sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Dvar Torá: Parashat Ki-Tavô (Comunidade Esh Tamid, São Paulo)

No livro “One people, two worlds”, dois rabinos, um reformista e um ortodoxo, apresentam o resultado de dezoito meses de trocas de email, tentando entender a forma como o outro enxergava o mundo em geral, e sua relação com o Judaísmo em particular.

Em um ponto da longa correspondência, um deles pergunta, “E você – acredita em Deus?”

A resposta não tardou: “Eu senti a presença de Deus em diversos momentos da minha vida: a primeira vez que eu vi a minha filha ou quando estava no alto Monte Nebo na Jordânia com oitenta outros líderes religiosos e podia vermos toda a Terra Prometida.”

Mas estas experiências não eram suficiente, e o primeiro replicou, “você não respondeu a minha pergunta – afinal de contas, você acredita em Deus? Você acredita que Deus deu a Torá a Moises e ao povo judeu no alto do Monte Sinai?”

Acreditar em Deus ou sentir a presença de Deus – duas expressões que parecem dizer a mesma coisa mas podem realmente indicar experiências bastante distintas. A parashá desta semana, entre tantos outros assuntos, trata destas diferentes experiências.

O povo de Israel está no final de sua jornada de 40 anos pelo deserto entre as águas estreitas de Mitzrayim e a Terra Prometida. Moisés congrega todo o povo e lhes anuncia uma mudança na dinâmica do seu relacionamento com Deus:

1Moisés chamou a todo o povo de Israel e lhes disse: Vocês viram tudo que o ETERNO fez diante dos seus olhos, na terra do Egito, ao Faraó, a todos os seus servos e a toda a sua terra; 2as grandes provas que os seus olhos viram, os sinais e aquelas grandes maravilhas. 3Mas até hoje o ETERNO não lhes deu um coração para entender, nem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir. 4Quarenta anos eu lhes fiz andar pelo deserto; a roupa que vocês vestiam não se envelheceu, nem o sapato em seu pé se gastou. 5Vocês não tiveram pão para comer, nem vinho ou bebida forte para beber; para que soubessem que eu sou o ETERNO seu Deus. (Deut. 29:1-5)

Crença em Deus certamente não era uma questão difícil para a geração do deserto. Tendo presenciado a saída do Egito, as dez pragas, a abertura do mar, a revelação no Monte Sinai e todos os demais momentos nos quais Deus se revelou para todo o povo durante os 40 anos da travessia, todo mundo acreditava em Deus. Mas será que eles sentiam a presença de Deus com eles? Em seu curto discurso, Moisés parece indicar que não – ninguém se deu conta de que suas roupas não estragavam e seus sapatos não gastavam. Maná caía dos céus e o povo se alimentava sem que tivesse que trabalhar pelo seu pão. No entanto, eles não tinham ainda o coração para entender, os olhos para ver, nem os ouvidos para ouvir. A presença de Deus, de tão óbvia em todos os momentos da sua vida, passava despercebida.

A experiência da nossa geração tem muito pouco em comum com aquela da geração do deserto. Os milagres, tão comuns naquela época, deixaram de fazer parte da nossa vida cotidiana. O homem tem procurado se tornar um novo deus, domando a natureza e envergando a ciência até que esta lhe entregue o pleno controle sobre o universo. Ao longo deste processo, perdemos a ingenuidade que tínhamos com relação ao mundo à nossa volta.

O Rabino Avraham Yehoshua Heschel, um dos principais teólogos judeus do século XX, defendia que uma das principais características de uma pessoa religiosa era sua capacidade de manter os olhos abertos para se maravilhar com a presença de Deus no mundo. “Radical amazement”, uma forma radical de se deixar surpreender e maravilhar, foi o nome que ele deu a este conceito.

Ser maravilhado ou radicalmente surpreendido é a principal característica da atitude da pessoa religiosa com relação à história e à natureza. Assumir que as coisas são como elas são e que os eventos seguem o curso natural da história são atitudes estranhas ao seu espírito. Encontrar uma causa aproximada para um fenômeno não dá resposta à sua sensação de estar maravilhado. Ele sabe que há leis que regulam os processos naturais; ele está consciente da regularidade e padrão das coisas. No entanto, este conhecimento não diminui seu senso de surpresa permanente frente ao fato de que este fatos ocorrem. Olhando para o mundo, ele diria, “Esta é uma criação de Deus, é maravilhoso aos seus olhos.” (Salmos 118:23)

Mas o próprio Heschel reconhecia que a para a maioria das pessoas é bastante difícil se maravilhar com coisas que nos são familiares. Como a geração do deserto, que não dava atenção à presença de Deus e vivia sonhando com o leite e o mel da terra prometida, em nossa ânsia por dominar o mundo e obter a satisfação que ainda não temos, acabamos perdendo de vista aquilo que está ao nosso redor.

