sexta-feira, 19 de julho de 2019

Escute a verdade, de quem quer que a diga


Maimônides, o médico, filósofo e comentarista judeu que viveu no mundo árabe no século XII (que incluía a península Ibérica), foi duramente criticado por suas obras em filosofia, na qual ele procurava estabelecer um diálogo entre a tradição judaica e a filosofia aristotélica. Acusado de heresia por fazer referência a obras e autores fora do universo intelectual judaico, a resposta de Maimônides permanece válida até os dias de hoje: “Shmá ha-emet, me-mi she-omrá”, “escute a verdade, de quem quer que a diga”  – ou seja, devemos considerar a validade de um argumento baseado nos seus próprios méritos, não na nossa afinidade com quem o disse.

Na parashá desta semana, o rei moabita Balak (que dá nome à parashá), temeroso pela chegada dos hebreus, contrata um feiticeiro, Bilam, para amaldiçoá-los.  Nada muito diferente do conflito estabelecido no primeiro encontro entre o faraó e Moshé, em que os mágicos egípcios foram chamados para confrontar os sinais do poder de Deus exibidos por Moshé (Ex. 7:8-13). O surpreendente, neste caso, é que Bilam - um feiticeiro pagão - chama Deus pelo Seu nome impronunciável (aquele que, quando encontramos na Torá ou no sidur, lemos como “haShem” ou como “Adonai”). Mais que isso, o feiticeiro parece realmente conseguir acessar o Divino, pois se estabelece um diálogo entre Bilam e Deus.

Os comentaristas clássicos ficaram muito incomodados com isso… Segundo Rashi (França, sec. XI), Deus só apareceu a Bilam para enganá-lo; segundo Ibn Ezra (Espanha, sec. XII), a aparição Divina foi por respeito ao povo de Israel. Os sábios do Talmud foram ainda mais críticos em seus comentários sobre Bilam, assegurando que ele não teve um lugar no mundo-vindouro (Bavli Sanhedrin 105a-b).

Quando chegou a hora de Bilam amaldiçoar os Filhos de Israel, Deus colocou as palavras na sua boca, que acabaram sendo bênçãos sobre os israelitas. Uma frase destas bençãos, “Ma tovu ohalêcha, Iaacov, mishkenotêcha, Israel”, “como são boas as tuas tendas, Iaacov, e as tuas moradas, Israel”, se tornou parte da reza que dizemos ao ver ou ao entrar em uma sinagoga e com a qual começamos os serviços religiosos na CIP.

Apesar do desconforto dos rabinos com Bilam, suas palavras foram percebidas como Divinamente inspiradas e incorporadas à nossa tradição. Em um mundo cada vez mais marcado pela dicotomia ideológica, no qual escutar a opinião daqueles com quem discordamos passou a ser um evento raríssimo e no qual nossas posturas frente aos fatos dependem de quem os relata, a parashá desta semana nos convida a considerar a perspectiva de Maimônides, “escute a verdade de quem quer que a diga”. Assim como aconteceu com Bilam, algumas vezes encontraremos a verdade na boca daqueles com quem geralmente debatemos e não nos servirá em nada rejeitar a verdade simplesmente porque não gostamos de quem a expressa.

Que nesse Shabat possamos viver longe dos conflitos, construindo consensos e procurando o positivo nas palavras de todos ao nosso redor.

Shabat Shalom!

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Dvar Torá: Procurando uma vaca vermelha para os moradores de rua de São Paulo (CIP)

Em 2004, um projeto de consultoria me levou para Johanesburgo, na África do Sul, onde eu trabalhei por 3 meses. Um dia, voltando do almoço, um morador de rua com um cartaz no pescoço se posicionou sobre a faixa de segurança quando o sinal estava fechado, esperando os carros se aproximarem. Eu fiz como sempre fazemos em São Paulo: me aproximei mas parei de avançar quando o carro estava a uns cinco metros daquele homem.

Meu ato o ofendeu intensamente. O sujeito se postou bem na frente do meu carro (respeitando os cinco metros que eu tinha deixado) e, acenando com as mãos, indicou que ele exigia que eu me aproximasse. Constrangindo e sem saber o que fazer, avancei o carro até chegar à linha da faixa de segurança. Com sua dignidade re-estabelecida, o morador de rua continuou com sua rotina, sem se importar comigo.

Esta cena me marcou profundamente. Através dela, pude reconhecer a forma desumanizadora com que nos relacionamentos com alguns segmentos da população, especialmente os mais vulneráveis: os moradores de rua, pessoas que sofrem de questões de saúde mental, aqueles que se ocupam dos empregos com menor remuneração e status social.

Esta semana, por acaso, piscou nas minhas mídias sociais um artigo entitulado "Making Eye Contact with Homeless People Is Important", ou "Estabelecer contato visual com moradores de rua é importante". Nele, a autora, Kayla Robbins, faz o seguinte comentário:

É difícil imaginar que não se envolver com uma pessoa nas ruas esteja causando algum dano real. Afinal, você passa muitas pessoas que não são sem-teto todos os dias com as quais você também não reconhece ou faz contato visual.
Certamente isso é exagerado, certo?
Bom, sim e não.
Você está certo de que há pouco ou nenhum mal em uma única pessoa ignorando uma pessoa sem-teto tentando interagir com ela. Pode ser rude, mas não vai fazer ou quebrar o dia de ninguém.
Mas a questão é que nunca é apenas uma pessoa.
Você não pode realmente se dar conta da escala do problema, a menos que você mesmo o experimente. A maioria das pessoas se comporta exatamente da mesma maneira, e o efeito é cumulativo.
Imagine um dia em que nenhum de seus colegas de trabalho olhasse para você, sua família te ignorasse quando você tentasse falar com eles e até mesmo estranhos na rua faziam de tudo para evitar você.
Como isso seria?
Agora imagine isso acontecendo todos os dias.
Depois de um tempo, os sem-teto que estão sujeitos a esse tratamento começam a se sentir como se fossem fantasmas observando o mundo, incapazes de participar plenamente dele. Se eles tentam iniciar conversas, suas palavras caem em ouvidos surdos. Eles são ignorados, desumanizados e invisíveis.
Imagine se a sensação daquela reunião em que você tentou participar e não conseguiu fosse o resumo da sua experiência cotidiana e diária. Sua existência sendo negada o tempo todo, sua voz calada; se as pessoas mudassem de lado da calçada para não passar perto de você, não respondessem quando você inicia a conversa. Eu não consigo nem começar a imaginar quão terrível é esta situação.
Também esta semana, um dos meus podcasts favoritos, o Foro de Teresina, destacou uma notícia da sua mantenedora, a revista Piauí, que indicava que 107.578 pessoas foram moradores de rua na cidade de São Paulo em algum momento durante 2018. Dos mais de 5.500 municípios do Brasil. só 290 tem população superior ao número de moradores de rua da cidade de São Paulo. Ou seja, se fosse um município, os moradores de rua estariam entre os 6% das maiores cidades do Brasil. E esta era a realidade do ano passado! Para quem, como eu, caminha pelas ruas da cidade, é inegável o aumento constante no número de moradores de rua: são famílias inteiras se escondendo do Sol, da chuva e do frio, tendo que lidar constantemente com pessoas que evitam estabelecer contato visual. Me dói e me envergonha confessar que eu, tampouco, olho nos olhos destes seres humanos, criados à imagem Divina. Da mesma forma que uma criança acredita que quando tapa os olhos o mundo ao seu redor desaparece, ao não olharmos para nos olhos dos moradores de rua, fingimos que eles não existem. Brincadeira de criança que, claro, não resolve nada – pelo contrário, desumaniza e aumenta o problema de milhares e milhares de paulistanos. 

