sábado, 5 de março de 2016

Qual Educação Judaica?

(originalmente publicado no Pinat Brasil)

Há pouco mais de dois anos, o economista Gustavo Ioschpe publicou na sua coluna na revista Veja um artigo em que descrevia seu processo de seleção de escola para seus filhos. O tal artigo se tornou polêmico na comunidade judaica por um parágrafo no qual explicava o porquê de não ter considerado escolas judaicas como alternativas relevantes, apesar de ele e sua esposa serem judeus. Confesso que, na época, eu mesmo usei o tal parágrafo em uma prova para alunos da 3a série do Ensino Médio e me envolvi em um debate com Ioschpe sobre a escolha do veículo para divulgar suas críticas. A verdade, no entanto, é que ao focar em um único parágrafo, as lideranças comunitárias que se dedicam à educação judaica perderam a oportunidade de analisar com mais calma o resto do artigo e a abordagem que propunha para escolha de escola para os nossos filhos. Para mim, a melhor parte do artigo é resumida nestas frases:

“Por isso, minha recomendação principal aos afortunados que podem escolher onde o filho estudará é: prefiram a escola cuja proposta e valores mais se encaixem com aqueles da família. Não existe ‘a melhor’ escola; existe a melhor escola para a demanda daqueles pais. O importante é saber qual o foco principal. É o lado acadêmico? A formação religiosa? É ser bilíngue? É a preparação para a cidadania? O desenvolvimento da criatividade?”[1]

Neste artigo, pretendo dar os primeiros passos para desenvolver uma versão da “abordagem Ioschpe” para educação judaica: um exercício que auxilie as famílias a escolherem o melhor modelo de educação judaica para elas.[2] Assim como Ioschpe, tampouco acredito que exista “o melhor modelo de educação judaica” no abstrato; pelo contrário, acho que cada família tem seus valores e expectativas com relação à educação judaica de seus filhos e o que faz um alternativa ser melhor (ou pior) é sua aderência (ou falta dela) aos valores e expectativas de cada família. A primeira parte do exercício deve ser, portanto, definir o que você espera da educação judaica dos seus filhos e, apenas depois de completada esta tarefa, procurar a solução que mais se aproxime do seu ideal.

Quero também deixar explícita uma hipótese de trabalho: educação judaica não é toda igual. Encontro muita gente que acredita que, pelo menos entre as alternativas ditas “laicas”, “pluralistas” ou “não-ortodoxas”, não existe diferença entre as abordagens de educação judaica. Bastam, no entanto, uma visita e 20 minutos de conversa em qualquer dessas escolas ou tnuot para se dar conta de que esta percepção de uniformidade não se sustenta no confronto com a realidade.

Outras pessoas que conheço colocam seus filhos e filhas em escolas cujas orientações de educação judaica são opostas àquelas em que a família acredita e pratica. “Não tem problema nenhum, ensinamos que em casa nossa prática é diferente da escola”, me dizem alguns deles. No meu caso pessoal, a decisão foi procurar um modelo de educação judaica que refletisse os valores da nossa família, assim não teríamos que “des-ensinar” o que nossos filhos tivessem aprendido na escola. A lista discutida a seguir representa nossa realidade peculiar e não pretende servir de modelo universal.

Visão judaica explicitamente formulada – A definição da visão de qualquer organização implica um profundo processo de análise de quais são suas práticas e valores e, talvez ainda mais importante, que caminhos ela gostaria de trilhar nos próximos anos. Ainda assim, não são raras as instituições de ensino judaicas que acham que clareza em seus posicionamentos serve apenas para afastar as famílias que pensam diferente. Desta forma, tiram das famílias a possibilidade de escolher uma escola cuja visão esteja alinhada com a delas, e tiram dos seus profissionais a capacidade de tomar decisões identificadas com a direção estratégica da escola. Ao perguntar pela visão judaica, separamos as entidades que têm clara direção judaica daquelas que não a têm,  um parâmetro fundamental da nossa escolha;