No verão do ano passado, eu fiz um estágio como capelão em um dos grandes hospitais de Boston. Uma noite, quando eu estava de plantão, eu fui bipado por uma senhora que estava esperando para fazer um transplante de pulmão. O hospital a tinha chamado no meio da noite, com a notícia de que havia um doador, e ela veio com o marido, os filhos e os pais o mais rápido que pode. Quando eu entrei no seu quarto, ela me pediu uma benção. Eu lhe disse que lhe daria uma benção, mas que ela seria apenas um pálido reflexo das bênçãos que estavam à sua volta, sendo quase possível tocá-las. “Você recebeu uma segunda chance na vida: as pessoas que você mais ama estão ao redor desta cama. Não tem nada que eu possa lhe dizer que possa ser tão valioso quanto a realidade que você está vivendo agora.” “Lindo, lindo”, ela me disse, “agora, você pode me dar a minha benção?”

Na busca pelo que não temos, fechamos os nossos olhos para o fluxo constante de bênçãos e de manifestações da presença de Deus. Na busca incessante de explicações para o mundo, esquecemos de nos maravilhar com o seu funcionamento. Newton nunca teria deduzido a lei da gravidade se não tivesse se maravilhado com o maçã que caiu da árvore. Subimos aos picos mais altos, mas ao invés de nos deliciarmos com a vista e com o ar puro, ficamos obcecados e capturar em nossas máquinas digitais a prova mais contundente de que estivemos ali.

Nas palavras de Heschel,

A humanidade não vai perecer for falta de informação; mas sim por falta de apreciação. O começo da nossa felicidade passa por entender que uma vida sem o senso de estar maravilhado não vale a pena ser vivida. O que nos falta não é a falta de disposição para acreditar, mas a falta de disposição para nos maravilhar.

[Abraham Joshua Heschel, “God in Search of Man: a Philosophy of Judaism”, pp. 43-46.]

Que neste Shabat possamos todos abrir nossos olhos e nossos corações e nos maravilhar com as formas incríveis como Deus se revela no mundo que nos cerca.

Shabat Shalom e Shaná Tová!

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Dvar Torá: Parashat Ki-Tetzei (Templo Beth-El, São Paulo)

A piada é velha e até batida, mas parece refletir um sentimento de boa parte da comunidade judaica paulista.
Após um naufrágio, Moishe vai parar sozinho em uma ilha deserta. Depois de três anos, finalmente, ele é encontrado por um grupo de resgate. Seu amigo Avrum fica impressionado com a infra-estrutura que Moishe tinha construído sozinho. Desalinização da água do mar, irrigação da plantação, uma residência de quatro cômodos, incluindo um banheiro com água corrente e tratamento de esgoto, captação de energia solar. Moishe realmente vivia com conforto nesta ilha deserta! Avrum só não entendeu os dois edifícios separados da residência, ambos parecendo uma sinagoga. “Pra que é aquilo?”, ele perguntou.
“Ora Avrum, aquelas são as duas sinagogas da ilha”.
“E se você está aqui sozinho, pra que precisa de duas sinagogas?”
“Avrum.... é simples: naquela eu vou rezar três vezes por dia. E naquela eu não piso de forma alguma!”

