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sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Unidos pela dissidência

Eu conheço algumas pessoas que, depois de terem passado décadas juntas, acabam morrendo com meses, às vezes dias, de diferença. Algumas vezes, eram casais; em outras, eram irmãos ou melhores amigos. A intimidade da convivência contínua fez com que a vida se tornasse insuportável sem a presença do outro; o corpo acaba atendendo ao pedido da alma, se despedindo da vida. 

A parashá desta semana começa com o falecimento de Sará e termina com a morte de Avraham. Apesar de não terem acontecido na sequência [1], a narrativa da Torá aproxima a partida dos nossos dois primeiros patriarcas e nos leva a pensar sobre a relação entre os dois. Claramente, havia uma parceria que levou Sará a abandonar a sua vida e seguir com seu marido em busca de uma terra desconhecida, obedecendo as instruções de Deus. Baseando-nos em histórias da parashá da semana passada, podemos também imaginar alguns desentendimentos entre os dois, como na expulsão de Hagar e Ishmael [2] e no fato de Avraham ter aceitado o pedido de Deus para sacrificar o filho deles [3]. O texto sugere que, no final da vida, eles nem moravam mais na mesma cidade: Avraham estava em Beer Sheva, mas Sará faleceu em Kiriat Arba. Será que, depois de tantos anos de parceria, foi a incapacidade de discordarem sobre temas tão centrais que acabou causando a morte de Sará?

Uma história famosa do Talmud [4] nos apresenta um outro modelo de parceria e conta da amizade entre dois rabinos, Rabi Iochanan e Resh Lakish, que faziam do debate intenso uma marca do seu relacionamento. Depois de uma briga entre eles, Resh Lakish ficou tão magoado que morreu de desgosto; Rabi Iochanan morreu pouco tempo depois, inconformado com a falta do amigo. Rabi Iochanan sentia especial falta dos desafios que Resh Lakish levantava aos seus argumentos, e da forma como, nesses embates, ambos melhoravam sua compreensão da tradição judaica. Nossas discussões, assim como nossas amizades e relacionamentos amorosos, também ajudam, muitas vezes, a definir quem somos — em especial a forma como lidamos com elas. 

Na semana passada marcamos os 25º aniversário do assassinato de Itzchak Rabin, o primeiro-ministro israelense responsável pelo Processo de Paz de Oslo, e que foi assassinado por um opositor radical. Nesta semana, faleceu Saeb Erekat, o principal negociador palestino no processo de paz com Israel. Rabin e Erekat eram figuras polêmicas: alguns os viam como visionários na construção de um futuro de paz, outros como pessoas dispostas a fazer concessões sem construir antes amplos consensos nacionais, há ainda quem os visse como inimigos, soldados do outro lado de um conflito que já custou mais de uma centena de milhares de mortos. Assim como as mortes de Avraham e Sará, que aparecem próximas na narrativas mesmo tendo acontecido com distância de muitos anos, vinte e cinco anos separam as mortes de Rabin e Erekat, mas elas apareceram próximas no calendário deste ano. Nas décadas que se passaram, continuamos buscando uma paz estável e duradoura entre israelenses e palestinos sem, no entanto, atingi-la. Nossas divergências e a forma como lidamos com elas continuam, em grande parte, nos definindo.

Nossa parashá termina com o reencontro de Itschak e Ishmael, dois irmãos separados por conflitos, no enterro de Avraham. Na morte de seu pai, retomaram a possibilidade de construírem uma relação em vida, mesmo com as discordâncias. Que as memórias de Avraham e Sará, de Itschak e Ishmael, de Itschak Rabin e Saeb Erekat iluminem nosso caminho para avançarmos, apesar das nossas divergências, na construção de uma paz justa e duradoura.

Shabat Shalom!    

[1] A tradição fala em quase quatro décadas separando os dois eventos.
[2] Gen. 21:9-19
[3] Gen. 22:1-19
[4] Talmud Bavli Bava Metsia, 84a-84b. See Less



sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Dvar Torá: o imperativo judaico da consciência ambiental

No dia 26 de novembro de 2017, o jovem Matheus Dutra Thomaz Aldeia, de 17 anos tomou seu café da manhã reforçado e, como tinha planejado, saiu da sua casa em Embu das Artes pra pegar o ônibus. O tempo passava e o ônibus não chegava e, quando veio, estava lotado. Quem anda de ônibus sabe que ônibus lotado sempre demora mais, para em todos os pontos, demora pras pessoas conseguirem entrar e sair. Quando, finalmente, Matheus conseguiu chegar ao seu destino, a Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis da USP, os portões tinham acabado de fechar — e ele viu frustrado seu sonho de tentar uma vaga para o curso de Publicidade e Propaganda na USP [1].

Todo ano, no final de Iom Kipur, a cerimônia de Neilá, eu fico pensando nessas cenas, que a gente vê todo ano de gente que chegou alguns minutos atrasado para uma prova importante e deu com o portão fechado. Neilá quer dizer “trancamento” e como eu disse no final da cerimônia deste ano, há muito debate sobre o que de fato está sendo trancado. Pessoalmente, eu não acredito que os portões da t’shuvá o processo de introspecção, auto-análise e transformação se tranquem de verdade. Eles estão nos esperando o ano inteiro, só esperando darmos o primeiro passo, prontos para que usemos a chave que sempre levamos no bolso, abramos a porta e, pé-ante-pé,  entremos nesse espaço.