Celebração da diversidade judaica – Uma famosa passagem talmúdica conta que, depois de duas escolas de pensamento terem passado três anos sem conseguir chegar a um consenso, uma Voz Divina interveio, anunciando: “tanto estas quanto aquelas são as palavras vivas de Deus”[3], um reconhecimento de que a tradição judaica incorpora múltiplas expressões, algumas vezes até antagônicas, como simultaneamente válidas e autênticas. Eu espero uma escola judaica que não apenas “aceite” a diversidade da vida judaica, como também a celebre em todas as suas manifestações. Idealmente, esta diversidade será refletida tanto nos alunos quanto nos seus professores e material didático. Quando visito uma escola judaica ou movimento juvenil, olho os murais para ver se eles incluem manifestações judaicas e se elas trazem múltiplas perspectivas. Eu me preocupo com as imagens que são escolhidas: vidas judaicas em que todos os homens têm barba e usam kipá e nos quais todas as mulheres usam saia e manga comprida não representam a minha realidade (ainda que potencialmente representem a realidade de outras famílias e devam, portanto, estar representadas, desde que não exclusivamente).

Quando o assunto é prática religiosa, fica ainda mais complicado. Como são tratadas as diferenças no papel da mulher entre as diversas correntes judaicas? O que acontece com famílias cujas práticas de kashrut são diferentes daquelas da escola? Quando a escola viaja em estudo do meio ou o movimento juvenil organiza sua machané, cria espaço para alunos com práticas de shabat diferentes da norma social?

Costumo brincar com minha realidade familiar específica: meu avô paterno era um judeu ortodoxo; meu avô materno era um judeu ateu, membro do Bund, o partido secular e socialista judaico da Europa Oriental; e eu sou um rabino liberal. Procuro uma escola para meus filhos em que tanto eu quanto meus dois avós pudéssemos ter estudado, crescido e nos desenvolvido; em que nossas diferenças nos ajudariam a amadurecer do ponto de vista judaico sem ter nossas diferentes perspectivas deslegitimadas.

Dimensões de Identidade Judaica – Em muitas instâncias, a construção da identidade judaica ainda é feita de acordo com aquele comentário que descreve todas as festas judaicas: ‘tentaram nos matar, não conseguiram, agora vamos comer e beber!’ Sem negar os eventos históricos nos quais fomos efetivamente vitimas de perseguições, espero que a educação judaica dos meus filhos também transmita orgulho pelo sucesso da experiência judaica, especialmente nos últimos séculos; que fale do enorme êxito da comunidade judaica brasileira, que desenvolva um senso de responsabilidade em melhorar a sociedade em que vivemos e que desenvolva ações neste sentido.

É fundamental que a educação judaica desenvolva um forte senso de tzedek (justiça) como formulado pelos profetas e que, neste sentido, esteja o tempo todo engajada em construir relacionamentos com o mundo, especialmente com as camadas mais vulneráveis das nossas sociedades. A tradição judaica tem inúmeras ferramentas para esta tarefa, basta que foque nos valores centrais à tradição judaica, não exclusivamente nas suas tradições rituais. Não são raras as vezes que, quando converso com alunos sobre os mandamentos éticos do Judaísmo, eles não conseguem reconhecer estes elementos como judaicos - por que lhes foi ensinado que judaico, judaico mesmo, é acender as velas de Shabat ou jejuar em Iom Kipur. Para mim, este modelo não é aceitável.

Sempre digo que o ensino das festividade judaicas deve englobar uma arco que liga valores a tradições, passando pela narrativa. Não basta focar apenas nos costumes de cada festa ou em sua "historinha" (ou narrativa). Espero que em Pessach, a escola dos meus filhos não ensine apenas o Má Nishtaná ou a história de Moshé, mas fale também sobre Liberdade e sobre quem, ainda hoje, vive em regime semi-escravo; em Rosh haShaná e Iom Kipur, não basta falar sobre o shofar, o jejum ou a criação do mundo, sem encorajar um profundo processo de cheshbon nefesh, a introspecção em que avaliamos nossa ação no ano que termina e decidimos como queremos mudar.

Para mim, educação judaica precisa impactar a forma como vivemos na nossa relação com Deus e com a tradição judaica, mas também na forma como tratamos uns aos outros, a sociedade e o meio-ambiente. Um modelo de educação judaica que não englobe todas estas dimensões, não atende as expectativas que estabeleci para meus filhos.

