sexta-feira, 5 de abril de 2019

A busca permanente por significado na Torá

A parashá desta semana, Tazria, é uma das que mais têm desafiado rabinos e comentaristas ao longo dos séculos a encontrar significado e relevância para sua vida cotidiana. A seu respeito, o rabino Art Green escreveu: “Como alguém encontra algo relevante a dizer quando a Torá está tão preocupada com doenças de pele e a cor das lesões de alguém?”[1] Se a Torá é realmente uma “árvore da vida para aqueles que a ela se apegam (…), seus caminhos são caminhos de doçura e todas as suas veredas são de paz”, como explicar uma parashá que demonstra pouca empatia para com o aflito por doenças de pele?
O rabino Jonathan Sacks propõe que há uma dissonância cognitiva entre nossa leitura literal do texto e sua real intenção [2]. De acordo com ele, a discussão para o tratamento de tzara’at (a condição de pele discutida nesta parashá) não devem ser entendidas a partir da dicotomia doente x saudável e sim dentro do paradigma de impureza x pureza. Citando diversas fontes tradicionais, o rabino Sacks atribui à transgressão de “Lashon haRá” (a fofoca com intuito malicioso) a responsabilidade por esta condição de impureza.
A mesma abordagem metafórica é adotada pelo rabino Noam Elimelech, um mestre chassídico do século 18, que associa a pele ao nosso orgulho. Nesta leitura, o inchaço da pele seria sinal de um orgulho que se desenvolveu demais, tornando-se arrogância.
O que o comportamento arrogante e o hábito de falar mal dos outros têm em comum? Ambos têm a capacidade de esgarçar o tecido social, causando danos que vão muito além das pessoas que foram diretamente afetadas. O afastamento social temporário para aqueles que desenvolvem estas práticas, como é instituído na nossa parashá, busca limitar seu impacto, permitindo que seja tratado antes de “contagiar” toda a sociedade.
Em nossos tempos, em que a veiculação de informações inverídicas pelas redes sociais tem se tornado a norma mais do que a exceção, em que realidades históricas são distorcidas pela conveniência política de quem as diz, quando egos super-inflados fazem com que as pessoas tenham pouca disponibilidade para considerar pontos de vista diferentes dos seus, a parashá Tazria ganha especial importância. Urge buscarmos formas equivalentes ao tratamento proposto na Torá, para garantirmos o bem estar coletivo da sociedade.
Claramente, “עץ חיים היא”, “a Torá é uma árvore da vida”, sempre relevante em nossas vidas!
Shabat Shalom!

[1] Arthur Green; Ebn Leader; Ariel Evan Mayse; Or Rose. “Speaking Torah: Spiritual Teachings from around the Maggid’s Table”, vol. 1, p. 283.

[2] Jonathan Sacks. “Covenant & Conversation: A Weekly Reading of the Hebrew Bible; Leviticus: the Book of Holiness”, pp. 187-193

.[3] “Speaking Torah”, pp. 276-277.

quinta-feira, 7 de março de 2019

Construindo o Mishcán em nós mesmos

A parashá desta semana traz as instruções finais para a construção do Mishcán (Tabernáculo), o Templo móvel que os israelitas carregaram durante sua peregrinação de quarenta anos pelo deserto. Ao final do processo, o texto diz:
Quando Moshé terminou o trabalho, a nuvem cobriu a tenda da reunião e a Presença de Adonai preencheu o Mishcán. (Ex. 40:33-34)
À primeira vista, a longa lista de materiais e detalhes para a construção que compõem esta parashá poderiam servir de planta para um projeto de reconstrução do Mishcán (e há aqueles que o fizeram!), mas como podemos incorporar estas detalhadas instruções nas nossas vidas na conturbada São Paulo do século 21?

Um caminho possível pode ser encontrado nos comentários chassídicos, que frequentemente comparam o texto da Torá e os dilemas dos nossos patriarcas aos nossos próprios conflitos internos. Desta forma, o trabalho de construir o Mishcán onde a presença Divina pudesse residir é comparado ao trabalho interno de nos construirmos como a pessoa que gostaríamos de ser, aquela que mais intensamente reflete a imagem Divina à qual fomos formados. Neste processo, temos que identificar o que está nos afastando do objetivo, trabalhar - através de ações concretas - para remover os empecilhos, e desenvolver atividades que nos coloquem no caminho correto. Trabalho duro, cheio de detalhes e que requer muito esforço, determinação e persistência - em muitos aspectos similar à construção do Mishcán. Na linguagem chassídica, este é o caminho para “dvecut”, o processo espiritual de se conectar com Deus e estabelecer uma vida cheia de propósito. É assim que trazemos a presença, não apenas para a nossa experiência pessoal, mas para o mundo como um todo.

O rabino Ebn Leader, um dos meus professores queridos, lembra que da mesma forma que o Mishcán era móvel e podia ser estabelecido em qualquer parte, nós também podemos dar início ao nosso processo pessoal de transformação e busca de dvecut em qualquer lugar e a qualquer momento. Basta escutar à nossa voz interna e tomar a decisão de se engajar no trabalho árduo de nos transformarmos em nosso próprio Mishcán.