Segundo algumas tradições místicas, é só em Hoshaná Rabá, o sétimo dia de Sucot que a gente acabou de terminar, que o processo de inscrição, confirmação e selamento dos nossos nomes no Livro da Vida é encerrado. Como eu disse, eu acredito que as portas da t’shuvá tão abertas o tempo todo, mas Hoshaná Rabá também é um dia no qual pedimos especialmente por água. Segundo a Mishná, o mundo todo é julgado em Sucot com respeito às chuvas [2] e as comemorações das noites de Sucot na época do Templo em Jerusalém faziam uso intenso de água, com muita música e dança — realmente validando a idéia de que Sucot é Zman Simchateinu, o tempo da nossa alegria. De acordo com a Mishná, “uma pessoa que não tenha visto Simchat Beit haShoevá [essas comemorações], nunca viu alegria na vida.” [3] Esse é um dos versos associados a estas comemorações:

וּשְׁאַבְתֶּם מַיִם בְּשָׂשׂוֹן מִמַּעַיְנֵי הַיְשׁוּעָה. 
Vocês devem retirar água com alegria das fontes da redenção [4]

Neste contexto de pedidos por chuva, Hoshaná Rabá, o sétimo dia de Sucot é, então, o último dia para implorarmos por água na medida certa — e, como é normal nas nossas últimas chances, os pedidos são reforçados nesta data.

Vivemos em sociedades urbanas, nas quais, na maioria das vezes, não pensamos em como a água e as chuvas são essenciais para a vida. Além disso, a ideia de rezarmos por chuva nos parece tão contrária à nossa mentalidade científica que aqueles entre nós que se dispõe a participar destes rituais, o faz por concessão ao folclore judaico, sem realmente acreditar que uma reza ou um jejum por chuva possa ter qualquer impacto. 

O rabino Yedidya Sinclair, que trabalha com Hazon, a principal entidade judaica trabalhando em questões ligadas ao meio-ambiente e à sustentabilidade nos Estados Unidos, diz que esta perspectiva teve início após o terremoto de Lisboa de 1755, que os especialistas imaginam ter atingido um valor entre 8,7 e 9 na escala Richter. Voltaire, o filósofo francês da época do Iluminismo, entende que não é possível atribuir qualquer impacto teológico ao evento, que teria acontecido pelas forças da natureza e da Física, não por desígnio de um Deus benevolente que tivesse querido punir algum grupo em Lisboa. O paradigma da dissociação entre os eventos naturais, como os terremotos ou o clima o comportamento humano se estabeleceu, quase que incontestável, desde então até o final do século XX. De acordo com o rabino Sinclair, o furacão Katrina, que causou estragos enormes em Nova Orleans em 2005, é o primeiro desastre natural no qual esta perspectiva foi questionada. De acordo com o consenso científico, a ação humana tem levado a fenômenos climáticos mais extremos: tempestades, furacões, secas e incêndios muito mais devastadores do que eles eram no passado.

Tendências históricas precisam ser analisadas em contextos mais amplos, mas São Paulo viveu nas últimas semanas alguns dos dias mais quentes desde que a temperatura é registrada por aqui [5] e ainda falta mais de dois meses para o início do verão; mais de um quarto do Pantanal já foi queimado este ano [6]; a Califórnia enfrenta incêndios terríveis que colocam em risco milhões de pessoas. Depois de Katrina, vários outros furacões igualmente destrutivos afetaram o Sul e o Meio-Oeste dos Estados Unidos. Este ano [7], a Europa sofreu inundações como não via há 500 anos, a África Oriental e a América do Sul sofreram com nuvens de gafanhotos devastadoras [8]. A ideia de que a ação humana tem, sim, impacto nos fenômenos naturais não parece tão absurda como achavam os filósofos iluministas.

O rabino Sinclair diz que o Tratado de Tannit do Talmud deveria se chamado Tratado Mudança Climática, tal é a relevância dos assuntos lá levantados para a discussão do impacto da ação humana sobre o clima e sobre nossa condição de vida neste planeta. Ele diz “As primeiras dez páginas do volume tratam muito pouco de reza e muito sobre o estado das coisas na sociedade que levam a mudanças nas condições do clima: as chuvas vão parar por causa de roubos, as chuvas vão parar por causa das trapaças das pessoas. Tratar do questão das chuvas leva rapidamente à conclusão de que a forma de resolver este problema não é através das rezas, mas através da regeneração social e espiritual.

Mary Evelyn Tucker e John Grim, que dirigem o Forum de Religião e Ecologia da Universidade de Yale nos Estados Unidos, escreveram: 

Uma crise ambiental dessa complexidade e abrangência não é resultado apenas de certos fatores econômicos, políticos e sociais. É também uma crise moral e espiritual que, para ser tratada, exigirá uma compreensão filosófica e religiosa mais ampla de nós mesmos como criaturas da natureza, inseridos em ciclos de vida e dependentes de ecossistemas. As religiões, portanto, precisam ser reexaminadas à luz da atual crise ambiental. [9]

A verdade é que a tradição judaica está muito bem equipada pra tratar desses assuntos. Eu quero convidar vocês a acompanharem nos seus sidurim a partir da página 16. Eu vou ler a tradução interpretativa do rabino Arthur Waskow para os 3 parágrafos do Sh’má, que eu considero uma excelente apresentação dos temas em termos relevantes para a nossa realidade:

Se você ouvir, realmente escutar o “Eu”, aquele “Eu” que fala por todo o Universo, esse “Eu” que fala do fundo de cada um de nós como o nosso ser mais pleno, mais completo.