Currículo e integração[4] – Se acreditamos que as dimensões judaica e laica de nossos filhos devem ser bem integradas, por que aceitaríamos projetos educacionais nos quais os elementos judaicos e laicos raramente conversam? Em que as narrativas das aulas de história judaica e de história geral sejam, freqüentemente, opostas? Pode parecer incrível, mas é isto que ainda encontramos em muitas escolas judaicas... Procuro uma escola para meus filhos na qual a busca por  interdisciplinaridade aconteça o tempo todo, na qual oportunidades de polinização cruzada sejam exploradas: que novas estratégias de leitura desenvolvidas na aulas de Literatura sejam usadas também nas aulas de Tanach; que a modalidade de estudo em hevruta (estudo em pares) seja aproveitada nas aulas de matemática; que o senso de justiça seja constantemente discutido, desenvolvido e aprofundado,  seja nas aulas de Cultura Judaica, seja nas disciplinas de Ciências Humanas.

Não existe escola, sinagoga ou tnuá que atenda a 100% das nossas expectativas como pais; tampouco existe educação judaica que não reflita qualquer viés ideológico e é por isso que a lição de casa dos pais é tão importante. Quanto mais clara for a visão de vida judaica para a qual as famílias querem educar seus filhos, mais fácil será estabelecer prioridades e escolher a entidade parceira para este processo.

Agora é a sua vez. O que é importante para você na educação judaica?








[1]Revista Veja, edição de 19 de fevereiro de 2014. Obtido online de: http://www.institutomillenium.org.br/artigos/como-escolhi-escola-dos-meus-filhos/ em 5/abril/2015.
[2]Falo aqui em “modelo de educação judaica” para incluir, além das escolas judaicas, a educação judaica propiciada pelas sinagogas e pelos movimentos juvenis.
[3]Talmud da Babilônia Eruvin 13b. A tradução mais comum da expressão “divrei Elohim chaim” é “as palavras vivas de Deus”, mas eu prefiro ler o adjetivo chaim (vivos) como relacionando-se às palavras Divinas.
[4]Diferentemente dos outros tópicos, este se aplica mais a escolas judaicas do que a outras formas de educação judaica.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Reaprendendo a discordar com respeito

(originalmente postado no facebook)

Hoje é 9 de Adar que, segundo nossa tradição, é um dia de jejum. Um daqueles jejuns que quase ninguém observa e do qual muito pouca gente ouviu falar. O motivo do jejum é que Beit Hillel e Beit Shamai discordaram.
Houve uma época em que as disputas entre Beit Hillel e Beit Shamai eram tão civilizadas que se tornaram o paradigma de "machloket le'shem shamayim" (discordâncias por um bom propósito). Foi sobre estes debates que a Voz Divina havia afirmado que AMBAS as escolas de pensamento expressavam as palavras vivas de Deus.

Em 9 de Adar, no entanto, as partes estavam tão convencidas de que elas - e apenas elas - tinham toda a verdade, que a disputa tornou-se violenta e levou à morte de 3.000 alunos. Nossa tradição diz que este evento é tão trágico quanto o bezerro de ouro.
Há alguns anos, o Instituto Pardes de Estudos Judaicos em Jerusalém lançou uma campanha para transformar 9 de Adar no "Dia Judaico pelo Conflito Construtivo." A ideia não é que paremos de discordar (afinal de contas, esta é parte do DNA judaico!) mas que o façamos de formava civil, sem ofensas de nenhum tipo. Discutindo ideias, não atacando pessoas.
Infelizmente, perdemos esta capacidade nos grupos em que eu circulo. As disputas políticas no Brasil, nos Estados Unidos e em Israel nunca foram travadas com tantas ofensas pessoais. Também na comunidade judaica, diferenças de opinião têm levado cada vez mais a ataques ao interlocutor, com adjetivos como "kapo", "traidor" e "fascista" sendo jogados de lado a lado.
Eu estou jejuando, mas só jejuar não vai resolver nada. É preciso que nos esforcemos para mudar a cultura do debate e cada um precisa fazer a sua parte.
AQUI VAI UM DESAFIO: ficar até o entardecer sem praticar "lashon ha'rá", ("o idioma do mal"), o discurso destrutivo que corrói nossa convivência em sociedade. ‪#‎9Adar‬


sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Dvar Torá: Parashat Shemot (Templo Beth-El, São Paulo)


Quem aqui já assistiu "Êxodo: Deuses e Reis"? E "Príncipe do Egito"? E "Os Dez Mandamentos"?