Neste shabat, que as instruções de parashat Pecudei nos sirvam de inspiração para arrumarmos a nós mesmos e, assim, possibilitarmos que Deus ocupe Seu lugar nas nossas vidas e no mundo!


Shabat Shalom!

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Dvar Torá: Parashat Tetsavê (CIP)

Shabat Shalom,
Talvez seja por causa deste shabat de boas vindas, talvez seja pelo fato de que ontem, 14 de fevereiro, foi aniversário da minha mãe ou que ontem também marcou o primeiro aniversário do massacre em uma escola em Parkland, na Flórida. Mas o fato é que, nestes últimos dias, tenho pensado bastante sobre datas e como as datas que vamos adicionando ao nosso calendário contam parte da nossa história, troféus e cicatrizes que acumulamos ao longo dos anos. A data em que nos formamos na faculdade. Quando descobrimos uma doença séria ou quando recebemos do médico a notícia de que estávamos curados. A data do casamento ou a do divórcio. As datas em que nasceram nossos filhos ou aquelas em que perdemos entes queridos. Estas datas vão se acumulando e vão contando, pouco a pouco, as histórias das nossas vidas.
No mundo judaico, também temos adicionado datas ao calendário, datas que contam muito da experiência judaica no século 20: Iom haShoá, Iom haAtzmaut, Iom haZicaron, Iom Ierushalayim. A desgraça da Shoá e os sucessos de Israel deram a tônica das datas que juntamos ao calendário nas primeiras décadas da existência do Estado de Israel. Nas últimas décadas, no entanto, o foco tem mudado um pouco: depois do assassinato de Yitzhak Rabin, o 12 de Cheshvan passou a ser a data em que conversamos sobre a necessidade de prevenir que nossas discordâncias políticas se tornem violentas e comprometam o sistema democrático.
A data em memória a Itzhak Rabin se junta a outras duas datas que tratam de questões semelhantes, ligadas à perda da nossa capacidade de lidar com divergências, um problema que parece estar se tornando cada vez mais crônico. Tishá beAv, o 9º dia do mês judaico de Av, marca a destruição dos dois Templos em Jerusalém e outras tragédias que se abateram sobre o povo judeu ao longo da história. O Talmud, ao falar da destruição do segundo Templo, atribui sua destruição a שנאת חינם, o ódio gratuito que reinava na comunidade judaica da época.
E há outra data que trata do rompimento do diálogo, uma da qual muito pouca gente ouviu falar. Ontem, além de ter sido 14 de fevereiro e aniversário da minha mãe, também foi 9 de Adar. Segundo o Shulchan Aruch, obra central para a lei judaica, o 9 de Adar deveria ser uma data de jejum pelas desavenças entre as escolas de Hillel e de Shamai.
“Desavenças entre Hillel e Shamai?!” Nós, rabinos, sempre falamos das discussões entre as escolas de Hillel e de Shamai como exemplos de מחלוקות לשם שמיים, discussões produtivas e respeitosas; como pode haver um dia de jejum pelas desavenças entre eles?
Num dia 9 de Adar, a turma de Shamai se viu em maioria na academia rabínica – um evento raríssimo! – e aproveitou a oportunidade para aprovar todas as decisões que pudessem. Membros da escola de Shamai se colocaram de guarda na porta da academia para garantir que sua vantagem numérica não fosse alterada. Naquele dia, 18 decisões foram tomadas de acordo com a opinião da Escola de Shamai. Uma fonte rabínica fala de 3.000 mortos como resultado deste conflito; outra compara este dia como o evento do bezerro de ouro. Provavelmente, o motivo para a comparação é o fato de que Beit Shamai tenha permitido que sua certeza transformasse ideias em ídolos, virassem absolutas, incontestáveis, inquestionáveis; semi-deuses pelos quais toda e qualquer atitude é justificável.
Vivemos em uma época em que parecemos ter perdido a capacidade de debater de forma respeitosa e produtiva. Alimentados pelas caixas de ressonância das redes sociais, temos adotado discursos cada vez mais radicais e vilificado as pessoas cujas opiniões divergem das nossas. Perdemos a curiosidade genuína pela opinião do outro e entramos em discussões com o único objetivo de vencê-las. Não deixamos nenhuma fresta em nossas certezas absolutas, também incorrendo no erro da idolatria de ideias. Em confrontos apresentados como decisões entre o bem e o mal absolutos, qualquer estratégia passou a ser válida para vencer o debate. Assim como foi o caso com os membros de Beit Shamai, nos esforçamos para obter o máximo resultado de qualquer vantagem numérica temporária. Foi-se a época em que a busca pelo consenso e pela paz era um valor que perseguíamos…
Todos concordam sobre a quebra das normas de convívio e debate, mas cada um de nós aponta para o grupo oponente como responsável por esta situação. Por outro lado, quando os rabinos do Talmud falam do ódio gratuito em Tishá beAv, apontam o dedo para a culpa dos próprios rabinos e os responsabilizam por terem permitido que a situação chegasse àquele ponto. Quando falam do 9 de Adar, é uma crise no próprio modelo rabínico de debate que causa o rompimento. A tradição nos ensina, desta forma, a não buscar subterfúgios ou bodes expiatórios e instrui a cada um a buscar sua própria responsabilidade por termos chegado até aqui antes de indicar a culpa do outro.
Na parashá desta semana, Aharon - o irmão de Moshé - e seus filhos Nadav, Avihu, Eliazar e Itamar, recebem as instruções para servirem como cohanim, sacerdotes responsáveis pela condução dos serviços religiosos da época. Que coincidência linda que seja justamente esta a parashá do shabat em que eu me somo ao grupo de rabinos da CIP!
Sobre Aharon, Pirkei Avot diz que ele era  אוֹהֵב שָׁלוֹם וְרוֹדֵף שָׁלוֹם, אוֹהֵב אֶת הַבְּרִיּוֹת וּמְקָרְבָן לַתּוֹרָה, “alguém que amava a paz e a buscava, que amava as pessoas e as aproximava da Torá.” Uma ótima fonte de inspiração nestes dias difíceis em que vivemos! Espero que junto com meus colegas na equipe profissional e com o apoio de toda a comunidade, possamos realmente ajudar na construção da paz e do consenso, tão necessários nestes tempos. Que o exemplo de 9 de Adar nos instrua a manter nossos debates construtivos e respeitosos.
Shabat Shalom!