Se você ouvir, realmente escutar, o que “Eu” ensino sobre as vínculos que te conectam com a Totalidade de toda a vida - para amar a Respiração da Vida e trabalhar pelo Poder Criativo do mundo com todo o teu coração e a cada respiração —  

então as chuvas cairão como deveriam, 
os rios vão correr, 
os céus vão sorrir 
e a boa terra te alimentará com abundância como os grãos, com alegria como o vinho, com suavidade como o azeite.
Mas se você dividir o mundo em partes e escolher um ou alguns para adorar — como deuses de riqueza e de poder, de ganância, da ambição, do vício em fazer e produzir sem interrupção para ser ou para praticar o Shabat, então a harmonia que você quebrou vai, com seus estilhaços, destruir a tua harmonia —

a chuva não vai cair [ou será ácida], 
os rios não correrão [ou irão transbordar porque você não deixou solo que a chuva possa encharcar], 
e os próprios céus se tornarão teus inimigos [a camada de ozônio deixará de te proteger, o dióxido de carbono que você despejar no ar queimará teu planeta], e você perecerá da boa terra que o Sopro da Vida exala por você.

Então, deixe essas verdades se estabelecerem no teu coração, Respire-as a cada sopro, encha cada ação das tuas mãos com elas e guie os teus olhos para enxergar profundamente ao observar a luz delas.

Ensine-as às crianças que viverão ou morrerão em um planeta que você transformou em ruínas ou que fez florescer. Compartilhe-as uns com os outros em suas casas, ao escolher como comer e como se aquecer; Compartilhe-as em suas estradas quando decidir como viajar e quais combustíveis usar;

Compartilhe-as conforme você cruzar cada limiar de vez em quando, de um lugar para outro.

Então, os teus dias e os dias dos teus filhos serão maduros e completos e muitos,

O que as árvores expirarem, você inspirará; o que você expirar, as árvores vão inspirar;

Como o Sopro da Vida jurou para aqueles que vieram antes de você, assim será também para você e para aqueles que te seguirem, a Terra será tão harmoniosa quanto o céu.

Aquele que é ilimitado disse a Moshé: Fale com Filhos de Israel. Diga-lhes para fazerem tsitsit nas pontas das suas roupas, ao longo de suas gerações. Peça-lhes que coloquem no canto tsitsit um fio azul roial. Este é o seu tsitsit. Olhe para isso e lembre-se de todas as mitsvot de ה׳. E cumpra-as, para que não vá atrás dos desejos do seu coração ou do que chamar a sua atenção, para que se lembre de cumprir todas as minhas mitsvot e ser santo para o seu Deus.

Se escutarmos, realmente escutarmos, o que a nossa tradição está nos dizendo — ela está afirmando que as nossas ações importam e têm impacto e é nossa responsabilidade cuidar pelo impacto das nossas ações. Quem assistiu a conversa ontem sobre Kohelet com os três rabinos da CIP e a rabina Nelly Altenburger [10] viu a relação que a rabina Nelly estabeleceu entre a destruição do Templo em Tishá b’Av e a construção da Sucá nesta época do ano. Com o Templo e sua estabilidade permanente, foram embora nossas certezas, nossa crença em um mundo no qual os sacrifícios seriam suficientes para sustentar nossa relação com o mundo. Uma sucá, com toda a sua fragilidade, é a resposta humana a um mundo que percebemos como vulnerável e em constante transformação. 

Eu ainda me lembro de quando levávamos de volta as garrafas de refrigerante de vidro pro supermercado e quando esta prática teve fim pela introdução das embalagens PET. Contrariando as palavras do Sh’má, nos deixamos sermos seduzidos pelos nossos olhos e principalmente pela conveniência. 

Pela conveniência de não ter que lavar, 
pela conveniência de não ter que guardar, 
pela conveniência de não ter que devolver,
pela conveniência de podermos agir sem considerarmos as implicações dos nossos atos para o futuro do planeta que deixaremos para nossos filhos.

Quem sabe, na sequência deste Hoshaná Rabá de 5781, escutemos nossas próprias súplicas, escutemos nossas próprias rezas, escutemos o que diz o Sh’má, e deixemos de idolatrar a conveniência.

Sucot chegou ao fim, o Livro da Vida, pelo que dizem por aí, está fechado. Mas os portões da tshuvá estão escancarados nos esperando. O mundo está gritando que espera nosso retorno e é só por teimosia que ainda não lhe demos ouvido.