No comecinho da parashá desta semana, somos instruídos sobre o ritual da pará adumá, a vaca vermelha cujas cinzas são usadas para um processo de purificação. A impureza ritual tratada na parashá é o contato com cadáveres, que exige um processo de purificação de sete dias que inclui o uso das cinzas da vaca vermelha. Nesta parashá também temos a morte de Miriam, que na leitura de algumas semanas atrás, sofreu de tsaraat e teve que ser separada da comunidade. Lemos estas passagens com desconforto, imaginando a alienação dos enfermos causada pelo seu total isolamento do resto da comunidade. A verdade, no entanto, é que Miriam volta à comunidade uma vez curada; a pessoa que teve contato com um morto pode voltar à comunidade depois de ter passado pelo seu processo de purificação. 

Como sociedade, que passos estamos tomando para re-integrar os moradores de rua da cidade de São Paulo ao nosso convívio? Que passos podemos tomar para re-estabelecer a sua humanidade, a sua dignidade, o respeito de cada um deles consigo próprio? Como comunidade judaica, temos a obrigação religiosa de nos preocupar permanentemente com os segmentos excluídos das nossas sociedades, por que um dia fomos nós os excluídos em Mitzrayim, a terra das águas e das perspectivas estreitas. 

O Rabino Marshal Meyer foi, provavelmente, o mais importante líder da comunidade judaica da america latina. Formado pelo Jewish Theological Seminary em Nova York em 1958 e se mudou para a Argentina no ano seguinte para se tornar o rabino assistente da CIRA, Congregación Israelita de la República Argentina. Em seus primeiros anos em Buenos Aires, fundou o primeiro Camp Ramá da América Latina e organizou o Seminário Rabínico Latinoamericano. Teve participação na luta pelos direitos humanos durante o regime militar e foi o único estrangeiro e o único judeu convidado a integrar a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas. Em meados dos anos 80, Meyer voltou aos Estados Unidos, onde se tornou o rabino da comunidade B’nai Jeshurun. No pico da crise da AIDS, sua comunidade recebia os moradores de rua uma vez por semana. De acordo com as orientações do rabino, eles eram recebidos em mesas com toalhas e flores às mesas, servidos em pratos de cerâmica e a comunidade se sentava com eles para acolhê-los e escutar suas histórias. Mais que comida, a sinagoga lhes oferecia de volta a humanidade que a vida na rua lhes havia tirado.

E aí? O que vamos fazer aqui, na São Paulo de 2019? Tenho conversado com várias pessoas sobre como, em comunidade, podemos dar respostas a estas questões. Se esta é uma conversa da qual você gostaria de participar, me dê um alô e vamos convcersar.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Dvar Torá: Abrace a mudança! (CIP)

Sabe aquele final de viagem, em que você não vê a hora de voltar pra casa e  dormir na sua cama? Pois quando eu era pequeno, o que eu mais gostava no final de longas viagens era ver as novidades, o que tinha mudado. Eu adorava ficar prestando atenção aos novos outdoors no caminho do aeroporto e, chegando em casa, pegar as edições acumuladas de Veja e olhar as notícias às quais não tínhamos prestado atenção.

Pequenas mudanças, com certeza, mas que sempre me deixavam animado, ansioso por estar de volta. Quando será que a gente perde esta excitação infantil com a novidade e começa a temer tudo o que seja novo?

Na parashá desta semana, Moshé é instruído por Deus a enviar 12 pessoas, um líder de uma das 12 tribos, para ver a situação da Terra de Israel, na qual o povo, tendo cruzado o Deserto, esperava entrar dali a pouco. Moshé instrui estes enviados, dizendo: “subam pelo Neguev e subam pela montanha e vejam a terra, como ela é: Como é o povo que vive nela, se são fortes ou fracos, se são muitos ou poucos? Como é a terra na qual eles vivem, ela é boa ou ruim, como são suas cidades, são como acampamentos ou são fortificadas? Como é a terra, ela é farta ou escassa, há nela árvores ou não? Usem um pouco de força e tragam alguns frutos da terra.” [1]

E, assim, estas 12 pessoas foram e passaram 40 dias em visita de reconhecimento à terra de Israel. Após este período, eles voltaram e deram um relatório de suas impressões, assim como Moshé tinha pedido. Falaram de uma terra linda, de onde flui o leite e mel, onde as frutas eram gigantes e eles trouxeram cachos gigantes de uva para provar. Falaram de cidades fortificadas, de gigantes que moravam naquela terra e aos olhos de quem os hebreus se pareciam com pequenos grilos. Das doze pessoas que tinham sido enviadas, dez diziam que os hebreus não tinham nenhuma chance contra os poderosos habitantes da terra de Israel; só dois dos enviados, Iehoshua ben Nun e Caleb ben Iefunê, discordaram da conclusão, dizendo que os hebreus - com o apoio de Deus - tinham condições de conquistar a terra. O povo, em desespero, começa a se perguntar porque Deus não os tinha deixado morrer no Egito ou no deserto, e a planejar como eles podiam voltar para o Egito. 