Sendo aluno de um seminário rabínico liberal, eu já perdi a conta do número de vezes em que escutei reações similares à que Moishe teve em relação à segunda sinagoga na ilha. A mais recente delas ainda está marcada na memória:
Fazia apenas algumas semanas que eu tinha começado meus programa na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde estudei no primeiro semestre desta ano, como parte do programa de formação rabínica que eu curso em Boston. Eu tinha ido à secretaria da universidade, tentar pagar minha mensalidade. Lá encontrei outro brasileiro na fila, também com kipá na cabeça, e não demorou para começarmos uma conversa. Tudo ia muito bem, até eu lhe contar que meus estudos em Israel eram parte do meu programa em um seminário rabínico liberal.
Pronto.... terminaram-se as amenidades e meu interlocutor logo lançou um “não leve a mal, mas eu sempre quis entender quem autorizou os reformistas a adotarem mudanças na forma judaica de ser. Afinal de contas, está escrito na Torá: “Você não deve adicionar nada nem tirar nada do que eu te comando, mas apenas manter os mandamentos de Adonai, seu Deus, que eu te ordeno.” (Deut 4:2)
Em um aspecto eu preciso concordar que ele tinha razão: é isso que a Torá nos ordena na parashá de Va’etchanan, que nós lemos nas sinagogas há algumas semanas. No entanto, depois de cinco anos no seminário rabínico, está claro para mim que a questão é bem mais complicada do que a forma como este colega brasileiro a apresentava.
Eu tentei argumentar que diferentes interpretações não são um fenômeno recente no Judaísmo: pegue por exemplo a questão das comidas permitidas em Pesach, qual é o certo – fazer como os ashkenazim e proibir o arroz ou fazer como os sefaradim e permiti-lo? Meu colega brasileiro, no entanto, não abria mão de sua concepção de um judaísmo monolítico, em que as respostas são absolutas e não existe espaço para a divergência ou para o pluralismo.
Do ponto de vista histórico, nada podia ser mais diferente da realidade. O judaísmo que praticamos hoje, resultado do projeto rabínico que seguiu a destruição do segundo templo, foi refinado ao longo dos séculos através dos debates entre diversas seitas judaicas. O curioso é que nestas disputas eram os rabinos que defendiam a possibilidade de interpretação do texto, a construção de uma parceria na qual Deus nos dá a Torá, mas nós temos autonomia para decidir como lê-la. Não deixa de ser irônico que hoje, no debate com o judaísmo liberal, esta possibilidade de interpretação do texto seja negada justamente em defesa do judaísmo rabínico.
Parênteses: toda generalização é por definição injusta. Intransigência e falta de abertura a pontos de vista diferentes são encontrados em toda parte, inclusive mundo judaico – eles não são exclusividade da ortodoxia. Da mesma forma, eu sou às vezes surpreendido por inesperada flexibilidade e verdadeira curiosidade pelos meus pontos de vista, vindos de segmentos dos quais eu não esperava tal abertura. Só pra dar um exemplo que sirva de contraponto a este colega da Universidade Hebraica, eu queria citar o professor de sofrut, a arte milenar da caligrafia judaica, com quem a minha esposa estudou em Jerusalém. Judeu chasídico, daqueles de barbas longas e capotão preto, ele não se nega a dar aula para mulheres – lhes ensina as leis sobre quais textos são permitidos e quais são proibidos para mulheres calígrafas e confia no bom senso e julgamento de suas alunas para tomares suas próprias decisões. Como eu disse, exemplo de que ortodoxia judaica não é sinônimo de intolerância. Fim do parentêses.
Onde estaríamos sem a possibilidade de interpretar o que está escrito na Torá? Será que nossa vida teria algo a ver com a o que conhecemos hoje como uma vida judaica? O autor A. J. Jacobs experimentou passar um ano vivendo estritamente de acordo com as regras da Bíblia, interpretadas literalmente. O resultado é detalhado no livro “Um ano de vida bíblica” em que ele explica como teve que lidar com conceitos tais como “olho por olho, dente por dente”, ou as leis sobre os sacrifícios animais. A verdade é que a vida que ele levou neste ano lembra muito pouco a vida judaica que conhecemos hoje exatamente por que os rabinos nos permitiram interpretar radicalmente o que estava escrito na Bíblia!
Nossa parashá desta semana traz um exemplo desta interpretação radical. No capítulo 21 de Deuteronômio, encontramos a seguinte passagem, bastante gráfica:
Se uma pessoa tiver um filho rebelde e desobediente, que não respeita seu pai ou sua mãe e não os obedece mesmo após ser punido, seus pais devem trazê-lo aos anciões da cidade, no lugar público da comunidade. Eles devem dizer aos anciões, “Este nosso filho é rebelde e desobediente; ele não nos respeita. Ele é um glutão e um alcoólatra.” Em seguida, as pessoas da cidade devem apedrejá-lo até a morte. Desta forma, você removerá o mal do seu meio, e todos as pessoas em Israel escutarão e terão medo (Deut. 21:18-21)
Eu não sei quanto a vocês, mas esta passagem me dá calafrios toda vez que eu a leio. Especialmente quando os jornais estão repletos de comentários sobre a condenação da iraniana Sakineh Mohamadi à morte por apedrejamento devido a um suposto caso extra-conjugal, é difícil para mim acreditar que encontramos uma lei semelhante no livro que chamamos “nossa árvore da vida.” E no entanto, lá está a tal lei.
A boa notícia é que nós não somos a primeira geração de judeus incomodados com este texto. A Mishná e a Tosefta, dois dos primeiros textos escritos pelos rabinos em Israel ao redor do ano 200 da Era Comum, reinterpretam este texto radicalmente.
A Mishná, em um estilo bastante comum na literatura rabínica, estabelece tantos requisitos técnicos para aplicação da lei que, na prática, a inviabiliza. Entre os muito requisitos, estão o filho tem ser homem, estar em uma faixa etária muito específica, ter manifestado sua gula roubando comida de seus pais e comendo em outro local, e seus pais não serem cegos, surdos, mancos ou mudos. Além disso, seu pai e sua mãe tem que concordar com a punição. (M Sanhedrin cap. 8)
A intenção é clara: nunca tantas condições serão satisfeitas simultaneamente; e nunca um filho será apedrejado por ser rebelde e desobediente.
A Tosefta, escrita mais ou menos na mesma época que Mishná, ao redor do ano 200, é ainda mais radical na sua leitura deste trecho da Torá. Olha só, e aqui eu cito diretamente da Tosefta:
Nunca houve e nunca haverá um filho rebelde e desobediente. Então por que foi escrito? Para ensinar: interprete e receba a recompensa! (T Sanhedrin 11:6)
Eu sinceramente não posso imaginar uma forma mais clara através da qual os rabinos nos tivessem instruído que a Torá não é para ser lida de uma forma literal! A forma como a Torá se transforma em nossa árvore da vida é através do nosso engajamento com o texto – adotando-o não como um monólogo no qual Deus nos dá instruções precisas de como agir, mas como um diálogo iniciado por Deus, muitas vezes através de afirmações provocativas, mas no qual nós também temos o direito e o dever de participar. Todo provocador, e eu tenho que confessar que sou um, só tem prazer quando nosso parceiro na discussão reage às nossas provocações. Não tem graça nenhuma quando nossas provocações não levam a um aprofundamento do debate. Esta é a mensagem que os rabinos nos mandaram 1800 anos atrás e da qual tantas vezes nos esquecemos.
Em menos de 3 semanas, nós estaremos celebrando as Grandes Festas. Eu te convido para, neste tempo que nos resta até o começo do novo ano, refletir sobre as formas como você tem se engajado neste diálogo com Deus através das tradições judaicas e o que você gostaria de mudar para o ano que vem.
Le Shaná tová tikatêvu.
Que cada um de nós tenha seu nome seja inscrito no livro das vidas que valem a pena ser vividas.
Shabat Shalom.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Dvar Torá: Parashat Balak (Templo Beth-El, São Paulo)