Shabat Shalom e Chag Sameach

[1] https://g1.globo.com/educacao/noticia/fuvest-2018-candidato-chega-atrasado-perde-prova-e-culpa-problema-no-transporte-publico.ghtml
[2] Mishná Rosh haShaná 1:2
[3] Mishná Sucá 5:1
[4]  Isaías 12:3
[5]  https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/02/sao-paulo-tem-novo-recorde-de-calor-em-2020-e-segunda-marca-mais-quente-da-historia-da-cidade.ghtml
https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/10/estado-de-sao-paulo-registra-maior-temperatura-da-historia.shtml
[6]  https://gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2020/10/area-devastada-no-pantanal-e-maior-que-o-estado-de-alagoas-diz-inpe_116733.php
[7]  https://edition.cnn.com/2020/08/28/weather/rapid-fire-disasters-in-coronavirus-pandemic-weir-wxc/index.html
[8] https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2020/08/21/argentina-monitora-10-nuvens-de-gafanhotos-risco-de-entrada-no-brasil-e-baixo.ghtml
[9] https://fore.yale.edu/Publications/Books/Religions-World-and-Ecology-Book-Series/Challenge-Environmental-Crisis
[10] https://youtu.be/wIY-BWFRMWk



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Líderes ou semi-deuses

Como escolhemos nossos líderes e o que esperamos deles depois que eles chegam a posições de poder? Quando julgamos seu comportamento ético, será que devemos ser mais tolerantes (reconhecendo as múltiplas e opostas demandas que lhes são apresentadas) ou mais exigentes (levando em consideração a forma como líderes servem de exemplo)? E com relação ao seu comportamento pessoal, devemos esperar mais dos líderes do que esperamos das outras pessoas?

A questão da liderança é um dos tópicos centrais da parashá desta semana. Logo em seu início, Itró, o sacerdote midianita que era sogro de Moshé, dá dicas de liderança a Moshé, indicando como delegar parte das suas responsabilidades judiciais e mantendo-se apenas nos casos mais complexos. “Você deve procurar dentre todo o povo, pessoas capazes que temem a Deus, pessoas confiáveis que desprezam ganhos ilícitos.” [1]  Segundo Itró, a concentração de todas as demandas judiciais nas mãos de um único líder acarretaria, inexoravelmente, em seu desgaste e no desgaste da confiança que a população depositava nas instituições. Ao seguir as orientações de seu sogro, Moshé foi capaz de instituir um sistema de justiça em várias instâncias, ao mesmo tempo em que desenvolvia novas lideranças.

Moshé foi um líder exemplar. A seu respeito, diz a tradição “não houve mais entre o povo de Israel [outro] como Moshé, que conheceu Adonai face-a-face” [2]. Mesmo assim, Moshé não foi considerado um líder infalível: foi punido por Deus e impedido de entrar na Terra de Israel. Temos um episódio na parashá desta semana que nas últimas décadas tem atraído bastante atenção e polêmica. Em preparação ao momento da Revelação no Monte Sinai, Deus pede a Moshé que instrua o povo a se manter puro, de roupas lavadas e afastado do monte; Moshé transmite a mensagem, adicionando “não se aproxime de uma mulher” [3]. Esta adição de Moshé ao que Deus havia instruído tem rendido críticas que apontam que esse discurso só se aplicaria se fosse dirigido apenas aos homens. A exclusão das mulheres como público de sua fala tem justificado críticas pesadas a Moshé por parte de judeus e judias feministas contemporâneos. 

Até a respeito de Moshé, o profeta como nenhum outro, levantamos críticas, que não o desqualificam como líder, mas humanizam sua figura. Por que, então, parece tão difícil hoje em dia aceitar críticas direcionadas ao líder preferido de cada um? O primeiro dos Dez Mandamentos (também parte da parashá desta semana) termina afirmando: “não tenha outros deuses além de mim” [4]. Na lealdade a alguns líderes, no entanto, acabamos esquecendo desse preceito judaico, tratando aqueles que admiramos como semi-deuses e recusando qualquer crítica, por mais legítima que seja.

Que ao escutar essa parashá possamos encarar nossos líderes como humanos, com acertos e defeitos, com relação a quem críticas são possíveis e até bem vindas!


[1] Ex. 18:21
[2] Deut. 34:10
[3] Ex. 19:15
[4] Ex. 20:4

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

A subversão da justiça e a proximidade do poder

Recentemente, uma polêmica agitou a comunidade judaica brasileira: até que ponto deve haver alinhamento automático entre as entidades representativas da comunidade judaica local e os governos com os quais nos relacionamos, seja ele brasileiro ou israelense? 

O relacionamento com governos é uma questão recorrente na vida judaica, presente em várias das nossas comemorações: Purim, Pessach e Chanucá celebram a forma como judeus conseguiram se livrar de situações opressivas no relacionamento com o poder da época; datas adicionadas mais recentemente ao calendário, como Iom haShoá e Iom haAtsmaut, refletem aspectos contemporâneos dessa questão.

A relação com a autoridade estabelecida está no centro das questões levantadas pela parashá desta semana. Iossef, o filho vendido como escravo por seus irmãos e que tornou o vice-rei do Egito, havia plantado evidência de que Biniamin, seu único irmão de pai e mãe, havia roubado uma taça de prata da sua casa— agora, os irmãos tentam convencer o vice-rei a prender outro irmão, mas permitir que Biniamin retorne à casa de seu pai. A Torá não relata os motivos de Iossef, mas claramente coloca os irmãos à mercê da sua vontade.