Tem alguma coisa especial na história da saída de Bnei Israel, o povo de Israel, de Mitzrayim que faz com que cineastas queiram contá-la tantas vezes. Talvez um bom motivo para este interesse é que, como em todo bom filme de Hollywood, esta história tem excelentes heróis e terríveis vilões. Na sua opinião, quem são os grandes heróis desta história?

Mas o que será que realmente queremos dizer quando dizemos "herói"? Segundo o Aurélio, herói é uma pessoa "extraordinári[a] por seus feitos guerreiros, seu valor ou sua magnanimidade; uma pessoa que por qualquer motivo é centro das atenções; protagonista de uma obra literária. O dicionário Even Shoshan, equivalente em hebraico do Aurélio, adiciona a estas, as seguintes definições para a palavra גבור, herói: חזק ברוחו, אמיץ (com forte espírito, corajoso); דמות שמעריצים אותה ומזדהים איתה (figura admirada e com a qual as pessoas se identificam).

A tradição judaica também tem suas próprias definições para o que é ser um גבור, um herói. Em uma passagem famosa de Pirkei Avot, a Ética dos Pais, que nos desafia a re-pensar alguns dos nossos conceitos, nossos sábios perguntam: 

  • Quem é chacham/sábio? Aquele que aprende de qualquer pessoa. 
  • Quem é ashir/rico? Aquele que está satisfeito com a sua parte.
  • Quem é mechubad/pessoa importante? Aquele que respeita os outros.

E, no que se relaciona diretamente com a nossa pergunta:

  • Quem é guibór/herói? Aquele que conquista as suas paixões.[1]

Se eu pudesse adicionar a esta definição de Pirkei Avot sobre quem é um herói, diria que é "aquele que conquista suas paixões e seus medos". 

Em outra passagem de Pirkei Avot, nossos sábios nos ensinam "בְּמַקוֹם שֶׁאֵין אֲנָשִׁים, הִשְׁתַּדֵּל לִהְיוֹת אִישׁ", "em um lugar em que os outros não são decentes, se esforce para ser decente."  [2] Será que uma pessoa que consegue seguir este padrão de conduta não é um herói também?

Com estas definições em mente, vamos nos perguntar novamente: quem foram os heróis da saída de MitzrayimNormalmente, pensamos em Moshé e em Deus como os grandes heróis desta narrativa, mas quem foram os heróis que permitiram, em suas ações cotidianas, que a libertação acontecesse? Quem foram as pessoas que, sem ter sonhos de mudar todo o mundo, agiram com dignidade em um mundo não digno, mesmo que isso implicasse correr grandes riscos?

Nossa tradição tem uma resposta para esta pergunta... Ela nos ensina que "foi pelos méritos das mulheres justas daquela geração que fomos libertados do Egito". Foram duas mulheres - duas heroínas quase anônimas - as primeiras a desafiar o decreto do Faraó para matar os bebês hebreus do sexo masculino. O texto não deixa claro se estas duas mulheres eram judias ou não - המְיַלְּדֹת הָעִבְרִיֹּת pode significar tanto "as parteiras hebréias" quanto "as parteiras das hebréias," – mas foi a elas que o Faraó direcionou sua ordem genocida. Segundo a Torá, as parteiras temeram a Deus, ignoraram a instrução e deixaram os meninos viver, permitindo que o povo hebreu continuasse crescendo. O primeiro ato de desobediência civil do qual temos notícia, desafiando uma ordem imoral em um mundo em que quase não havia possibilidades de dizer "Não!" ao Faraó. Um ato claro de coragem, controlando seus medos e agindo com decência quando a ordem institucional era para que agissem como monstros, um comportamento que desperta nossa admiração. Verdadeiras heroínas! Heroínas do cotidiano, que transformaram o mundo agindo em sua pequena área de influência: o parto de crianças hebreias. 