Pergunte a uma criança de dez anos sobre as histórias de Adão e Eva; Noé colocando os animais na arca; Jacó e o sonho dos anjos na escada; ou das dez pragas no Egito e boas são as chances de que ela terá escutado sobre algumas delas. Agora, tente perguntar sobre histórias do livro de baMidbar, Números, como a dos espiões visitando a Terra de Israel e voltando com notícias sobre gigantes habitando a terra; Korach se rebelando contra Moisés e sendo engolido pelo deserto; ou sobre a doença de Miriam e sua cura após a intervenção de Moisés e as chances de que a tal criança de dez anos saiba sobre o que você está falando serão bem menores. As histórias do livro de Gênesis e da primeira metade de Êxodos entraram para a cultura popular de uma forma com que outras histórias da bíblia podem apenas sonhar, mas a verdade é que as narrativas do livro de BaMidbar são igualmente fascinantes, ainda que tenham uma temática mais adulta.

Só pra recordar: o livro de BaMidbar conta a história dos quarenta anos dos Israelitas no deserto. Uma viagem que era planejada para durar bem menos tempo e ao longo da qual Miriam, Aaron e toda uma geração de Israelitas pereceram. A parashá dessa semana, Balak, acontece ao final da jornada, quando a tão sonhada entrada em Israel já pode ser vislumbrada. E falando em histórias interessantes no livro de BaMidbar, aqui encontramos material que interessaria a qualquer roteirista da Disney...


Tudo começa quando Balak, o rei de Moab, com medo que os Israelitas atacassem o seu povo a caminho de Israel, decide pedir a um mágico local, Bala'am, que intercedesse a seu favor junto aos poderes divinos. O interessante é que Bala’am, apesar de não pertencer ao povo de Israel, também reza para Adonai. Inicialmente, Bala’am não responde aos apelos do rei Balak e lhe informa que Deus não lhe permitiu que ele rogasse uma praga sobre Israel. Mas, frente à insistência do rei, ele volta a interceder junto a Deus, e desta vez ele recebe autorização para agir como lhe parecesse apropriado.


Bala’am segue, então, para Moab, montado em seu jumento. Em determinado ponto de viagem, o jumento empaca e Bala’am o castiga, para que continue a viagem. O que o jumento vê, mas Bala’am não, é que um anjo segurando uma espada bloqueia a passagem. Outras duas vezes Bala’am tenta prosseguir mas o jumento se recusa e é castigado por isso. Finalmente, o jumento começa a falar e diz a Bala’am: “por que você está me batendo? Eu estou te levando o dia inteiro nas costas e tenho te servido lealmente.” Deus finalmente permite que Bala’am veja o anjo que estava bloqueando a passagem e lhe instrui para continuar seu caminho em direção a Moab, mas para dizer apenas as palavras que Deus irá lhe indicar.