No processo investigativo brasileiro, não são raras as acusações de evidências plantadas ou forjadas, especialmente contra os segmentos mais vulneráveis da sociedade. A subversão do processo legal tem levado à deterioração dos níveis de confiança nas instituições da justiça e a que cada grupo passe a buscar atalhos que garantam a execução da sua percepção do que é certo ou o seu próprio favorecimento.

Conforme a história da parashá progride, Iossef revela sua verdadeira identidade aos irmãos e os convida para se mudarem para o Egito, juntamente com seu pai, para escaparem da seca intensa que afligia toda a região. Como familiares do vice-rei, os filhos de Iaacov receberam terras entre as melhores do reino em um momento em que a população egípcia, também afligida pela seca, era obrigada a abrir mão de seus animais e de suas terras para poderem ter o que comer.

O paralelo com a realidade política brasileira, novamente, não poderia ser mais direto. Infelizmente, nossa tradição tem sido de que a proximidade com aqueles que ocupam o poder garante privilégios indevidos. Em um cenário no qual a garantia dos direitos legais não se dá pela ordem institucional, mas pela proximidade àqueles que detém o poder, ganha força a tese que defende alinhamentos comunitários automáticos e para a qual posicionamentos críticos são perigosos.

A tradição judaica, no entanto, é crítica de alinhamentos automáticos com qualquer governo e expressa orgulho em questionar até mesmo Deus, a autoridade suprema. Nossos textos enfatizam a importância de um processo de justiça isento e expressam ambiguidade com relação à proximidade daqueles que detém o poder, reconhecendo que dependemos deles, mas receosos de que a proximidade seja contraproducente. Antes de buscar resultados imediatos, me parece que a atuação comunitária judaica deve se pautar pela busca desses valores e pelo fortalecimento das instituições democráticas e da ordem institucional. 

Que neste shabat possamos sonhar com um Brasil mais justo e democrático e que neste 2020 possamos caminhar, juntos, nesta direção.

Shabat shalom,

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Dvar Torá: Sendo gente em um lugar onde falta humanidade (Lar das Crianças)

“Rogério, em uma terra de rinocerontes, se esforce para ser gente.” Eu não lembro dos detalhes da prédica do rabino Sobel no meu Bar Mitsvá, mas eu lembro desta mensagem final.
במקום שאין אנשים, השתדל להיות איש”, “em um lugar em que a humanidade estiver em falta, se esforce para ser gente” [1]
O rabino Sobel tocou milhares de vidas durante sua longa carreira no rabinato. Ele nem sempre conseguiu o consenso, mas ele certamente foi transformador para muitos que entraram em contato com ele. Hoje, no facebook, foi emocionante ver a quantidade de relatos pessoais de como as suas palavras e a sua atitude impactaram as pessoas de maneira muito positiva. 
במקום שאין אנשים, השתדל להיות איש”, “em um lugar em que a humanidade estiver em falta, se esforce para ser gente”
Em um momento da história do nosso país em que se comportar fora das normas da moralidade e da humanidade tinha se tornado aceitável, o rabino Sobel ousou ser gente. Apresentado ao caso de Vladimir Herzog com sinais claros de tortura em 1975, teve a coragem de negar publicamente a narrativa de que ele tinha se suicidado. Não foi a única manifestação do rabino que incomodou a ditadura. Manifestou-se pela democracia da bimá da CIP, nas ruas, em encontros políticos e no famoso ato ecumênico na Catedral da Sé, ao lado do dom Paulo Evaristo Arns e James Wright. Sua coragem de desafiar os poderosos, de ir contra o senso comum, de desenvolver um Judaísmo de relevância para os nossos momentos mais alegres e nossas horas mais sombrias foi contagiante e inspirou uma geração de judeus a se aproximarem do judaísmo e, através dele, sonhar com um mundo melhor.
במקום שאין אנשים, השתדל להיות איש”, “em um lugar em que a humanidade estiver em falta, se esforce para ser gente”