Roupas e Máscaras

“A roupa não faz o homem” diz o ditado brasileiro, mas a parashá desta semana traz instruções explícitas de como devem ser as roupas e os acessórios que os cohanim, incluindo o Cohen haGadol, usarão. Os comentaristas debatem qual o impacto dessas roupas especiais que os sacerdotes devem usar: há aqueles que apontam para a necessidade de distinção entre sacerdotes e o resto do povo e aqueles que acreditam que o uso da roupa confere uma distinção que é incorporada também na maneira como os sacerdotes se comportam.


Será que nos comportamos de forma mais séria, sisuda ou sofisticada quando nos vestimos mais formalmente? Será que as roupas de banho e chinelos que usamos na praia e na piscina também se refletem no linguajar e nas brincadeiras que adotamos nestes lugares? Entre estes dois casos, qual traje será que melhor reflete a nossas verdadeira personalidade, o nosso mais profundo “eu”?


Diferentemente de outras culturas, tradicionalmente, judeus não são enterrados com roupas, mas envolvidos em uma mortalha branca. Partimos deste mundo buscando refletir a mais pura essência de quem somos e pareceu apropriado à tradição eliminar qualquer impacto que as roupas pudessem ter. Nesta mesma linha de raciocínio, Avraham Burg, ex-presidente da Agência Judaica e do Parlamento Isralense, comenta que a palavra em hebraico para “roupa” (bégued) vem da mesma raiz que a palavra para “traição” (beguidá) e que a palavra para “casaco” (me’il) vem da mesma raiz que “fraude” (me’ilá)[1]. A língua hebraica reconhece implicitamente que as roupas ajudam a compor as máscaras que utilizamos na composição de nossa persona e, desta forma, nos ajudam a contar pequenas mentiras sobre nós mesmos.


Daqui a pouco mais de um mês, celebraremos Purim, a festa judaica em que fantasias e máscaras ocupam lugar central e está na hora de começarmos a planejar que fantasias usaremos. No texto da Meguilat Ester, as roupas e acessórios já têm grande destaque[2] e na comemoração da festa nos permitimos brincar e adotar, através da roupa, outra personalidade, ao menos por umas horas. Algumas vezes, nos fantasiamos do mais absoluto inverso da realidade que vivemos e, desta forma, experimentamos o mundo através da perspectiva do outro. Outras vezes, nos fantasiamos daquilo que mais gostaríamos de ser e aproveitamos a festa para realizar este sonho, mesmo que temporariamente. Ao final da festa, tiramos nossas fantasias e voltamos às nossas máscaras do dia-a-dia.


O que aconteceria se nos permitíssemos remover todas as máscaras e nos apresentássemos ao mundo como realmente somos? Se é verdade que a roupa não faz a pessoa, então quem é a pessoa que se esconde por baixo de tanta roupa? Que neste shabat Tetsavê consigamos - mesmo que apenas por alguns instantes - nos relacionar com aqueles que mais amamos sem os uniformes, sem as máscaras, sem os formalismos, sem as brincadeiras forçadas. Que possamos apenas SER na relação um com o outro e que, assim, nossas almas descansem e sejam revitalizadas.


Shabat Shalom!


[1] Burg, Avraham. Very Near to You: Human Readings of the Torah. Gefen Publishing House: 2012. p. 176.
[2] Veja, por exemplo, Ester 1:11, 4:1, 5:1, 6:7-11.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Judaísmo e Poder: uma história ambivalente

(artigo originalmente publicado na Revista Devarim 36, pgs. 53-56)

Com a proximidade das eleições e o acirramento das posições políticas, tanto dentro quanto fora da vida judaica, discussões sobre a representatividade das instituições comunitárias e do relacionamento institucional com as esferas de poder político passaram a pautar, com alguma centralidade, a agenda comunitária. Esta divisão política não é, de forma alguma, uma experiência inédita [1] mas o potencial de amplificação representado pelas redes sociais virtuais tem dado nova dimensão às disputas. Neste sentido, parece necessária a análise do que a tradição judaica tem a dizer sobre o relacionamento com as esferas de poder, sejam eles internos ou externos às instâncias comunitárias e sobre as formas como estes debates são conduzidos.