Quando Bala’am chega a Moab, por três vezes Balak oferece sacrifícios a Deus e pede que Bala’am rogue pragas sobre Israel, e em todas as vezes Bala’am acaba proferindo palavras de louvor e benção sobre o acampamento Israelita. A segunda dessas bençãos, inclui os versos מה טובו אוהליך יעקוב, משכנותיך ישראל “que lindas são as tuas tendas, Yaakov, suas moradias, Israel”, que o Marcio tão lindamente cantou no começo do nosso serviço. Na literatura rabínica, esses versos foram interpretados como referindo-se às sinagogas e outros edifícios comunitários judaicos. Vejam só que coincidência que nós os leiamos hoje aqui, quando este prédio se prepara para abrigar em breve o Museu Judaico de São Paulo!


Mas se a história de Balak e Bala’am, com direito a jumento falante e tudo certamente teria seu charme se transformada em um desenho da Disney, ela apresenta também várias dificuldades de interpretação que não passaram despercebidas aos olhos minuciosos dos nossos rabinos.


Maimônides, o médico e filósofo judeu que viveu na Espanha no século 12, achava difícil acreditar no jumento falante que podia ver o que o mágico Bala’am não conseguia. Adepto de um racionalismo extremo na interpretação da Torá, Maimônides propôs que o episódio na verdade se passou em um sonho de Bala’am, no qual ele recebeu a mensagem de Deus. Essa tese teve pouca aceitação, mesmo por que o texto é bastante claro em indicar como Bala’am ficou chocado quando seu jumento começou a falar. Uma explicação alternativa que ganhou mais adeptos é que o jumento de Bala’am foi criando junto com uma série de instrumentos mágicos que desafiam as leis da natureza, nos últimos minutos antes do primeiro Shabat, quando Deus estava terminado de criar o mundo. Imaginem como a Disney não poderia apresentar este momento mágico do final da criação!


Talvez mais complicado para explicar seja a identidade de Bala’am. Claramente, ele é alguém com um relacionamento especial com Deus, mas será que podemos chamá-lo de profeta? Um midrash0 aposta que sim, indicando que Bala'am seria um profeta comparável até mesmo a Moisés. Maimônides, o mesmo que tentou explicar o jumento falante, também considerava Bala’am um profeta, mas não da mesma estatura que Moisés.


Outros autores expressaram pontos de vista radicalmente diferentes. Martin Buber, um renomado filósofo austríaco que emigrou para Israel em 1938, afirma que os profetas nunca anunciam o que acontecerá amanhã, eles descrevem uma realidade corrente que exige reparos e ajudam as pessoas a corrigirem os seus atos. De acordo com Buber, Bala’am, não tinha interesse em ajudar as pessoas a se corrigirem – ele foi apenas um porta-voz das palavras que Deus lhe instruiu. Robert Alter, um professor da Universidade de Berkeley, concorda com Buber e nota a ironia de que Bala’am era um vidente que via menos que seu jumento, alguém que prometia manipular Deus mas que acabou manipulado a abençoar o acampamento israelita contra sua vontade.


Meu professor na Universidade Hebraica de Jerusalém, o filósofo Moshe Halbertal, discute diferentes formas de entender o mundo e a nossa relação com Deus. No Judaísmo rabínico, nós tentamos convencer Deus, através dos nossos atos e rezas, mas a decisão final é de Deus. Uma outra abordagem coloca Deus em uma equação cartesiana: se nós soubermos compreender as regras que regem Deus, basta dizer as palavras certas e misturar os ingredientes nas proporções indicadas para que controlemos o resultado da ação divina. Esta ligação direta entre atos mágicos e resultados na nossa realidade caracteriza a cultura pagã. Essa era a lógica dentro da qual Bala’am operava mas as ironias do texto indicadas por Alter indicam que essa não é a lógica que rege as nossas vidas.


Mas será que às vezes nós não gostaríamos que o mundo fosse regido um pouco mais por essa lógica pagã?! Quantas vezes nós não tentamos solucionar nossos problemas de forma mágica, acreditando que podemos tirar vantagem do sistema para nosso próprio proveito? Em um dia de jogo da seleção, provavelmente não é totalmente inapropriado citar o ex-jogador Gerson e a lei que ficou famosa sob o seu nome, “brasileiro quer sempre levar vantagem, certo?” Furar a fila do banco, parar em local proibido, colar na prova parecem atitudes inofensivas mas são reflexo de uma postura que, assim como a de Bala’am, acredita que não existem limites para nossas ações.