A parashá desta semana se chama “Chaiei Sará”, “a vida de Sará”, e muitos comentaristas destacam o fato de que, apesar deste nome, a parashá fala, logo no seu início, do falecimento de Sará. Fala também, no seu final, do falecimento de Avraham. Juntos, Avraham e Sará deram início à maravilhosa saga judaica. Um casal que teve a coragem de ser iconoclasta, de contestar o senso comum e as verdades absolutas da sua época, de escutar seu chamado interno e abandonar tudo o que conhecia e começar uma nova vida, em um novo lugar. E, mesmo assim, quando lhe pediram algo que desafiava seu senso de justiça, teve a coragem de desafiar o mesmo Deus por quem tinha largado tudo. Desafiar o senso comum exige coragem, mas desafiar a autoridade que tem o poder de punir e que já tinha demonstrado a disposição em punir, exige muito mais.
במקום שאין אנשים, השתדל להיות איש”, “em um lugar em que a humanidade estiver em falta, se esforce para ser gente”
O rabino Sobel se encontra com Avraham e com Sará neste lugar dos tzadikim que ousaram ser pessoas em terras de rinocerontes, de serem pessoas em lugares em que a humanidade estava em falta. Longe de serem pessoas perfeitas, longe de serem apresentados como santos, mas seus eventuais tropeços em nada tiram da enormidade de suas qualidades, do impacto das suas ações e das suas palavras, das milhares de pessoas que foram impactadas por estas personalidades maiores do que a vida. 
במקום שאין אנשים, השתדל להיות איש”, “em um lugar em que a humanidade estiver em falta, se esforce para ser gente”
Comentando sonbre esta parashá, a rabina Rona Shapiro sugere:
“Talvez, esta parashá seja chamada Chaiei Sará, ‘a vida de Sará’, porque, com a morte de Sará, Avraham finalmente aprende a viver a vida dela; ele desce da montanha e se torna um homem do coração, um homem que toma conta dos membros de sua família e vive sua vida no plano humano. Ele aprende a encontrar verdade e significado dentro do contexto de sua família, ao casar seu filho, criar crianças, nos pequenos atos de gentileza que tornam a vida sagrada. Avraham aprende que Deus não está em um trono nos céus, mas está em qualquer lugar em que os humanos O convidarem em suas vidas.” [2]
Com a morte de Sará, Avraham precisa assumir um novo papel na sua relação com Itschak. Em seu livro “A Tenda Vermelha”, a escritora judia norte-americana Anita Diamant nos conta sobre a Tenda de Sará, onde as mulheres se reuniam e se prestavam apoio mútuo, mas quem apoiava Avraham em seu novo papel de tomar conta de Itschak? É a seu servo, Eliezer, que Avraham pede ajuda e o manda para a terra de seus ancestrais, que ele tinha deixado para trás, para encontrar uma esposa para seu filho.
Um ditado popular africano que se tornou popular nos Estados Unidos diz que “it takes a village to raise a child”, “é necessária uma vila inteira para criar uma criança”. A ideia é que a educação de uma criança não é apenas o resultado do esforço dos seus pais, ou nem mesmo da sua família expandida, mas que todo o seu entorno tem uma parte dessa responsabilidade. Em um mundo em que as normas de convívio e de solidariedade se deterioram a cada momento, em que cada um parece se preocupar apenas com seus próprios problemas, nos quais andamos pelas nossas ruas indiferentes à multidão que lá dorme, eu me pergunto onde está a vila que ajuda a criar cada criança.
במקום שאין אנשים, השתדל להיות איש”, “em um lugar em que a humanidade estiver em falta, se esforce para ser gente”
Assim como Avraham, nossos pais, avós e bisavós chegaram a este país deixando um mundo para trás. Deixaram suas famílias, deixaram suas posses, deixaram suas redes de apoio. Assim como Avraham, eles também precisavam de ajuda na criação de seus filhos e, assim, nasceu este Lar das Crianças. Com o tempo, as famílias que precisavam de ajuda já não eram mais as famílias dos nossos imigrantes, mas o Lar foi mudando o seu foco sem diminuir o carinho e a atenção que dá a cada uma das crianças que educa. Numa terra em que impera a escuridão, o Lar acende luzes; numa terra de indiferença, o Lar ensina a solidariedade; numa terra em que cada um cuida dos seus próprios problemas, o Lar nos mostra que alguns problemas são responsabilidade de todos nós.
O Lar é a vila que ajuda os pais a educarem os seus filhos. Muito obrigado pelo papel lindo e gigante que vocês desempenham pelos seus educandos e pela alma de todos nós.
São exemplos como os de Avraham, de Sará, do rabino Sobel, e do Lar que nos ensinam a sermos gente numa terra de rinocerontes; a sermos gente em lugares em que a humanidade está em baixa.

Que eles continuem nos inspirando e iluminando nossos caminhos.

[1] Pirkei Avot 2:5
[2] Elyse Goldstein (ed.), The Women’s Torah Commentary: New Insights from Women Rabbis on the 54 Weekly Torah Portions. Jewish Lights: Woodstock, Vermont. p. 74.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Dvar Torá: Prisões, pra quê? (Lar das Crianças)