Outro caso de heroísmo do cotidiano: Em 2007, um curto-circuito causou um incêndio em uma casa na cidade de Palmeira, em Santa Catarina. Desesperada, a dona da casa saiu à rua gritando por socorro para sua filha de apenas um ano e dez meses que dormia em seu quarto. "Um vizinho que passava pela rua, Riquelme dos Santos, acalmou-a dizendo para não se preocupar pois ele salvaria a criança. Dito isso, entrou na casa em chamas e, momentos depois voltou com a menina nos braços, sã e salva. Sem dúvida um feito heróico por si só, mas ainda mais impressionante pelo fato de que, na época, Riquelme tinha apenas cinco anos de idade e estava vestido como seu herói favorito: o Homem Aranha." [3] 

Mais um caso de incêndio aconteceu com Mark Bezos, Diretor de uma ONG em Nova York, chamada "Robin Hood", que também atua como bombeiro voluntário [4]. Ele conta que a primeira vez que pode enfrentar um incêndio, ele chegou alguns segundos depois do primeiro bombeiro voluntário a chegar no local do fogo. Àquele primeiro bombeiro, o capitão pediu que resgatasse o cachorro da proprietária do imóvel que, desesperada, assistia a sua casa pegar fogo, ainda vestindo camisola e sem sapatos nos pés. Quando chegou a vez de Mark receber sua missão, o capitão lhe pediu que entrasse na casa em chamas e trouxesse.... os chinelos da pobre senhora! Ele conta que, quando voltou com os chinelos em mãos, pôde ver que ele não foi recebido com o mesmo entusiasmo com que ela recebeu o bombeiro que tinha o seu cãozinho nos braços. Mas algumas semanas depois, o batalhão dos bombeiros recebeu uma carta da senhora agradecendo seu esforço e dedicação no combate ao fogo. "Sua atenção foi tanta," ela escreveu, "que alguém até trouxe meus chinelos para que eu não ficasse com os pés no chão". Em uma palestra TED, Mark deu o seu recado: nem sempre podemos ser responsáveis por salvar o cachorro, mas isto não deveria nos impedir de tentar trazer o chinelo!

Nossa definição de heroísmo muitas vezes nos congela e impede de tomarmos qualquer iniciativa. Se nosso modelo de heróis se limitar a Deus, Moshé e o Rei David, é difícil que consigamos nos imaginar liderando os 600.000 hebreus que saíram de Mitzrayim ou derrotando Golias. A parashá desta semana nos ensina que todos nós, cada um de nós, tem potencial para ser um pequeno herói do cotidiano.As mulheres da história do Êxodo nos indicam um outro paradigma de heroísmo, um mais próximo da nossa realidade, mas que pode levar a ações que têm o mesmo potencial de impacto.

Se Shifra e Puá, as parteiras que permitiram que Moshé nascesse; Yoheved, a mãe de Moshé, que teve a coragem de trazê-lo ao mundo; Miriam, sua irmã, que o protegeu enquanto ele navegava as águas do Rio Nilo; a filha do Faraó, que decidiu criá-lo, mesmo com a grande chance de que este fosse um menino hebreu; se cada uma delas imaginasse que para ser uma heroína é preciso querer transformar o mundo todo de uma vez só, nenhuma delas teria agido. E, mesmo assim, o impacto de sua ação foi muito maior do que a vizinhança imediata do seu ato de heroísmo do cotidiano. Mesmo sem querer abraçar o mundo, suas ações contribuíram para que a vida do povo de Israel mudasse radicalmente e estabeleceram um novo paradigma para transformações sociais!

Fica aqui um convite para sonharmos com um mundo melhor com nossas máscaras e fantasias de homens-aranha (ou mesmo sem elas) e sairmos pelo mundo com a coragem e a disposição para chegar lá através de atos de heroísmo do cotidiano.

Quem é o seu herói? E para quem você vai mudar o mundo?

Shabat Shalom


[1] Pirkei Avot 4:1. A ordem das definições foi alterada para ênfase.
[2] Pirkei Avot 2:6 

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Dvar Torá: Parashat Vayerá (Templo Beth-El, São Paulo)

Vocês já tiveram certeza absoluta de alguma coisa? Aquele sentimento de que não há a mínima chance de estarmos errados? Aquela certeza de que dois mais dois são quatro, ou que o Sol vai nascer amanhã de manhã?

Aquela certeza que o mundo medieval tinha de que a Terra era plana, a certeza que Napoleão tinha de que ganharia a guerra contra a Rússia, a certeza que Hitler tinha de que a culpa pela crise alemã era dos judeus.

Mas também a certeza que o Reverendo Martin Luther King Jr. e o Rabino Abraham Joshua Heschel tinham de que a discriminação racial no sul dos Estados Unidos era errada, a certeza que os Partizanim tinham de que o Nazismo precisava ser derrotado, a certeza que temos tantas vezes de que o amor que sentimos no momento durará para sempre.