Uma das passagens mais famosas de Pirkei Avot [2], o tratado da Mishná também conhecido como “Ética dos Pais”, procura caracterizar dois tipos de debates. Discussões produtivas são chamadas de “polêmicas em nome dos céus” (machloket l’shem shamayim) e seus resultados tendem a ser eternos; polêmicas destrutivas, por outro lado, têm impacto limitado no tempo. Como é típico da tradição rabínica, não há no texto uma definição específica do que constitua uma “polêmica em nome dos céus” - temos apenas dois exemplos, dos quais precisamos inferir a definição de cada categoria. O exemplo paradigmático que esta passagem dá para discussões produtivas é Hillel e Shamai, dois sábios que viveram no século I aEC e que são considerados precursores do movimento rabínico que estabeleceria, alguns séculos mais tarde, os parâmetros da vida judaica como a vivemos hoje. Hillel e Shamai discordavam em tudo, mas uma outra passagem da Mishná [3] nos conta que, mesmo assim, havia convívio social respeitoso entre eles, seus seguidores e suas famílias. Em contraponto, o exemplo para discussões destrutivas é a polêmica entre Korach e seus seguidores, que se levantaram em rebelião contra Moshé quando o povo vagava pelo deserto a caminho da Terra de Israel [4]. 

Que características justificam a distinção estabelecida entre as disputas entre Hillel e Shamai, de um lado, e a de Korach e seus seguidores, do outro? De acordo com os comentários tradicionais [5], uma “polêmica em nome dos céus” busca revelar a verdade com relação a um determinado assunto, ao passo que “uma polêmica que não seja em nome dos céus” se preocupa unicamente com o poder e o status conferido pela disputa. Uma análise mais profunda, no entanto, nos revela que a questão é, potencialmente, mais complexa. De um lado, o nome dos filhos de Korach são relembrados em onze salmos [6], indicando a perenidade também de sua memória; de outro, o Talmud revela episódios em que as disputas entre Hillel e Shamai não foram exatamente “amigáveis”, relembrando situações nas quais elas foram resolvidas apenas através da violência [7]. 

Alguns comentaristas apontam para o fato de que a polêmica entre Hillel e Shamai ter se dado entre iguais, ao passo que a disputa entre Korach e Moshé se deu entre alguém que detinha autoridade e alguém que a questionava. Esta leitura aponta a questão da legitimidade das disputas para sua relação com a autoridade estabelecida, em particular quando há uma assimetria de poder entre as partes. A partir dela, temos uma primeira evidência do caráter complexo e multifacetado da relação judaica com o poder estabelecido, especialmente durante os séculos nos quais a vida judaica se desenvolveu quase exclusivamente na Diáspora.

Um lado da questão é revelado por outra passagem de Pirkei Avot: “Tenha cuidado com o governo, pois (seus membros) se aproximam apenas por seus próprios problemas. Eles se apresentam como amigos nos bons tempos, mas não ficam ao seu lado nos tempos difíceis” [8]. A perspectiva de que o governo (na época em que o texto foi escrito, o Império Romano), ainda que se apresente como seu aliado nos tempos de bonança, está defendendo apenas seus próprios interesses, reforça a impressão de uma relação complexa com as autoridades que detêm o poder. 

Por outro lado, um ponto de vista mais positivo com relação à possibilidade de relacionamento construtivo com o poder é revelada em uma história sobre o estabelecimento da academia rabínica em Iavne, a cidade onde se deu a redação da Mishná, a obra na qual Pirkei Avot se insere. Conta a tradição rabínica [9] que, quando Jerusalém estava cercada pelas tropas romanas e os zelotas judeus impediam o estabelecimento de um acordo de paz com os romanos, Raban Iohanan ben Zakai conseguiu escapar da cidade e negociou com o general Vespaziano sua rendição e a de seus discípulos, tendo como contrapartida a garantia para o estabelecimento de Iavne como novo centro da vida intelectual judaica após a destruição de Jerusalém. Neste caso, a intransigência dos zelotas em negociar com o poder romano levou à destruição de Jerusalém, enquanto a disposição de Iohanan ben Zakai garantiu a sobrevivência judaica. A mensagem aqui, ao contrário do texto anterior, parece ser a da possibilidade de interação positiva com o governo.