Deus, muito irritado, conta a Moshé seus planos de dar cabo ao povo e começar tudo de novo, um novo povo a partir só de Moshé. Moshé argumenta contra a ideia, e Deus lhe diz: “סָלַחְתִּי כִּדְבָרֶךָ”, “eu os perdoo, conforme você me pediu” [2], mas também declara que nenhum deles poderá entrar na terra de Israel, eles passarão 40 anos vagando pelo deserto (um ano para cada dia da excursão de reconhecimento dos líderes em Israel), até que toda a geração que tinha sido libertada do Egito falecesse no deserto. No Talmud[3], este episódio é mencionado como tendo acontecido em Tishá b’Av, a origem das séries de tragédias comunais judaicas associadas a esta data.

Ao longo dos séculos, muitos comentaristas se perguntaram se a punição era apropriada ao pecado. Afinal de contas, Moshé tinha sido instruído por Deus a enviar a excursão de reconhecimento e eles tinham reportado de acordo com a sua impressão. Parece mais um caso de culpar a imprensa por notícias ruins… 

O Lubavitcher Rebbe, o rabino Menachem Mendel Schneerson, deu uma explicação bastante interessante para a motivação do relato negativo:

No deserto, cada uma das necessidades dos israelitas era satisfeita por um presente direto de D'us. Eles não trabalhavam para ter comida. Seu pão era o maná que caía dos céus; a água deles vinha do poço de Miriam; suas roupas não precisavam de conserto. A posse da terra de Israel significava um novo tipo de responsabilidade. O maná cessaria. Pão viria apenas através da labuta. Os milagres providenciais seriam substituídos pelo trabalho; e com o trabalho viria o perigo de uma nova preocupação. (…) Seu temor era que a preocupação de trabalhar a terra e ganhar a vida pudesse, no final das contas, deixar os israelitas com cada vez menos tempo e energia para o serviço de D'us. Eles disseram: “É uma terra que consome seus habitantes”, significando que a terra e seu trabalho, e a preocupação com o mundo materialista, “engoliriam” e consumiriam todas as suas energias. Sua opinião era de que a espiritualidade floresce melhor na reclusão e na retirada, na paz protegida do deserto, onde até mesmo a comida era “dos céus”. [4]

Os dez líderes que deram o relato negativo estavam acostumados com a vida no deserto, podia não ser ideal, mas era conhecida. Em sua leitura do comentário do Lubavitcher Rebbe, o rabino Jonathan Sacks, diz que os enviados “não estavam com medo do fracasso; eles estavam com medo do sucesso”[5]. Além disso, eles estavam receosos da transição de uma vida na qual suas necessidades físicas eram supridas por Deus para uma na qual eles tivessem que trabalhar a terra para ter seu sustento e na qual eles não poderiam mais dedicar toda sua energia ao trabalho espiritual. A este respeito, o Lubavitcher Rebbe diz: “os espiões estavam errados. O propósito de uma vida vivida na Torá não é a elevação da alma: é a santificação do mundo.”

Há nesses poucos parágrafos de comentário, material para conversarmos por horas, mas eu tenho mais alguns poucos minutos – e eu quero gastá-los pensando na santificação do nosso cotidiano, das nossas vidas dentro e fora dos limites deste prédio.

Quando a animação pelo novo que toda criança tem vira o medo da ruptura e da quebra das rotinas?
Vivemos em um mundo de transições aceleradas. Há poucas décadas, a homoafetividade era um tabu sobre o qual ninguém falava; o assédio a mulheres nos ambientes de trabalho eram percebidos como preço que mulheres precisavam pagar para terem uma vida profissional; mesmo meu pai ficava muito incomodado porque eu gostava de brincar com bonecas. Quando minha filha nasceu, ela faz 11 anos no mês que vem, não existia a possibilidade de que ela pudesse receber uma aliá na Torá nesta sinagoga, nem ao menos sentar ao meu lado. 

Hoje, somos orgulhosos dos passos que demos na direção de um judaísmo mais inclusivo e igualitário, que reconhece nossas diferenças mas esperqa que possamos tratar a todos com a mesma dignidade e respeito. Na semana passada, o prédio da prefeitura de São Paulo foi iluminado com as cores do arco-íris em homenagem à Parada do Orgulho Gay, que aconteceu neste último domingo. Durante o Ticún da Virada, tivemos uma judia trans apresentando uma sessão sobre questões de gênero no judaísmo, juntamente com um dos líderes do grupo LGBTQ no facebook. 

Para muitos de nós, estas mudanças são bem vindas e ansiadas por muito tempo. Para outros, elas são uma ruptura com práticas sociais conhecidas e que, ainda que elas não fossem perfeitas, havia um conforto na estabilidade. Jason Clarke, em uma palestra TED sobre o medo do novo[6], diz que o status quo, a forma como as coisas eram feitas antes, é conhecido, estruturado, provado, certo e reconfortante. O novo, por outro lado, é desconhecido, desestruturado, ainda precisa ser provado, é incerto e esquisito.
Na parashá Lech Lechá, quando Deus pede que Avraham deixe tudo para trás e comece uma nova vida no lugar que Deus indicaria, eu tenho certeza que Avraham também ficou assustado e amedrontado. Lech Lechá: vá para você mesmo. Na nossa parashá, Shlach Lechá: envie para você mesmo, o medo toma conta da reação do povo.

A escritora Karen Thompson Walker, também em uma palestra TED [7], comparou o medo com a contação de histórias. Segundo ela, criamos narrativas nas nossas mentes de que há um monstro embaixo da cama, de que há um risco do piloto errar algo durante o voo e o avião cair, de que as mudanças no Judaísmo como o conhecíamos levarão à total destruição da nossa tradição, de que não há estabilidade possível nas novas formas como a sociedade está se estruturando. Ela cita o escritor Vladimir Nebukov, que argumentava que há duas modalidades muito distintas para lermos uma história: a artística e a científica. Na modalidade artística, adoramos os cenários mais vívidos, gráficos, até sensacionalistas. Gostamos de filmes em que o inconcebível acontece pelas lindas cenas de explosão que propicia. Na modalidade científica, por outro lado, nos perguntamos qual a real probabilidade de que estes cenários aconteçam de fato: é o chato que reclama de um filme de ficção científica, dizendo que no espaço não há propagação do som. Para Walker, não precisamos negar o medo, mas precisamos lê-lo com o temperamento científico e nos perguntarmos se os cenários que está arrepiando nossos fios de cabelo é realmente o resultado esperado das condições que observamos.