A história de Bala’am indica que quando agimos desta forma, corremos o risco de perder nossa capacidade de perceber o que está acontecendo à nossa volta. O vidente que via menos que o jumento e quase foi atacado pelo anjo da morte nos ensina que manipulações do sistema vêm a um alto custo. Quando nossas pequenas infrações da norma social se tornam tão cotidianas que nem mesmo as percebemos, muito mais do que o tempo que podemos perder na fila do banco está em risco.


Nas próximas semanas, conforme nos aproximamos do final da Copa, a vontade de que pudéssemos manipular a realidade e garantir a conquista do hexa será ainda mais forte - mas pense bem: qual seria a graça de ser campeão se os resultados não tivessem sido conquistados através do esforço da equipe dentro de campo? Da mesma forma, fora do campo de futebol, resultados que conquistamos através do nosso esforço são bem mais valiosos.


Ainda faltam dois meses e meio para as grandes festas, quando tradicionalmente avaliamos nossa conduta e tentamos corrigí-la. Quem sabe, nesse ano a gente não começa mais cedo e chega em Yom Kipur com uma carga bem mais leve nas costas?


Shabat Shalom!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Dvar Torah: questioning the passive acceptance of God’s words (final paper for Shemot class))


Many, many years ago, well before Rabbinical school became a possibility, I went to Shabbat services at Beit Daniel in Tel Aviv. Rabbi Dan Pratt - then, the synagogue’s rabbinical intern - had been assigned to deliver his first sermon, on Parashat Korach. As you probably remember, in that parashah, Korach leads a rebellion against Moshe’s authority and, as a punishment, God makes the desert swallow Korach and his household. Dan approached the bimah and, reluctantly, told us about his discomfort with the fact that davka in the first time that he would address that community for a dvar-torah, it would be to say that in his opinion God was wrong in the way God punished Korach. The thought that anyone - not to say someone who was becoming a rabbi - could say that God was wrong challenged my way of understanding the biblical text, my relationship with tradition, and ultimately, my conception of God. Today, in this dvar-torah, I acknowledge my debt to Rabbi Pratt.

Parashat Boh (Ex. 10:1-13:16) contains some of the most famous episodes of the Torah: the last three plagues, including the death of the first-borns, instructions regarding the annual celebration of Passover, and eventually the release from Mitzrayim. The importance of this parashah can also be apprehended by the fact that Rashi, in his famous commentary on Bereshit 1:1, contemplated the idea that the Torah should have began on Exodus 12:1 “הַחֹדֶשׁ הַזֶּה לָכֶם, רֹאשׁ חֳדָשִׁים”, when the first mitzvah is commanded to the Israelites[i].

This parashah is also remarkable due to the fact that it has raised challenging theological questions, especially regarding free will and the hardening of Pharaoh’s heart and the killing of all the first-borns in Mitzrayim, including slaves and animals. These two issues have, for many Jewish families, led to interesting (and, sometimes, passionate) discussions on Passover seders, when the story of Israelite suffering in, and release from, Mitzrayim is annually retold. 

A third complex issue has not received the same popular attention, though; in most cases it is neither part of the Haggadah nor of religious schools’ curricula. In Shemot 11:2-3a, we read:[ii]

בדַּבֶּר-נָא, בְּאָזְנֵי הָעָם וְיִשְׁאֲלוּ אִישׁ מֵאֵת רֵעֵהוּ וְאִשָּׁה מֵאֵת רְעוּתָהּ כְּלֵי-כֶסֶף וּכְלֵי זָהָב. גוַיִּתֵּן יְהוָה אֶת-חֵן הָעָם בְּעֵינֵי מִצְרָיִם

Ex. 112“Please, speak in the ears of the people to borrow, each man from his fellow man and each woman from her fellow woman, objects of silver and gold.” 3aAnd Adonai disposed Mitzrayim favorably toward the people.

This theme had already been introduced at the beginning of the book of Shemot (3:21-22), when God told Moshe what would happen in the future, and is revisited later, still in Parashat Boh, when the Israelites follow the instructions God had given to Moshe (12:35036).