A verdade é que já em textos bíblicos encontramos ambivalência com relação à proximidade ao poder, especialmente para a vida sob domínio estrangeiro. Nestes casos, a proximidade com o poder significa, simultaneamente, oportunidade e risco. Em Gênesis, temos a história de Iossef, cuja ascensão ao cargo de vice-rei do Egito garantiu suprimento para a família de seu pai quando a seca chegou à região. Quando seus irmãos lhe pedem perdão por tê-lo vendido como escravo anos antes, sua resposta indica que tudo fazia parte do plano Divino, para que ele pudesse estar próximo ao poder do Egito quando a necessidade se apresentasse [10]. No entanto, com relação ao mesmo Egito, temos, no início do livro de Êxodo, a ascensão de um novo faraó que, amedrontado pela presença israelita na terra, decide escravizar os hebreus e exterminá-los [11]. Da mesma forma, a história de Ester, marca o risco e a oportunidade que a comunidade judaica da Diáspora corre ao se aproximar do poder.

Mesmo com relação ao Poder absoluto representado por Deus, a tradição judaica tem sido ambivalente. De um lado, Deus é inquestionável e a devoção incondicional é celebrada em textos e na liturgia. De outro lado, o questionamento de Deus é, paradoxalmente, também valorizado. Avraham, questiona Deus de forma quase agressiva, “o Juiz de toda a Terra não julgará de forma justa?” [12], quando Deus lhe conta Seus planos de destruir Sodoma e Gomorra. Também Moshé, após o episódio do Bezerro de Ouro, questiona os planos Divinos de destruir todo o povo, insinuando que isto daria argumento aos egípcios, que diriam que os Israelitas tinham sido tirados do Egito para serem mortos no deserto e relembra Deus da promessa que havia feito aos patriarcas [13]. A tradição rabínica, provavelmente seguindo estes exemplos, também tem sua dose de chutzpá [14] na relação com a autoridade Divina. Em uma famosa passagem talmúdica [15], Deus tenta interferir em uma discussão na academia rabínica. A resposta dos sábios é clara no sentido de rejeitar a intervenção de Deus: “a Torá não está nos céus”, eles dizem citando um verso bíblico [16], “vocês devem seguir a vontade da maioria” [17], eles complementam citando outro verso. Esta última citação bíblica é especialmente interessante, tendo em vista que ela se estabelece como fonte para a abordagem judaica de decidir questões legais baseadas na vontade da maioria. Seu significado no contexto original não parece, no entanto, justificar esta leitura. O verso bíblico diz: “você não deve seguir rabim para fazer o mal e não dê testemunho em uma disputa para desviá-la de uma forma que a desvie na direção de rabim.” A palavra rabim (רַבִּ֖ים) pode significar “poderosos” ou “maioria”, mas, de qualquer forma, a injunção bíblica parece ser no sentido de não perverter a justiça seguindo a vontade da maioria ou dos poderosos. A interpretação rabínica, no entanto, ao tirar parte da frase do contexto, a estabeleceu como a evidência textual para regra da maioria na tradição judaica. 

Durante os quase dois milênios em que a comunidade judaica viveu quase exclusivamente na Diáspora e na qual a administração interna da comunidade judaica era deixada, na grande maioria dos casos, às suas próprias instituições, o preceito de seguir a maioria guiou, em grande medida, a abordagem judaica para o estabelecimento do seu próprio modelo de poder e governança. A definição do que constituía maioria, no entanto, era questão de debate. O rabino Eliahu Mizrahi, escrevendo na Turquia no final do século XV, expressou uma opinião inclusiva na definição de quem deveria ser contado para a maioria:
“puro e impuro, inocente e culpado…. todos devem ser contados e devem seguir a decisão da maioria, como está escrito na nossa sagrada Torá: ‘você deve decidir de acordo com a maioria’; e aquele que se opuser à maioria é considerado um pecador. Não faz diferença se a maioria é rica ou pobre, de homens sábios ou de pessoas comuns, porque toda a comunidade é considerada um tribunal em assuntos relativos a todos os seus membros.” [18]
Sua opinião, no entanto, não prevaleceu e as autoridades rabínicas medievais redefiniram muitas vezes o conceito de maioria para fortalecer os grupos dominantes – num claro sinal de que o preceito que defendia distância (ou uma postura crítica) com relação aos poderosos não se aplicava quando a liderança rabínica era, ela mesma, o governo judaico. Em alguns casos, os rabinos consideravam apenas os anciãos da cidade para composição da maioria; Rabeinu Asher chegou a propor, no final do século XIII, que apenas a elite econômica devia opinar em questões tributárias. Samuel de Medina de Salônica, defendeu que o voto deveria ser qualificado e que o voto de uma pessoa culta poderia valor o mesmo que o de mil ignorantes: “aceitar a vontade da maioria quando esta maioria é composta por pessoas ignorantes pode levar a uma perversão da justiça”, ele escreveu no século XVI [19].

Com a Hascalá, o Iluminismo Judaico através do qual as populações judaicas europeias foram integradas às sociedades em que viviam, as comunidades judaicas perderam a autonomia que desfrutavam até então, e a questão da relação judaica com o poder passou por nova transformação, focada nas relações institucionais com o governo laico e com quem tem a legitimidade de representar a comunidade judaica nestas relações institucionais. 

Para as comunidades judaicas da Diáspora, esta continua sendo a dinâmica de atuação até hoje. Assim como em tempos medievais, permanece não resolvida a questão de quem deve ter voto na formação da maioria comunitária. Aberta também continua a questão do relacionamento com o governo laico e do grau de proximidade desejável nesta relação. Ainda mais relevante, continua indefinida a questão sobre como a tradição e a história judaicas podem ajudar a pautar os processos de definição destes assuntos e como os valores judaicos podem nos ajudar a encaminhar estas discussões sem destruir a comunidade no processo. 