Os dez enviados que voltaram com a percepção pessimista leram a realidade que encontraram apenas de forma artística. Um cenário em que a terra tinha gigantes e  que devorava os que nela viviam tomou conta de seu imaginário. Apenas Iehoshua e Caleb usaram leram suas impressões de forma científica, acreditando que o Deus que os havia tirado do Egito com mão forte e braço estendido ajudaria também na conquista da terra.

O mundo está mudando e rápido. Para alguns, é excitante e para outros é desesperador. O rabino Jonathan Sacks, citando o Salmo 23, disse: “ ‘Apesar de andar no vale da sombra da morte, eu não temo pois Você está comigo’ – nós podemos enfrentar qualquer futuro sem medo desde que saibamos que não o enfrentaremos sozinhos.” [8]

Que as palavras do rabino Sacks nos inspirem a continuarmos sonhando e mudando, reconhecendo os desafios representados por estas dinâmicas e nos apoiando mutuamente para superá-los.

Shabat Shalom!


 [1] Num 13:17b-20a
 [2] Num 14:20
 [3] Talmud Bavli Sotá 35a
 [4] Schneerson, Menachem M., Torah studies. Brooklyn, N.Y: Kehot Publication Society, 1996. Minha própria tradução.
 [5] Sacks, Jonathan. Covenant & conversation, a weekly reading of the Jewish Bible : Numbers, the wilderness years. New Milford, CT: Maggid Books & The Orthodox Union, 2017. p. 149. Minha própria tradução.
[6] https://www.youtube.com/watch?v=vPhM8lxibSU
[7] https://www.ted.com/talks/karen_thompson_walker_what_fear_can_teach_us?language=pt
[8] https://www.ted.com/talks/rabbi_lord_jonathan_sacks_how_we_can_face_the_future_without_fear_together

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Dvar Torá: Prisões, pra quê? (Lar das Crianças)

Uma das primeiras coisas que meus filhos desenvolveram, ainda muito crianças, foi o senso de justiça. Um senso de justiça bem peculiar, é bem verdade. Se o pedaço do bolo contivesse uma casquinha de chocolate a mais para um deles, aquilo seria uma tremenda injustiça na opinião de quem recebeu a menos e uma coisa normal da vida para quem recebeu a casquinha a mais…
Quando será que a gente perde a necessidade de ver a justiça praticada nas nossas rotinas e acaba achando que é tudo coisa normal da vida?
A parashá desta semana apresenta um cenário do que seria um mundo governado pela justiça Divina: se o povo cumprir todas as regras estabelecidas na Torá, Deus os recompensará com chuva na hora certa, a terra produzirá ótimos frutos, estará livre de animais selvagens e de guerras. No entanto, se o povo quebrar o pacto com Deus e ignorar as regras da Torá, sai de baixo! As pessoas ficarão doentes, não apenas haverão guerras, mas os inimigos de Israel as vencerão, a terra não irá produzir, os animais selvagens a invadirão, haverá miséria; as cidades serão destruídas e o povo será disperso em terras estrangeiras. Por estas punições todas, esta parashá também é chamada de “parashat haTochechá”, a parashá da repreensão.
Em um filme de ficção científica, este cenário seria chamado distopia: “lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação; antiutopia”. E realmente, só de escutar a lista de castigos impostos por Deus já gera certa angústia e opressão. Mas eu preciso confessar que há também certo conforto nesta teologia bíblica em que tudo que nos acontece de ruim é resultado de alguma infração que eu cometi. Em outras palavras, é fácil evitar as doenças, as pestes, as secas: basta seguirmos as regras.
Ainda hoje há quem acredite nesta perspectiva: quando o furacão Katrina destruiu a cidade de Nova Orleans, não faltou gente que associasse o desastre ao Mardi Gras, o carnaval de rua que acontece na cidade. Há quem atribua a Shoá, que dizimou 6 milhões dos nossos irmãos, ao desejo de estabelecer uma nação judaica na Terra de Israel antes da chegada do Messias ou às correntes judaicas liberais. A cada grande chuva que cai no Rio de Janeiro, há quem associe a destruição resultante, não à falta de obras de urbanização e infra-estrutura, mas aos pecados cometidos pela população que lá vive.
A minha experiência pessoal, no entanto, tem sido bastante diferente. Tenho visto muitas pessoas de comportamento pouco ético ter muito sucesso, não apenas no aspecto financeiro. Tenho visto países que utilizam mão de obra estrangeira semi-escrava em suas obras públicas serem reconhecidos e premiados internacionalmente, recebendo investimentos estrangeiros e campus de universidades de primeira linha, sediando eventos internacionais importantes. Ao mesmo tempo, vemos muita gente honesta, generosa, trabalhadora morrer cedo depois de vidas cheias de dificuldades. Vemos países que tratam sua população com respeito e, mesmo assim, batalham para poder romper o ciclo da miséria.
No mundo em que a gente vive, seguir as regras não é garantia de sossego e quebrá-las não é garantia de punição — pelo menos, não nesta vida.
O desejo de ter um pouco de lógica e ordem em uma realidade que parece tão aleatória e injusta talvez ajude a explicar porque tanta gente defende que adotemos, sempre que possível, uma abordagem semelhante à da parashá: quem segue as leis têm tranquilidade, prosperidade e abundância; quem não as segue viverá uma realidade distópica.
No começo da semana, acordamos com notícias terríveis vindas do Amazonas. Em alguns poucos dias, 55 detentos foram mortos em presídios no estado. Brigas internas entre membros de uma mesma facção, a Família do Norte, tem sido apontadas como a razão para a matança. Em 2017, uma rebelião no mesmo presídio de Manaus onde as mortes começaram desta vez, já tinham deixado 56 mortos.
Presidiários, que foram mortos sob a tutela do Estado. Seres humanos, criados à imagem Divina como você, como eu. Pessoas, que na tradição judaica têm direito a serem tratados com uma dignidade inalienável - exatamente porque fomos todos criados à imagem divina. Na tradição judaica, até aquela pessoa que foi condenada à morte tem que ser enterrada com a maior rapidez possível e com todo respeito. Ser uma pessoa que cometeu atos terríveis não desqualifica ninguém como ser humano, pelo menos não na tradição judaica.
Na sociedade, em resposta a estas chacinas no Amazonas, ouvimos - em grande parte - o silêncio. Apesar da manchete em primeira página na Folha e no Estadão de 3a feira, as pessoas não foram às ruas para protestar, o assunto não dominou as postagens das minhas redes sociais, nem as conversas sociais que eu tive nesta semana. Falou-se muito mais da desclassificação do São Paulo da Libertadores do que do assassinato de 55 seres humanos sob responsabilidade do Estado.
Talvez o silêncio seja porque acreditemos que quem está na cadeia não tem direito a muito coisa. A verdade é que - para além de não ser hotel cinco estrelas, como disse um político recentemente, os presídios brasileiros são verdadeiros depósitos humanos, onde a dignidade dos detentos é negada a todo momento e onde a única chance de sobrevivência é se filiando a uma das facções criminais. O Brasil é dono da 3a maior população carcerária do mundo, só depois dos Estados Unidos e da China, e dobrou o número de presos entre 2005 e 2016 sem que a capacidade dos presídios tivesse aumentado na mesma proporção [1]. No estado do Amazonas [2], palcos dos massacres mais recentes, há 3.508 vagas nos presídios e 8.306 presos; uma superlotação de 136,8%. Muito longe de ser hotel cinco estrelas. Dos presos, apenas 7,5% ou 729 pessoas trabalham - fato que é indicado como obstáculo para a reinserção social dos detentes após cumprirem suas penas. Se o detento não tem chance de ter uma vida produtiva e honesta, após sair da prisão, como podemos esperar que ele se mantenha afastado das facções criminosas durante seu tempo na prisão?
Em 2016, 45,2% dos presos do Amazonas ainda não tinham sido julgados. Ou seja: as pessoas entram nas prisões ainda só “acusadas”, suspeitas, mas são rapidamente transformadas em criminosos pela associação com as facções criminosas, o Comando Vermelho, o PCC e a Família do Norte. É a única chance que eles têm de continuarem vivos nas prisões mas também é, muitas vezes, a razão de sua morte, como evidenciam as rebeliões do Amazonas.
O conceito judaico de tshuvá estabelece que todo mundo merece a chance de voltar ao seu melhor “eu”, a chance de reconhecer seus erros, procurar repará-los e começar de novo. No Talmud, há um criminoso que se torna um grande sábio [3]: Reish Lakish, que afirmou “grande é a possibilidade de tshuvá, pois pecados cometidos intencionalmente são convertidos em boas ações.” [4] Qual possibilidade de tshuvá é oferecida nas prisões brasileiras?
Urge que, como sociedade, nos perguntemos qual a função que as prisões brasileiras desempenham e qual modelo as ajudará a melhor cumprir esta função. Eu já ouvi três respostas: punir o criminoso, servir de exemplo para que outros não se tornem criminosos e oferecer a possibilidade de correção para aquele que cometeu um crime tenha a chance de, recuperado, ser re-inserido na sociedade.
A teologia deuteronômica da nossa parashá aponta para a primeira: no texto, várias vezes Deus diz que punirá com rigor igual a 7 vezes o ato cometido. A tradição rabínica, por outro lado, aponta claramente para a terceira opção: a possibilidade de tshuvá, de se recuperar, de se redimir, é central entre os valores judaicos que dizemos praticar. Os rabinos reconheceram que em um mundo em que a regra fosse “olho por olho, dente por dente”, todos ficaríamos cegos e se esforçaram para reformar a lei bíblica.
A dignidade de todo ser humano criado à imagem Divina e a possibilidade permanente de fazermos tshuvá e retornarmos à melhor versão de nós mesmos. Neste shabat de leituras difíceis da Torá, quem sabe estes valores centrais da vida judaica nos inspirem a buscarmos soluções para a questão prisional do Brasil baseadas em nosso desejo genuíno por segurança e  por ordem, mas também na empatia, na generosidade, na confiança do valor de toda pessoa.