Uma das primeiras coisas que meus filhos desenvolveram, ainda muito crianças, foi o senso de justiça. Um senso de justiça bem peculiar, é bem verdade. Se o pedaço do bolo contivesse uma casquinha de chocolate a mais para um deles, aquilo seria uma tremenda injustiça na opinião de quem recebeu a menos e uma coisa normal da vida para quem recebeu a casquinha a mais…
Quando será que a gente perde a necessidade de ver a justiça praticada nas nossas rotinas e acaba achando que é tudo coisa normal da vida?
A parashá desta semana apresenta um cenário do que seria um mundo governado pela justiça Divina: se o povo cumprir todas as regras estabelecidas na Torá, Deus os recompensará com chuva na hora certa, a terra produzirá ótimos frutos, estará livre de animais selvagens e de guerras. No entanto, se o povo quebrar o pacto com Deus e ignorar as regras da Torá, sai de baixo! As pessoas ficarão doentes, não apenas haverão guerras, mas os inimigos de Israel as vencerão, a terra não irá produzir, os animais selvagens a invadirão, haverá miséria; as cidades serão destruídas e o povo será disperso em terras estrangeiras. Por estas punições todas, esta parashá também é chamada de “parashat haTochechá”, a parashá da repreensão.
Em um filme de ficção científica, este cenário seria chamado distopia: “lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação; antiutopia”. E realmente, só de escutar a lista de castigos impostos por Deus já gera certa angústia e opressão. Mas eu preciso confessar que há também certo conforto nesta teologia bíblica em que tudo que nos acontece de ruim é resultado de alguma infração que eu cometi. Em outras palavras, é fácil evitar as doenças, as pestes, as secas: basta seguirmos as regras.
Ainda hoje há quem acredite nesta perspectiva: quando o furacão Katrina destruiu a cidade de Nova Orleans, não faltou gente que associasse o desastre ao Mardi Gras, o carnaval de rua que acontece na cidade. Há quem atribua a Shoá, que dizimou 6 milhões dos nossos irmãos, ao desejo de estabelecer uma nação judaica na Terra de Israel antes da chegada do Messias ou às correntes judaicas liberais. A cada grande chuva que cai no Rio de Janeiro, há quem associe a destruição resultante, não à falta de obras de urbanização e infra-estrutura, mas aos pecados cometidos pela população que lá vive.
A minha experiência pessoal, no entanto, tem sido bastante diferente. Tenho visto muitas pessoas de comportamento pouco ético ter muito sucesso, não apenas no aspecto financeiro. Tenho visto países que utilizam mão de obra estrangeira semi-escrava em suas obras públicas serem reconhecidos e premiados internacionalmente, recebendo investimentos estrangeiros e campus de universidades de primeira linha, sediando eventos internacionais importantes. Ao mesmo tempo, vemos muita gente honesta, generosa, trabalhadora morrer cedo depois de vidas cheias de dificuldades. Vemos países que tratam sua população com respeito e, mesmo assim, batalham para poder romper o ciclo da miséria.
No mundo em que a gente vive, seguir as regras não é garantia de sossego e quebrá-las não é garantia de punição — pelo menos, não nesta vida.
O desejo de ter um pouco de lógica e ordem em uma realidade que parece tão aleatória e injusta talvez ajude a explicar porque tanta gente defende que adotemos, sempre que possível, uma abordagem semelhante à da parashá: quem segue as leis têm tranquilidade, prosperidade e abundância; quem não as segue viverá uma realidade distópica.
No começo da semana, acordamos com notícias terríveis vindas do Amazonas. Em alguns poucos dias, 55 detentos foram mortos em presídios no estado. Brigas internas entre membros de uma mesma facção, a Família do Norte, tem sido apontadas como a razão para a matança. Em 2017, uma rebelião no mesmo presídio de Manaus onde as mortes começaram desta vez, já tinham deixado 56 mortos.
Presidiários, que foram mortos sob a tutela do Estado. Seres humanos, criados à imagem Divina como você, como eu. Pessoas, que na tradição judaica têm direito a serem tratados com uma dignidade inalienável - exatamente porque fomos todos criados à imagem divina. Na tradição judaica, até aquela pessoa que foi condenada à morte tem que ser enterrada com a maior rapidez possível e com todo respeito. Ser uma pessoa que cometeu atos terríveis não desqualifica ninguém como ser humano, pelo menos não na tradição judaica.
Na sociedade, em resposta a estas chacinas no Amazonas, ouvimos - em grande parte - o silêncio. Apesar da manchete em primeira página na Folha e no Estadão de 3a feira, as pessoas não foram às ruas para protestar, o assunto não dominou as postagens das minhas redes sociais, nem as conversas sociais que eu tive nesta semana. Falou-se muito mais da desclassificação do São Paulo da Libertadores do que do assassinato de 55 seres humanos sob responsabilidade do Estado.
Talvez o silêncio seja porque acreditemos que quem está na cadeia não tem direito a muito coisa. A verdade é que - para além de não ser hotel cinco estrelas, como disse um político recentemente, os presídios brasileiros são verdadeiros depósitos humanos, onde a dignidade dos detentos é negada a todo momento e onde a única chance de sobrevivência é se filiando a uma das facções criminais. O Brasil é dono da 3a maior população carcerária do mundo, só depois dos Estados Unidos e da China, e dobrou o número de presos entre 2005 e 2016 sem que a capacidade dos presídios tivesse aumentado na mesma proporção [1]. No estado do Amazonas [2], palcos dos massacres mais recentes, há 3.508 vagas nos presídios e 8.306 presos; uma superlotação de 136,8%. Muito longe de ser hotel cinco estrelas. Dos presos, apenas 7,5% ou 729 pessoas trabalham - fato que é indicado como obstáculo para a reinserção social dos detentes após cumprirem suas penas. Se o detento não tem chance de ter uma vida produtiva e honesta, após sair da prisão, como podemos esperar que ele se mantenha afastado das facções criminosas durante seu tempo na prisão?
Em 2016, 45,2% dos presos do Amazonas ainda não tinham sido julgados. Ou seja: as pessoas entram nas prisões ainda só “acusadas”, suspeitas, mas são rapidamente transformadas em criminosos pela associação com as facções criminosas, o Comando Vermelho, o PCC e a Família do Norte. É a única chance que eles têm de continuarem vivos nas prisões mas também é, muitas vezes, a razão de sua morte, como evidenciam as rebeliões do Amazonas.
O conceito judaico de tshuvá estabelece que todo mundo merece a chance de voltar ao seu melhor “eu”, a chance de reconhecer seus erros, procurar repará-los e começar de novo. No Talmud, há um criminoso que se torna um grande sábio [3]: Reish Lakish, que afirmou “grande é a possibilidade de tshuvá, pois pecados cometidos intencionalmente são convertidos em boas ações.” [4] Qual possibilidade de tshuvá é oferecida nas prisões brasileiras?
Urge que, como sociedade, nos perguntemos qual a função que as prisões brasileiras desempenham e qual modelo as ajudará a melhor cumprir esta função. Eu já ouvi três respostas: punir o criminoso, servir de exemplo para que outros não se tornem criminosos e oferecer a possibilidade de correção para aquele que cometeu um crime tenha a chance de, recuperado, ser re-inserido na sociedade.
A teologia deuteronômica da nossa parashá aponta para a primeira: no texto, várias vezes Deus diz que punirá com rigor igual a 7 vezes o ato cometido. A tradição rabínica, por outro lado, aponta claramente para a terceira opção: a possibilidade de tshuvá, de se recuperar, de se redimir, é central entre os valores judaicos que dizemos praticar. Os rabinos reconheceram que em um mundo em que a regra fosse “olho por olho, dente por dente”, todos ficaríamos cegos e se esforçaram para reformar a lei bíblica.
A dignidade de todo ser humano criado à imagem Divina e a possibilidade permanente de fazermos tshuvá e retornarmos à melhor versão de nós mesmos. Neste shabat de leituras difíceis da Torá, quem sabe estes valores centrais da vida judaica nos inspirem a buscarmos soluções para a questão prisional do Brasil baseadas em nosso desejo genuíno por segurança e  por ordem, mas também na empatia, na generosidade, na confiança do valor de toda pessoa.