[1] A começar pela divisão dos dois Reinos em tempos bíblicos, passando pelos grupos judaicos na época do Segundo Templo (fariseus, saduceus, essênios, etc.), pela divisão entre judeus rabínicos e caraítas no século IX, entre místicos e adeptos do racionalismo de Maimônides no séc. XII, pelas profundas disputas entre Chassidicos e seus opositores (Mitnagdim) no sec. XVIII, entre sionistas e bundistas na Europa Oriental na primeira metade do séc. XX, entre idichistas e hebraistas em comunidades judaicas brasileiras no mesmo período, apenas para ficar em alguns exemplos.
[2] Mishná Avot 5:17.
[3] Mishná Ievamot 1:4.
[4] Números 16:1-17:14.
[5] Veja, por exemplo, Bartenura nesta passagem.
[6] Salmos 42, 44–49, 84, 85, 87, 88.
[7] Talmud Ierushalmi Shabat 1:4. Veja também Levine, Lee I. “Jerusalem: Portrait of the City in the Second Temple Period (538 BCE - 70 CE)”, Jewish Publication Society: Philadelphia, 2002, p. 308 para uma validação histórica desta passagem. 
[8] Mishná Avot 2:3.
[9] Talmud Bavli Guitin 56a-b.
[10] Gen. 45:4-9 e 50:19-20.
[11] Ex. 1:8-16.
[12] Gen. 18:25.
[13] Ex. 32:9-14.
[14] Termo em hebraico que pode ter conotações positivas e negativas. Traduções aproximadas incluem “insolência”, “cara de pau”, “iniciativa”.
[15] Talmud Bavli Bava Metzia 59b.
[16] Deut. 30:12.
[17] Ex. 23:2.
[18] Conforme citado em Biale, David. “Power and Powerlessness in Jewish History”, Schocken Books: New York,1986, p. 49.
[19] Biale, p. 50.

domingo, 13 de maio de 2018

Dvar Torá: Shabat da Marcha (ARI)


Tudo neste mundo tem o seu tempo;
cada coisa tem a sua ocasião.
Há tempo de nascer e tempo de morrer;
tempo de plantar e tempo de arrancar;
tempo de matar e tempo de curar;
tempo de derrubar e tempo de construir.
Há tempo de ficar triste e tempo de se alegrar;
tempo de chorar e tempo de dançar;
tempo de espalhar pedras e tempo de juntá-las;
tempo de abraçar e tempo de se afastar.
Há tempo de procurar e tempo de perder;
tempo de economizar e tempo de desperdiçar;
tempo de rasgar e tempo de remendar;
tempo de ficar calado e tempo de falar.
Há tempo de amar e tempo de odiar;
tempo de guerra e tempo de paz.
(Kohelet 3:1-8)

As palavras de Kohelet, o livro de Eclesiastes no Tanach, foram incorporadas à filosofia popular. Há algum consolo em saber que, depois da guerra, virá à paz; que depois de coisas serem destruídas, virá a época da reconstrução; que depois de termos economizado por muito tempo, poderemos, finalmente, gastar um pouquinho. Ao mesmo tempo, também nos dá serenidade nos momentos de fartura sabermos que um dia, aquilo que estamos plantando será arrancado; que aquilo que nasce hoje também morrerá. Estas palavras parecem tão óbvias, que acabamos acreditando que a vida se desenrola nestas categorias estanques de alegria e pesar, que se sucedem mas continuam distintas.

No entanto, no mundo em que vivemos, cheio de incertezas e em transição permanente, estas palavras parecem refletir pouco a nossa realidade. Coube ao poeta israelense Iehuda Amihai, a tarefa de estabelecer o contraponto a Kohelet:

Uma pessoa não tem tempo em sua vida
para ter tempo para tudo.
Ela não tem temporadas suficientes para ter
uma temporada para todos os fins.
Kohelet estava errada sobre isso.

Uma pessoa precisa amar e odiar ao mesmo tempo,
rir e chorar com os mesmos olhos,
atirar pedras e recolhê-las com as mesmas mãos,
fazer amor na guerra e guerra no amor.
E odiar e perdoar e lembrar e esquecer,
organizar e confundir, comer e digerir
o que a história
Leva anos e anos para fazer.

Uma pessoa não tem tempo.
Quando ela perde, ela procura; quando ela encontra,
ela esquece; quando ela esquece, ela ama; quando ela ama,
começa a esquecer.

E sua alma é experiente, sua alma
é muito profissional.
Apenas seu corpo permanece para sempre
um amador. Ele tenta e erra
fica confuso, não aprende nada,
bêbado e cego em seus prazeres
e suas dores.