Traditional commentators have dealt with the difficulties posed by these three passages. How could the Israelites borrow valuable objects from the Miztreem when they intended to leave Mitzrayim and never again come back to return the objects? How fair would be to ask something knowing that God had predisposed the Mitzreem to receive their request favorably? Many mefarshim, facing hostile environments in which these verses had been used to attack the honesty of the Jews, had to justify the behavior of the Israelites in the Biblical text. Rashbam wrote that the Israelites had asked to borrow the artifacts, but the Mitzreem gave them the best of their clothes and jewelry as gifts[iii]. His grandfather, Rashi, described an even more incredible scene: the Mitzreem would give more that they were asked for, “one you say?! take two!”[iv] Ibn Ezra, directly attacked those questioning the honesty of the Israelites, arguing that they were following God’s orders, which should never be questioned. “God created everything and can take it from one and give it to another. There is nothing wrong in this, for everything belongs to God.”[v]

While these commentators certainly add color and flavor to the events preceding the Israelites’ redemption from Mitzrayim, they tend to justify the text more than struggle with it, and by doing so, fail to address some major theological issues: Why did God instruct the Israelites to request these artifacts from the Mitzreem? If the Mitzreem were not forced to do something they did not want to do, why did God asked Moshe to discreetly talk to the Israelites (“Daber na be-oznei ha-am”)? And, if God could dispose the Mitzreem favorably toward the Israelite, why not dispose Pharaoh favorably also, avoiding all the destruction and death caused to innocents?

Some modern commentators have addressed these challenges, at least partially. Nehama Leibowitz[vi] argued that it would have been understandable if the Israelites, after four hundred years of slavery, had taken the initiative for demanding artifacts from the Mitzreem, either as a compensation for their labor or as gifts. But the fact that God had instructed them to do so, revealing a premeditated Divine plan, is the source of our discomfort. Could God have instructed the Israelites to do something ethically dubious? 

Benno Jacob[vii], a German commentator who lived in the first half of the 20th centtury, argued that the Israelites never had the intention of misleading the Mitzreem[viii] and that the punishment of Mitzrayim was intended to teach both Mitzreem and Israelites not to oppress the stranger. Furthermore, the gold, silver and clothes were farewell gifts given by the Mitzreem to the Israelites before the tenth plague, not because of fear of an impending death, but out of sympathy with the Israelite suffering. Benno Jacob argues that the gifts should be understood as a public protest against Pharaoh’s actions, showing how the receptive hearts of the Mitzreem were contrasted to the Pharaoh’s hardened heart. The people remembered Joseph’s actions and were impressed by God’s power through the plagues. When God asked Moshe to instruct the Israelites to approach the Mitzreem (Ex. 11:2), the use of the word “na” in God’s instruction indicates God’s concern that the Israelites would feel so triumphant after the killing of the first-borns that they might reject the farewell gift offered by the Mitzreem. God wanted to ensure that the Israelites and Ha-Am Ha-Mitzri ended the episode in good terms, despite the dispute with Pharaoh. 

A similar reading was proposed by Yehuda Radday[ix], a Bible scholar from the Technion, who was even more direct on his question, “How could God have commanded them to do what was not only far from perfect but prima facie immoral?” He notes that if the articles of silver and gold were meant to be wages for the Israelites’ work, they should have been demanded publicly and not a few hours before the Israelites left. His alternative interpretation is that the text includes several hints of a mutual relationship between the Israelites and the Mitzreem[x] that led to an exchange of gifts at the time of departure. All God had asked from the Israelites was to accept the offer, to help the Mitzreem expiate their blame and shame and, thus, to save their land.

While I have a deep appreciation for the several ways Leibowitz, Jacob and Radday helped me get a better comprehension of this episode, I would like to propose an alternative reading. Just like Rabbi Pratt and his opposition to the way God dealt with Korach, I also disagree with God’s instruction to the Israelites. I believe Israel had a moral imperative of rejecting God’s command. Differently from Ibn Ezra, I think it is our religious duty to question God’s commandments, a duty that derives from our creation be-tzelem Elohim, with free will and the capacity to distinguish between right and wrong. God did not create automatons who blindly follow orders, but human beings who should be held accountable for their actions even when following instructions. 

We, Jews, are called Bnei-Israel, the children of the one who struggled with Elohim, an indication that Judaism is not about accepting all of God’s instructions without questioning them first. At least two of the leading figures of our tradition dared to challenge God: Avraham on behalf of Sodom and Gomorrah, and Moshe on behalf of the Israelites after the golden calf incident. Interestingly, though, when God asks Moshe to instruct the Israelites (Ex. 11:2), the people are not called Bnei-Israel, but ha-am (the people). As a test to the people, God softly requested them to spoil Mitzrayim – and Bnei-Israel[xi] failed the test. After the plague of darkness afflicted Mitzrayim, a moral darkness fell over Israel, and the people put their anger towards the Mitzreem above their obligation to act ethically, stripping Mitzrayim from valuable objects. 