Qual destas certezas será que Avraham Avinu, nosso patriarca Abrãao, sentiu quando Deus lhe disse: “Avraham, pegue, por favor, teu filho, teu único filho, aquele que você ama, Itzhak, e vá para a terra de Moriá, e o ofereça em sacrifício em uma das montanhas que eu te mostrarei”?

Se Avraham não teve certeza do que fazer, o texto não dá qualquer indício disto. Pelo contrário, cedo na manhã seguinte, ele acordou e, juntamente com Itzhak, se pôs a caminho de Moriá. Como sabemos, a história tem um final feliz, se é que é possível falar em finais felizes quando um pai se mostra disposto a sacrificar seu próprio filho. No último momento, quando Avraham já tinha levantado a faca para o sacrifício, um anjo apareceu e lhe disse: “Não levante a mão contra o menino e não lhe faça nada de mau, pois agora eu sei que você teme a Deus e que não poupou teu filho, teu único, de mim”.

A literatura rabínica, os midrashim e os comentários, mostram tremendo incômodo com o pedido de Deus e com a disposição de Avraham em atendê-lo sem questionar mas, no final, quase sempre encontram uma forma de justificar a atitude. Um dos meus comentaristas contemporâneos favoritos, Avraham Burg, no entanto, é mais explícito em seu desconforto. Ele diz: “Não pode ser que o Judaísmo, que é uma religião da humanidade tanto quanto é uma fé em Deus, considere a disposição serial de Avraham em sacrificar seus dois filhos como se fosse o teste absoluto da fé. Se esta é a fé, não é a minha fé. Se isto é sucesso, permitam-me falhar”[1]. Ele, então, aponta para o fato de que, apesar da grande intimidade entre Deus e Avraham, dos conselhos mútuos que um tomou do outro, das inúmeras vezes em que conversaram, é um anjo, não Deus, cuja voz ouvimos para parar Avraham no último segundo. Para Burg, este é um sinal de que Deus também acha que Avraham falhou ao aceitar sacrificar seu filho sem questionar.

Será que Avraham foi cegado pelas suas certezas? Será que sua fé absoluta de que Deus nunca lhe pediria para fazer algo errado lhe impediu de se dar conta do que estava prestes a fazer?

Quantos de nós não nos deixamos cegar pelas nossas certezas, fechando os olhos para quaisquer questionamentos e, quando nos damos conta, já fizemos coisas das quais pouco nos orgulhamos? Muitas vezes nos colocando em risco e colocando em risco aqueles que amamos – inclusive nossos filhos, como fez Avraham. Outras vezes, colocamos em risco os valores que juramos defender através das nossas certezas.

Meus professores no seminário rabínico enfatizavam um mundo em que faltam certezas, a necessidade de um olhar com ambivalência, que perceba nuances, que trate da nossa carência em reconhecer os dois lados de cada questão. Êta tarefinha difícil, às vezes quase impossível. Em um artigo publicado esta semana no blog do Estadão, Renato Essenfelder escreveu:

Viver em dúvida é uma ideia apavorante para a maioria das pessoas, que, preventivamente, apegam-se a certezas: religiosas, científicas, morais. Mas a vida é mais poesia do que ortodoxia. Acontece nos intervalos das certezas, nas reentrâncias das convicções, nos intervalos do martelo.  Nos buracos de centenas de fechaduras em centenas de portas abertas, semiabertas, fechadas, a vida se desenrola como um filme experimental, sem roteiro, sem legendas, em plano seqüência.[2]

A neurociência explica que nosso cérebro precisa de um pouco de previsibilidade e que usa as informações que consegue capturar do ambiente para fazer predições. Quando estas predições se mostram corretas, há uma sensação de recompensa. Talvez daí venha a explicação química para a aversão que às vezes temos para a incerteza. O problema é que a realidade que nos cerca não corresponde a esta nossa necessidade fisiológica.