A poesia de Amihai, diferentemente de Eclesiastes, captura outra realidade de nossas vidas, tão cheias de dilemas: quando temos que cuidar das crianças enquanto respondemos no celular o email do trabalho; temos brigas feias com nossos parceiros ao mesmo tempo em que os amamos e desejamos intensamente; somos pessoas inquestionavelmente responsáveis que, uma vez ou outra, agem com pouca reflexão; nos comprometemos com a dimensão judaica das nossas vidas sem abrir mão do nosso profundo comprometimento com o mundo.

Na Marcha Pela Vida endereçamos estas complexidades. Em nossa viagem para a Polônia e para Israel, muitas foram as oportunidades em que sentimos emoções antagônicas e simultâneas, em que conhecemos realidades complexas nas quais as decisões corretas não eram óbvias, em que expressamos compromissos paralelos.

Nos campos de Auschwitz-Birkenau e Majdanek, nos impressionamos com o ar bucólico das fábricas da morte: lugares que assassinaram milhões de seres humanos em ritmo industrial não deveriam poder ser tão calmos, tão cheios de paz; mas eram. Os passarinhos que ciscavam em seus verdes gramados ignoravam o sofrimento escondido naquelas estruturas.  Quem já visitou um campo de concentração sabe como é difícil assimilar esta dualidade entre a calma e o mau absoluto. Conversamos muito à noite com nossos alunos sobre tudo isso, sobre a complexidade das situações às quais eles estavam sendo expostos, dos dilemas que elas continham.

Nossos alunos voltaram da viagem mais maduros, capazes de lidar com os dilemas de suas vidas, ao mesmo tempo em que tentam também compreender os dilemas do outro.

Nossa viagem também teve sua quota de polêmica: ao final da caminhada de 3 km entre Auschwitz e Birkenau realizada anualmente em Iom haShoá, o dia em memória às vítimas do Holocausto, plaquinhas são distribuídas para serem preenchidas e colocadas nos trilhos de trem que levam a Birkenau. Entre as muitas plaquinhas escritas por nosso grupo, uma tinha dizeres lembrando da Marielle, a vereadora do Rio de Janeiro brutalmente assassinada há quase dois meses e afirmando o compromisso em defesa de todas as vidas. Essa foto foi postada nas redes sociais, desacompanhada de maior contexto. Para quem vivencia o dia-a-dia do projeto Marcha Pela Vida, não existia conflito algum naquelas palavras, expressas em um campo de concentração em Iom haShoá. Ao lembrarmos das atrocidades do regime nazista contra os judeus, nos comprometemos com a defesa dos direitos humanos de todos e em qualquer lugar. A frase era o resultado possível de uma perspectiva pedagógica que entende que a educação da Shoá não pode olhar apenas para o passado, precisa também garantir que suas lições sejam efetivamente aprendidas e garantam que o “Nunca Mais” realmente valha. Como Amihai propôs em seu poema, vivemos tudo ao mesmo tempo: afirmávamos a dor pela perda dos seis milhões de judeus, ao mesmo tempo em que nos solidarizávamos, através de um símbolo, com o repúdio à violência humana, sob qualquer forma.

Nos orgulhamos do amadurecimento propiciado pela viagem e amadurecer implica igualmente perceber a realidade sob a perspectiva do outro. Falhamos ao não considerar que a expressão de uma perspectiva desacompanhada de seu contexto poderia causar incômodo e até sofrimento. A imagem exigia que quem a visse completasse o resto da narrativa de um projeto que lida com as complexidades da Shoá com a mesma visão desenvolvida pelo nosso trabalho. Alguns o fizeram e aplaudiram a iniciativa. Muitos outros, no entanto, a interpretaram como um desrespeito à memória do Holocausto ou perceberam na iniciativa um ato de apoio partidário, que desconfiguraria o caráter de Iom haShoá. Queremos reafirmar que a manifestação não teve qualquer caráter político-partidário, muito menos teve o propósito de representar um desrespeito a milhões de vítimas da barbárie e à dor de seus familiares. Ao mesmo tempo em que reafirmamos nosso compromisso com uma educação da Shoá comprometida com a defesa dos direitos humanos de todos e em qualquer lugar, queremos nos desculpar sinceramente àqueles que se sentiram ofendidos, pois jamais houve a intenção de causar qualquer mal aos que, de forma justa, ficaram indignados com o nosso ato.

Nesta viagem à Polônia e a Israel, refletimos e festejamos; nos emocionamos, choramos e pulamos de alegria; visitamos lugares da maior tragédia da história judaica recente  e do renascimento de um Estado judeu. Vivenciando nossa história de perto, exploramos com nossos alunos formas de olhar para o futuro comprometidos com nossos valores e com o nosso passado. Frente a um mundo em permanente transição, nossos alunos se preparam para o processo constante de questionar suas antigas certezas, desafiar seus dogmas sem abrir mão de suas identidades, olhar o mundo com novos olhos, sabendo que têm um porto seguro para retornar.