[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/brasil-dobra-numero-de-presos-em-11-anos-diz-levantamento-de-720-mil-detentos-40-nao-foram-julgados.ghtml
[2] As estatísticas sobre o sistema prisional do Estado do Amazonas foram obtidas em http://especiais.g1.globo.com/monitor-da-violencia/2019/raio-x-do-sistema-prisional/
[3] https://en.wikipedia.org/wiki/Shimon_ben_Lakish

[4] Talmud Bavli Yoma 86b

Nossas ações e a resposta da natureza

Em seus parágrafos iniciais, a parashá desta semana (BeChucotai) estabelece os parâmetros do pacto bíblico de Deus com o povo: se eles se comportarem e seguirem as regras estabelecidas na Torá, Deus os abençoará, proverá fartura na produção agrícola e vitórias militares contra seus inimigos. Se, por outro lado, o povo trair o pacto e deixar de seguir as regras da Torá, Deus os amaldiçoará, eles serão expulsos da Terra de Israel, sofrerão com doenças, a terra não produzirá e o clima lhes será hostil.
Esta abordagem, também conhecida como “Teologia Deuteronômica”, parece não refletir nossa experiências cotidianas: não é raro que pessoas de comportamento pouco ético tenham muito sucesso ao mesmo tempo em que pessoas muito honestas e generosas vivam com extrema dificuldade. O mesmo vale para sociedades e países: a riqueza e o estado material de um grupo não são, necessariamente, reflexo de seu comportamento moral.
O mestre chassídico Uziel Meizlish (1744-1785) oferece uma abordagem na qual podemos enxergar o impacto das nossas ações na forma descrita nesta parashá. Ao comentar o verso “Eu me lembrarei do meu pacto com Iaacov, também do meu pacto com Itzchac e até do meu pacto com Avraham, e Eu me lembrarei da terra” (Lev. 26:42), o rabino afirma:
“Nós sabemos que uma ofensa contra uma pessoa só é perdoada quando você apaziguar aquela pessoa. Uma transgressão contra uma pessoa envolve, na verdade, dois pecados: um contra Deus, que te instruiu a não oprimir outra pessoa, e o outro contra a pessoa que você prejudicou. (...) Este é o significado de ‘e Eu me lembrarei da terra.’ Sua transgressão contra Mim, por não terem observado o ano sabático, será perdoada quando seus corações estiverem arrependidos. Eu me lembrarei dos méritos dos seus antepassados. Mesmo assim ‘Eu me lembrarei da terra.’ Pelos seus pecados contra a terra por não terem observado o sabático, eles terão que pedir desculpas à terra.” [1]
Temos assistido nos últimos anos a uma radicalização dos fenômenos climáticos. Tivemos que mudar a denominação daquilo que antes chamávamos de “aquecimento global”, pois além do aumento da temperatura  e da seca em algumas partes do planeta, temos visto também o frio extremo, o aumento da frequência e intensidade ciclones, furacões, tornados, tempestades e incêndios florestais. O planeta Terra parece estar gritando que acredita, sim, na teologia Deuteronômica e, porque a humanidade se comportou sem atenção aos seus limites, seremos todos punidos com a potência indicada na Torá.
A leitura do rabino Meizlish nos permite identificar os passos necessários para mudar nossa relação com o meio ambiente e, quem sabe, reverter este curso das coisas: na relação com Deus, temos que nos arrepender das nossas ações, incluindo abandonar as práticas de consumo destrutivo e de descaso com a natureza. É no pedir desculpas à terra, no entanto, que temos o maior desafio: precisamos identificar quais ações de reparação são necessárias para que a terra pare de nos punir.
Que neste shabat, possamos apreciar maravilhados o mundo criado por Deus e nos esforçar para sermos parceiros em sua conservação.