Em um trecho bastante famoso do Talmud, nossa tradição reconhece que nem tudo é previsível, que múltiplas e contraditórias verdades podem co-existir:

Por três anos, as escolas de Shamai e Hillel debateram - cada um dizendo que a lei deveria seguir a sua opinião. Então, veio uma voz divina e disse Elu v’Elu divrei Elohim chayim, "tantos estas quanto aquelas são as palavras vivas de Deus" e a lei segue a opinião da Escola de Hillel.[3]

Como as opiniões das escolas de Shamai e Hillel, que não podiam ser conciliadas mesmo depois de serem debatidas por três anos, podem ser simultaneamente as palavras vivas de Deus? Esta história é um convite para que nos dispamos, por um momento que seja, das nossas próprias certezas e tentemos enxergar o mundo através da certeza do outro que, afinal, também pode ser verdadeira.

O texto do Talmud continua:

Por que a Escola de Hillel mereceu determinar a formulação da lei? Por que eles eram gentis e humildes e ensinavam tanto a sua opinião quanto a opinião da Escola de Shamai. Não apenas isto, mas eles até ensinavam a opinião da Escola de Shamai antes da sua própria.[4]

Nossas divergências não podem ser maiores que nossa humanidade. Muito além das ideias que nos separam, estão fatores que nos unem e é fundamental que tenhamos isto sempre em mente. Só isso, já nos fará percorrer o mundo com um pouco mais de ambivalência.

Quem se lembra da cena histórica de Itzhak Rabin apertando as mãos de Yasser Arafat nos jardins da Casa Branca, naquele 13 de setembro de 1993? Arafat estendeu sua mão para cumprimentar Rabin, que considera por alguns segundos antes de fazer o mesmo. Apesar da assinatura do acordo, sua linguagem corporal não dá sinais de certezas, ao contrário, indica um homem dividido, que consegue ver os prós e os contras do processo que ele formalizava.

Pouco mais de dois anos depois, Igal Amir não parecia considerar os dois lados quando decidiu interromper o Processo de Paz assassinando o Primeiro Ministro de Israel. Seus tiros chocaram o país, o povo judeu e o mundo e determinaram a estagnação do processo de paz. Nesta última terça-feira, marcamos o 19o aniversário do assassinato de Itzhak Rabin, uma dolorosa lembrança dos riscos de posições políticas e religiosas que têm espaço apenas para certezas.

Nas palavras do poeta israelense Yehuda Amihai:

Do lugar em que temos razão
jamais crescerão
flores na primavera.

O lugar em que temos razão
está pisoteado e duro
como um pátio.

Mas dúvidas e amores
escavam o mundo
como uma toupeira, como a lavradura.

E um sussurro será ouvido no lugar
onde houve a Casa
que foi destruída.[5]
`
Uma lição que não podia ser mais importante nesta nossa cidade, neste nosso país, tão cheios de certezas sobre nós mesmos e sobre os outros, especialmente como resultado das últimas eleições. O grau de ódio que nos acostumamos a ver diariamente online, nas paredes e nas conversas é de estarrecer. Ainda mais estarrecedor é o fato de que, na grande maioria das vezes, as pessoas percebem apenas o ódio do outro, não reconhecendo quanto do mesmo mal está presente na fala de cada um de nós.

Esta eleição, tão pobre que foi em civilidade política, trouxe à tona nossos lados mais intolerantes, maniqueístas e preconceituosos, e aqui me refiro a pessoas ao longo de todo o espectro político. Deixamos de ouvir a outra verdade, deixamos de reconhecê-la como potencialmente a palavra viva de Deus. Trancamo-nos em um universo em que apenas nossa opinião, nosso candidato e seus eleitores podiam estar certos. Ao final,  saímos todos perdendo, qualquer que tenha sido nosso voto. Assim como Avraham, deixamo-nos cegar pelas nossas certezas e quase matamos a criança no processo.

Parafraseando Burg, “Se esta é a certeza, não é a minha certeza. Se é assim que se atinge o sucesso, permitam-me falhar.” Que os cacos desta eleição nos permitam procurar um tikun, reconhecendo o potencial que existe na visão do outro, talvez ela também uma expressão das divrei Elohim chayim, das palavras vivas de Deus.

Shabat Shalom.






[2]. http://blogs.estadao.com.br/renato-essenfelder/2014/11/03/certezas/
[3]. Talmud Bavli, Eruvin 13b
[4]. Ibid.
[5]. http://poeticia.blogspot.com.br/2010/04/poetas-do-mundo-yehuda-amichai.html Fiz uma pequena alteração no final da tradução (troca de “uma casa que foi destruída” por “a casa que foi destruída”, para manter a possível referência de “הבית” como o Templo de Jerusalém).