Shabat Shalom!

domingo, 23 de abril de 2017

Entre o Pacto e a Tribo

(artigo originalmente publicado no blog Pinat Brasil)

Há alguns anos, o representante da diretoria voluntária de uma escola judaica mencionou, em seu discurso durante uma cerimônia de formatura, tudo o que ele tinha aprendido na aulas de Cultura e História Judaicas daquela mesma escola, onde ele também tinha estudado. “Está tudo resumido em uma velha piada”, ele disse. “Tentaram nos matar, não conseguiram, agora vamos festejar”. O discurso continuou, endereçando a necessidade de união da comunidade judaica frente às ameaças externas, o perigo do antissemitismo fora dos muros escolares e a necessidade de garantirmos que as próximas gerações fossem educadas dentro do judaísmo.

Para muita gente que escutava o discurso, sua mensagem era certeira: na sua visão, a principal função da educação judaica é garantir que reconheçamos as ameaças à nossa existência e que aprendamos a nos defender e garantir a perpetuação do povo judeu. Para outro segmento não menos representativo, no entanto, o incômodo era claro. Para eles, a educação judaica deve focar nos valores humanistas da nossa tradição, central entre eles a dignidade de todo e qualquer ser humano.

O rabino Sid Schwarz, escrevendo sobre dinâmicas muito semelhantes que acontecem na comunidade judaica norte-americana, chama o primeiro grupo de “judeus tribais” e o segundo grupo de “judeus do pacto”. “Judeus tribais”, escaldados pela seqüência de perseguições contra os judeus, valorizam a proteção física da comunidade judaica; estão preocupados com o “corpo” do judaísmo. “Judeus do pacto” se ocupam com o papel que valores judaicos terão na forma como a comunidade judaica se conduz e como ela trata a proteção aos oprimidos, sejam eles quem forem; eles se preocupam com a “alma” do judaísmo.

Às vésperas de Pessach, chegamos ao terceiro e último feriado da trilogia da piada mencionada: “tentaram nos matar, não conseguiram, vamos comer!” As histórias de Chanucá, Purim e Pessach, lidas sob esta perspectiva, reforçam dimensões de compreensão da experiência histórica judaica que sempre nos enxergam como vítima. Na capacidade de vítimas, nossa responsabilidade se limita à nossa própria (e legítima!) defesa.

É difícil negar que esta seja uma dimensão plausível para a compreensão das narrativas destas três festas judaicas – ela não é, no entanto, a única narrativa possível, nem mesmo a lente através da qual devamos estabelecer a compreensão fundacional da experiência histórica e do calendário judaicos.

Em cada uma destas três festas, valores centrais que se opõem à narrativa da vitimização perene são, frequente e propositalmente, ignorados. Entre outros assuntos possíveis, em Chanucá, deixam de discutir a relação entre o poder hegemônico e as minorias culturais; em Purim não falam dos riscos do abuso de autoridade; em Pessach, deixam de lado a conversa sobre a possibilidade de resistirmos aos faraós do nosso tempo – abordagens que falam da responsabilidade judaica para com o mundo ao mesmo tempo em que discutem as ocasiões em que fomos nós os oprimidos.

O que a visão que privilegia a auto-preservação judaica sobre qualquer outro valor omite é que o paradigma judaico fundamental para a compreensão da nossa própria opressão estabelece a empatia para com os oprimidos em toda parte como a principal lição a ser aprendida destes episódios. כִּי־גֵרִים הֱיִיתֶם בְּאֶרֶץ מִצְרָיִם (“por que vocês foram estrangeiros na terra do Egito”) é uma das poucas frases repetidas múltiplas vezes na Torá, sempre seguindo instruções para que protejamos os estrangeiros na nossa terra.  Na perspectiva da Torá, a experiência judaica como vítimas não nos dá o direito de nos preocuparmos apenas com a nossa própria segurança; ao contrário, ela determina que devemos proteger aqueles que hoje estejam em situação de vulnerabilidade.

A triste verdade, no entanto, é que a fala do diretor voluntário na formatura da escola reflete o pensamento de grande parte da liderança institucional judaica, que não apenas educa dentro de parâmetros unicamente etnocêntricos, mas também deslegitima qualquer visão de mundo alternativa. A falha em reconhecer estas múltiplas perspectivas possíveis de engajamento com a nossa tradição tem feito com que um segmento expressivo da comunidade judaica (especialmente, mas não apenas, a sua juventude) não se sinta representado pelas instituições comunitárias que, por sua vez, não se sentem comprometidas a considerar sua opinião na formulação de políticas e programas. Um ciclo vicioso que vem se desenrolando há muito tempo e que  agora, ao que parece, chega ao seu ápice sem que as questões de fundo sejam, efetivamente, discutidas. “Judeus do pacto” e “judeus da tribo” não se reconhecem mais como pertencendo a uma comunidade na qual compartilhem valores ou uma visão de futuro que tenha espaço para ambos.

Passados os dois sedarim, entraremos no Omer, período de 49 dias que serve de ponte entre Pessach (quando nossos corpos deixaram de estar sob permanente ameaça) e Shavuot (quando recebemos a Torá e, com elas, os valores que devem guiar nossas ações). Tradicionalmente, estes 49 dias são de introspecção, apresentando até mesmo sinais de luto. Podem ser uma ótima oportunidade para esfriar os ânimos e se perguntar como fazer para que a defesa dos corpos dos judeus e a proteção da alma judaica não sejam projetos mutuamente exclusivos!