[1] Arthur Green, Ebn Leader, Ariel Evan Mayse, Or N. Rose [2013]. Speaking Torah: Spiritual Teachings from around the Maggid’s Table. Volume 1: Genesis, Exodus, Leviticus. Jewish Light Publishing: Vermont. p. 314.

domingo, 5 de maio de 2019

Uma oração para ser dita antes da leitura de parashat Acharei Mot

Serve também para antes de parashat Kedoshim, que leremos esta semana...


(Original em inglês obtido em 03/05/2019 de https://opensiddur.org/prayers/ solilunar/shabbat/morning-torah-reading/prayer-to-be-recited-before-the-reading-of-aharei-mot-by-steven-greenberg/. Traduzido pelo rabino Rogério Cukierman)


Oração para antes da leitura de Acharei Mot
Rabino Steven Greenberg

Mestre do Universo, conhecedor de todos os segredos,
perante a Ti nos postamos, confusos e destemidos,
em parashat Aḥarei Mot, fala-se em “abominação”
e um em cada dez mulheres e homens
ouvem as palavras "V'et Zakhar" e choram
nos bancos mais distantes,
pária e quebradas.

Quando lemos estas palavras agora, Deus lembre-se verdadeiramente
das miríades de almas que, desde a juventude,
encontraram em seus corações uma conexão feroz,
um amor poderoso para com os membros do próprio sexo.

Lembre-se, ó Senhor, do seu medo paralisante,
do desejo aterrorizante, do abraço envergonhado.
Acusando a si mesmos com toda a força da lei
de perversões que só poderiam ser remediadas pela morte.

Lembre-se dos milhares consumidos pela vergonha,
expulsos em indignação ou sofrimento invisível.
Ninguém ousou imaginar que, ao invés de amaldiçoados,
eles fossem abençoados pelo Um, que varia Suas criaturas.

Mestre do universo, por quê?
As lágrimas dos oprimidos chegaram ao Teu coração?
É possível que Torá exija que expulsemos
amadas filhas, amados filhos?

Se eles não têm poder e não há reparação,
Então, Tu és o conforto deles, sua força e fortaleza.
Abençoa-nos com paz e aos nossos sábios com ternura.
Concede-nos força do alto para mantê-los no amor.

Seja generoso com o dom da esperança de cima,
para a vida e integridade, sua salvação está próxima.
רִבּוֹנוֹ שֶׁל עוֹלָם, חֲכַם הָרָזִים
לְפָנֶיךָ עוֹמְדִים נְבוּכִים, אַךְ נוֹעָזִים
כִּי בְּפָּרָשַׁת אַחֲרֵי מוֹת עַל תּוֹעֲבוֹת קוֹרְאִים
וְאֶחָד מִכָּל מִנְיַן, נָשִׁים וּגְבָרִים,
שׁוֹמְעִים אֶת הַפָּסוּק ”וְאֶת זָכָר“ וּבוֹכִים
בְּפַאֲתֵי בָּתֵי כְּנֶסֶת
מְנֻדִּים וּשְׁבוּרִים.

זְכֹר נָא ה׳ בְּקְרִיאָתֵנוּ עַתָּה
הַנְּפָשׁוֹת הָרַבּוֹת עוֹד מִיָּמִים יְמִימָה
שְׁגִּלּוּ בְּלִבָּם זִיקָה עַזָּה
לִבְנֵי מִינָם, אַהֲבָה אֵיתָנָה.

זְכֹר נָא ה׳ אֶת פַּחְדָּם הַמְּשַׁתֵּק
אֶת חֶרְפַּת הַחִבּוּק וְחֶרְדַּת הַמִּשְׁתּוֹקֵק.
שָׁפְטוּ אֶת עַצְמָם בְּכָל תֹּקֶף הַדִּין
כִּמְחֲיָּבֵי מִיתָה עַל עִווּת הַמִּין.

זְכֹר רְבָבוֹת בְּבוּשָׁה הִתְאַכְּלוּ
הוּקְעוּ כְּתוֹעֵבוֹת אוֹ בְּסֵתֶר סָבְלוּ.
לֹא הֶעֱלוּ בְּדַעְתָּם בִּמְקוֹם הַקְּלָלוֹת
לְבָרֵךְ ”בָּרוּךְ … מְשַׁנֶּה הַבְּרִיּוֹת“.

מָרֵיהּ דְּעַלְמָא, הָאִם וְאֵיךְ
”דִּמְעַת הָעֲשֻׁקִים“ עָלְתָה עַל לִבְּךָ?
הַיִּתָּכֵן שְׁתּוֹרָה בִּקְּשָׁה לְהַחֲרִים
בָּנוֹת אֲהוּבוֹת, בָּנִים אֲהוּבִים?