[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/brasil-dobra-numero-de-presos-em-11-anos-diz-levantamento-de-720-mil-detentos-40-nao-foram-julgados.ghtml
[2] As estatísticas sobre o sistema prisional do Estado do Amazonas foram obtidas em http://especiais.g1.globo.com/monitor-da-violencia/2019/raio-x-do-sistema-prisional/
[3] https://en.wikipedia.org/wiki/Shimon_ben_Lakish

[4] Talmud Bavli Yoma 86b

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Dvar Torá: Parashat Tetsavê (CIP)

Shabat Shalom,
Talvez seja por causa deste shabat de boas vindas, talvez seja pelo fato de que ontem, 14 de fevereiro, foi aniversário da minha mãe ou que ontem também marcou o primeiro aniversário do massacre em uma escola em Parkland, na Flórida. Mas o fato é que, nestes últimos dias, tenho pensado bastante sobre datas e como as datas que vamos adicionando ao nosso calendário contam parte da nossa história, troféus e cicatrizes que acumulamos ao longo dos anos. A data em que nos formamos na faculdade. Quando descobrimos uma doença séria ou quando recebemos do médico a notícia de que estávamos curados. A data do casamento ou a do divórcio. As datas em que nasceram nossos filhos ou aquelas em que perdemos entes queridos. Estas datas vão se acumulando e vão contando, pouco a pouco, as histórias das nossas vidas.
No mundo judaico, também temos adicionado datas ao calendário, datas que contam muito da experiência judaica no século 20: Iom haShoá, Iom haAtzmaut, Iom haZicaron, Iom Ierushalayim. A desgraça da Shoá e os sucessos de Israel deram a tônica das datas que juntamos ao calendário nas primeiras décadas da existência do Estado de Israel. Nas últimas décadas, no entanto, o foco tem mudado um pouco: depois do assassinato de Yitzhak Rabin, o 12 de Cheshvan passou a ser a data em que conversamos sobre a necessidade de prevenir que nossas discordâncias políticas se tornem violentas e comprometam o sistema democrático.
A data em memória a Itzhak Rabin se junta a outras duas datas que tratam de questões semelhantes, ligadas à perda da nossa capacidade de lidar com divergências, um problema que parece estar se tornando cada vez mais crônico. Tishá beAv, o 9º dia do mês judaico de Av, marca a destruição dos dois Templos em Jerusalém e outras tragédias que se abateram sobre o povo judeu ao longo da história. O Talmud, ao falar da destruição do segundo Templo, atribui sua destruição a שנאת חינם, o ódio gratuito que reinava na comunidade judaica da época.
E há outra data que trata do rompimento do diálogo, uma da qual muito pouca gente ouviu falar. Ontem, além de ter sido 14 de fevereiro e aniversário da minha mãe, também foi 9 de Adar. Segundo o Shulchan Aruch, obra central para a lei judaica, o 9 de Adar deveria ser uma data de jejum pelas desavenças entre as escolas de Hillel e de Shamai.
“Desavenças entre Hillel e Shamai?!” Nós, rabinos, sempre falamos das discussões entre as escolas de Hillel e de Shamai como exemplos de מחלוקות לשם שמיים, discussões produtivas e respeitosas; como pode haver um dia de jejum pelas desavenças entre eles?
Num dia 9 de Adar, a turma de Shamai se viu em maioria na academia rabínica – um evento raríssimo! – e aproveitou a oportunidade para aprovar todas as decisões que pudessem. Membros da escola de Shamai se colocaram de guarda na porta da academia para garantir que sua vantagem numérica não fosse alterada. Naquele dia, 18 decisões foram tomadas de acordo com a opinião da Escola de Shamai. Uma fonte rabínica fala de 3.000 mortos como resultado deste conflito; outra compara este dia como o evento do bezerro de ouro. