temos a obrigação religiosa de nos preocupar permanentemente com os segmentos excluídos das nossas sociedades, por que um dia fomos nós os excluídos em Mitzrayim, a terra das águas e das perspectivas estreitas. 

O Rabino Marshal Meyer foi, provavelmente, o mais importante líder da comunidade judaica da america latina. Formado pelo Jewish Theological Seminary em Nova York em 1958 e se mudou para a Argentina no ano seguinte para se tornar o rabino assistente da CIRA, Congregación Israelita de la República Argentina. Em seus primeiros anos em Buenos Aires, fundou o primeiro Camp Ramá da América Latina e organizou o Seminário Rabínico Latinoamericano. Teve participação na luta pelos direitos humanos durante o regime militar e foi o único estrangeiro e o único judeu convidado a integrar a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas. Em meados dos anos 80, Meyer voltou aos Estados Unidos, onde se tornou o rabino da comunidade B’nai Jeshurun. No pico da crise da AIDS, sua comunidade recebia os moradores de rua uma vez por semana. De acordo com as orientações do rabino, eles eram recebidos em mesas com toalhas e flores às mesas, servidos em pratos de cerâmica e a comunidade se sentava com eles para acolhê-los e escutar suas histórias. Mais que comida, a sinagoga lhes oferecia de volta a humanidade que a vida na rua lhes havia tirado.

E aí? O que vamos fazer aqui, na São Paulo de 2019? Tenho conversado com várias pessoas sobre como, em comunidade, podemos dar respostas a estas questões. Se esta é uma conversa da qual você gostaria de participar, me dê um alô e vamos convcersar.