אִם אֵין לָהֶם כֹּחַ וּבְלֹא מְנַחֵם
הְיֶה אַתָּה נֶחָמָה עֲבוּרָם וְתִפְלָטֵם
שִׂים שָׁלוֹם בֵּינֵינוּ וּבְלֵב חֲכָמֵינוּ נְדָבָה
וּמִשָׁמַיִם תַּעַזְרֶנּוּ לְתָמְכָם בְּאַהֲבָה

אַנָּא הַעֲנֵק לְכֻלָּנוּ תִּקְוָה
לְחַיִּים שְׁלֵמִים וְלִישׁוּעָה קְרוֹבָה

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Dvar Torá: O antisemitismo está virando comum e aceitável – e parte da culpa é nossa! (CIP)

Eu tirei o feriado do primeiro de maio para terminar de abrir minhas caixas de livros e colocá-los em ordem nas estantes. Pode parecer uma tarefa banal, mas são mais de 2.000 livros que eu trato com um carinho enorme, quase como se fossem meus filhos. Por mais que eu aumente o número de estantes, eu também continuo comprando mais livros e, assim, sempre tem livros que ficam de fora. O desafio de como organizá-los é constante! 

Minha filha acha que eu devia organizá-los de acordo com a cor da lombada, pra que eles fiquem bem bonitos na estante. A verdade é que alguns têm que ser organizados pela sua altura, por que não é em qualquer prateleira que eles cabem. Um professor muito querido, o rabino Ebn Leader, dizia que ele conhecia gente que organizava os livros pela afinidade ideológica dos autores (e eu preciso reconhecer que em parte das prateleiras é assim que eu faço), mas de acordo com o Ebn este é um grande erro. “Deixe que autores que divergem estabeleçam o diálogo, nem que seja só nas prateleiras das tuas estantes!” Na opinião dele, o sidur ortodoxo precisava estar ao lado do sidur reformista, porque ambos tinham muito a aprender um com o outro. Zeev Jabotinsky precisava estar ao lado de Martin Buber, nem que fosse só para imaginarmos o que sairia daquele encontro inusitado.

Pois na quarta-feira eu voltei a enfrentar estes dilemas, depois de tê-los adiado por mais de um mês, vivendo com parte dos livros nas estantes e outra parte em caixas que formavam um mar na sala de casa. Abri as caixas e comecei a colocar os livros nas estantes. Foi fácil decidir onde os dicionários iam, junto às gramáticas e a outras ferramentas de estudo de texto, especialmente pra leitura do Tanach e do Talmud. Só tinha espaço para uma prateleira de livros de história judaica e muitos deles tiveram que voltar para as caixas. Duas prateleiras de livros sobre Sionismo. Uma prateleira com livros de educação em geral e outras duas com livros de educação judaica. Aí cheguei aos livros sobre a Shoá, o genocídio de 6 milhões de judeus na 2a Guerra. Meus livros sobre o assunto ocupam 80% de uma prateleira - com que preencher os outros 20%? Tenho alguns livros sobre antisemitismo em geral e mais alguns sobre outros genocídios. Será que estes livros deveriam ir na mesma prateleira?!

Esta é uma discussão antiga….. sobre quão comparável a Shoá é a outros genocídios da história. De um lado, é uma pergunta sobre o passado - até que ponto a Shoá é resultado de processos históricos incomparáveis de antisemitismo e desumanização dos judeus que estabeleceram no subconsciente coletivo um entendimento do judeu como alguém que é fundamentalmente diferente do resto da humanidade ou será que Shoá é mais um exemplo de genocídio, talvez o mais brutal de todos, mas seguindo um modelo de desumanização e extermínio que não é único? De outro lado, é também uma conversa sobre o futuro: levando em consideração a tradição judaica que nos instrui a nos identificar com os oprimidos, “porque fomos oprimidos na terra de Mitzrayim” e as múltiplas tentativas de extermínio das quais fomos vítimas na história, qual nossa obrigação com relação à frase “Nunca Mais”? É garantir que JUDEUS nunca mais sejam vítimas destas tentativas ou garantir que TODOS os povos sejam protegidos? Qual nossa obrigação, levando em conta o extermínio de 6 milhões de judeus na Shoá, de nos manifestarmos em defesa dos Sudaneses de Darfur ou das vítimas da Guerra da Síria?

Na mesma quarta-feira em que eu arrumei minhas estantes de livros, foi marcado o início de Iom haShoá, o dia do calendário judaico dedicado à memória de cada uma das 6 milhões de vidas judias assassinadas apenas por serem judeus e do fortalecimento do nosso compromisso com o “Nunca Mais”, da forma como cada um o entender. No entanto,  e infelizmente, qualquer que seja a definição pessoal de cada um de vocês, a verdade é que não estamos fazendo valer o nosso compromisso. O “Nunca Mais” corre o sério risco de virar uma frase cujo efeito, impacto e validade ficarão só na história.

Do lado que entende o legado da Shoá como sendo o de uma defesa vigorosa de direitos humanos a todos em toda parte, falhamos feio ao permitir que (sigo aqui a lista do Museu do Holocausto da Flórida), mesmo depois de conhecermos as atrocidades dos nazistas, tivéssemos genocídios no Burundi (onde cerca de 200.000 Hutus foram mortos pelos Tutsis na década de 60), na Guatemala (onde 100.000 indígenas foram mortos pelos militares da partir da década de 60), no Cambodia (onde o Khmer vermelho matou entre 1 e 3 milhões de pessoas na década de 70), no Paraguai (onde milhares de indígenas foram mortos a partir da década de 70), na Bósnia (onde 200.000 muçulmanos foram mortos na Guerra da Iugoslávia nos anos 90), em Darfur, no Sudão (onde o processo, ainda em curso, já matou mais de 400.000 pessoas). 

Anne Frank disse: “Se Deus me permitir viver…. eu farei minha voz ser ouvida. Eu trabalharei pelo mundo e pela humanidade.” É doloroso imaginar quão decepcionada ela estaria dos nossos resultados, apesar do enorme sucesso que seu livro atingiu. Sistemática e diariamente, milhões de pessoas têm sua dignidade humana desafiada, sua segurança física comprometida, seu bem-estar psicológico abalado apenas por serem quem eles são – e a situação tem ficado mais difícil nos últimos anos. Os grupos que são vítimas dos ataques mudam de lugar para lugar, de um ano para o outro, mas o ódio ao diferente, ao vulnerável, permanece: os homosexuais, os transgêneros, as mulheres, os muçulmanos, as crianças, os cristãos, os budistas, os moradores de rua, os povos nativos, os tutsis, os hutus. A lista é longa….