Radday has noted that there are only four times in the entire Tanakh when God uses the particle “na” when addressing human beings: (1) when Avraham and Lot departed ways (Gen. 13:14)), (2) when Avraham complained that he was growing old and still did not have a son (Gen. 15:5); (3) when God instructed the Akedah (Gen. 22:2); and (4) when God instructed the Israelites to spoil Mitzraym (Ex. 11:2) – all episodes in which God requests tasks that cannot be fully understood rationally. The akedah, especially, has been often understood as a test for Avraham; one that commentators have not agreed whether he passed or not. The use of the same language in our passage corroborates the reading of this episode as God testing the Israelites.

Nahum Sarna suggests that the articles of silver and gold the Israelites received from the Mitzreem were probably used in the building of the golden calf. The implied message of one misdeed leading to another can hardly be overlooked and should be read as the biblical condemnation of the Israelites’ acts on plundering Mitzrayim. The Israelites certainly deserved being recompensed for the years of labor in Mitzrayim, but they did not have the right to act deceitfully to achieve that goal. Instead of openly demanding reparation from Pharaoh, they decided to take the short cut, accepting God’s offer to soften the heart of the Mitzreem while the Israelites “borrowed” their most valuable articles. Instead of establishing a new paradigm for the proper treatment of foreign workers in Biblical times, the Israelites’ attitude forever stained the Jewish people’s foundational narrative.

As the dvar-Torah I heard from Rabbi Dan Pratt years ago, Parashat Boh  teaches me not to settle for the plain meaning of God’s words. 

It is not easy, but being part of Bnei-Israel, the people that wrestles with God, requires sometimes even saying “No!” to God. It might be regarding the proper treatment of a rebellious son, of same-sex relationships, or of a patriarchal model that denies women their fair share in familial and communal leadership. The issues might be different for each one of us, but the claim of an ideological position as being the word of God - even when there are Scriptural foundations for that claim - should not imply a bypass of moral and ethical considerations. After having eaten from the fruit of the knowledge of good and evil, we don’t have any alternative but to make judgement calls on issues that are relevant to our hearts, and to consider not only what God demands, but also where good and evil are.

I want to encourage you to see Tanakh in a different way: what if, instead of being the book of all answers, it became God’s opening speech in a conversation we also have a saying? I now see our texts as inviting my questions, challenging me to engage in the dialogue and I invite you to try doing the same. Our parashah hints on asking as an important paradigm for living, when it tells of the child who asks “What do you mean by this rite?” (Ex. 12:26) - the rabbis labeled this as the wicked child, but the Torah is actually very compassionate in the answer this child receives. Let’s take asking from the Haggadah and from the seder into the world.

May we all be blessed with the wisdom, compassion and sense of justice to pass all of God’s tests, even when it requires taking bold theological stances.



[i]        . While commandments had been given before to the patriarchs (e.g. brit-milah  to Avraham), this is the first time that the whole community of Israel is addressed, as indicated by the plural form of “chodesh ha-zeh lachem”in Ex. 12:2.

[ii]       . My own translation.

[iii]      . Rashbam on Ex. 12:36. 

[iv]       . Rashi on Ex. 13:36.

[v]        . Ibn Ezra on Ex. 3:22.

[vi]       . Leibowitz, Nehama. Studies in Shemot (Exodus): Part I Shemot-Ytro (Translated and adapted from Hebrew by Aryeh Newman), Jerusalem: The World Zionist Organization, Department for Torah Education and Culture in the Diaspora, 1983, pp. 183-192.

[vii]      . Jacob, Benno. The Second Book of the Bible: Exodus (Translated with an introduction by Walter Jacob), Hoboken, NJ: Ktav Publishing, 1992, pp. 337-346.

[viii]     . A discussion resulting from the reading of “vaysh’alu” as “borrowing” the artifacts instead of “asking” them permanently.

[ix]      . Radday, Yehuda. "The Spoils of Egypt." Annual of Swedish Theological Institute XII, 1983, pp. 127-147.

[x]       . E.g. the reflectiveness implied on 11:2, “אִישׁ מֵאֵת רֵעֵהוּ וְאִשָּׁה מֵאֵת רְעוּתָהּ ” (“each man from his fellow man and each woman from her fellow woman”), and the particle “even” in the second part of verse 11:3, “גַּם הָאִישׁ מֹשֶׁה גָּדוֹל מְאֹד בְּאֶרֶץ מִצְרַיִם בְּעֵינֵי עַבְדֵי-פַרְעֹה, וּבְעֵינֵי הָעָם”(“even Moshe was deeply esteemed in Mitzrayim among Pharaoh’s courtiers and among the people”)

[xi]      . On Ex. 12:35, when the action is actually performed, the people is referred to “בני ישראל”.