Para quem entende que o legado da Shoá é a luta permanente e incasável contra o antisemitismo, os últimos anos também têm sido desafiadores. Eu morei nos Estados Unidos por muitos anos e desenvolvi, lá, a crença de que a integração da comunidade judaica com o resto da sociedade era tão profundo que novas onda antisemitas seriam impossíveis. Claro que poderiam acontecer ataques isolados, mas eu estava convencido de que o mundo tinha aprendido sua lição, com relação ao antisemitismo pelo menos. Preciso confessar a todos vocês que eu estava errado. Eventos recentes na França, na Argentina, a passeata neo-nazista em Charlotesville em 2017, o ataque à sinagoga em Pittsburgh há seis meses e em San Diego na semana passada me mostraram que o monstro do antisemitismo levanta sua cabeça novamente. No Brasil, os ataques à comunidade judaica também têm se intensificado e se incorporado ao universo dos discursos aceitáveis. Ataques a ministros e governadores que apelam às suas identidades judaicas; políticos que queimam a bandeira de Israel em praça pública ou que generalizam seus ataques à comunidade judaica como um todo. Uma prova de concurso para universidade federal que comparava sionismo a racismo.

Da esquerda e da direita, do centro e dos extremos, encontramos manifestações antisemitas em todos os pontos do espectro político, mas um viés cognitivo nos faz perceber apenas quando alguém com quem discordamos o manifesta. Em uma coluna recente na Folha de São Paulo, o economista comportamental israelense Dan Ariely, comentou a respeito de erros fundamentais de atribuição. Na definição dele: “em geral, tendemos a ver coisas boas que acontecem conosco como mérito nosso e coisas ruins como resultado de circunstâncias externas das quais não temos controle. Por outro lado, tendemos a atribuir coisas boas que acontecem a outras pessoas a circunstâncias externas e coisas ruins ao seu próprio fazer.” Uma versão desse fenômeno parece se aplicar com relação a manifestações antisemitas: percebemos que, quando expressas por alguém que pertence ao campo político com o qual nos identificamos, elas são um lapso, opiniões marginais expressas por alguém que não representa verdadeiramente nosso campo político; quando expressas por alguém do campo oposto, por outro lado, estas manifestações de antisemitismo são vistas como definidoras de caráter, do núcleo do que representa aquela opinião política.

Desta forma, o antisemitismo vai se banalizando, tornando-se apenas mais uma das laranjas podres usadas para atacar aqueles com quem discordamos. 

Quando neo-nazistas marcharam em Charlotesville, gritando “os judeus não nos substituirão” e cercaram uma sinagoga durante serviços de Shabat - Trump disse que havia pessoas boas e ruins nos dois lados do conflito. Seus partidários, mesmo aqueles que discordaram dele, acharam que este foi um deslize menor do presidente americano. 

Quando Binyamin Netaniahu aliou-se a figuras políticas como Victor Orban, o primeiro-ministro da Hungria, que desenvolveu uma campanha de ataques antisemitas a seu opositor George Soros, poucos de seus apoiadores acharam o gesto problemático. 

O ex-presidenciável Ciro Gomes atacou a corrupção da comunidade judaica - e por isso está sendo processado pela Conib - sem que perdesse seu status de bad-boy charmoso da política brasileira. 

Poucos foram os alunos de esquerda na USP que romperam seu apoio ao sindicato dos trabalhadores da universidade quando seu presidente disse, do alto do carro de som em uma manifestação, que eles estavam na esquina da Augusta com a Paulista, para opor o controle sionista sobre o capital financeiro (o banco Safra) e sobre a cultura (a própria Livraria Cultura). 

Precisamos de apoio e aceitação em nossos próprios grupos sociais e campos políticos, mas isto não pode vir às custas de aceitar o inaceitável como se normal fosse.

Para deixar claro e não causar pânico, eu ando com kipá na cabeça em todos os lugares a que vou: ando muito a pé, de dia e de noite; ando de ônibus e de metrô. Nunca me senti acuado como judeu. Há algumas semanas fui a uma das regiões mais pobres e violentas da cidade visitar um projeto social. Perguntei ao nosso anfitrião se deveria colocar um boné para esconder minha kipá e ele ficou chocado com a pergunta. O antisemitismo ainda não se espalhou pela sociedade brasileira, mas ele já contamina o discurso de boa parte dos nossos líderes.

Maimônides, o grande sábio judeu do século XII, navegou entre a filosofia e os textos judaicos, uma integração pelo qual ele foi fortemente atacado. Sua resposta: שמע האמת ממי שאמרה, “procure a verdade, quem quer que a diga”. No passado recente, viramos a resposta de Maimônides de cabeça para baixo, e aparentamos adotar como mote: “aceite a mentira, dependendo de quem a diga.” Nossas conveniências pessoais e políticas nos levam a tolerar atos e afirmações de intolerância – seja de antisemitismo ou de preconceito contra outros grupos – de tal forma que elas passaram a ser aceitas como normais, mentiras passaram a ser aceitas como verdades. Mesmo a Shoá virou moeda de troca em debates políticos absolutamente inúteis: se o nazismo era de direita ou de esquerda, se é possível ou não perdoar seus perpetradores. Sem voltar a colocar a Shoá em um pedestal sobre o qual não se pode analisá-la ou mencioná-la, é fundamental recuperar o decoro e o respeito ao tratar de um tema tão sério, de tantas vidas humanas perdidas pelo preconceito.

É fundamental que sejamos capazes de apontar os deslizes preconceituosos dos nossos amigos, sob o risco de trivializarmos o que não é trivial e só nos darmos conta do estrago quando for tarde demais.

Estamos perdendo a batalha do “Nunca Mais”. O mundo está se tornando um lugar cada vez mais inóspito e hostil ao “outro”, ao diferente, ao oprimido. Em particular, o mundo está se tornando um lugar cada vez mais perigoso para sermos judeus – um lugar onde ideias antisemitas impublicáveis há alguns anos passaram a ser consideradas integrantes do mercado livre de ideias a serem consideradas.

Sem medo de nos expor, sem medo de quais relações iremos comprometer, temos que assumir o legado do “Nunca Mais” e transformar este mundo no lugar com que Anne Frank sonhou: “Se Deus me permitir viver…. eu farei minha voz ser ouvida. Eu trabalharei pelo mundo e pela humanidade.”

Shabat Shalom!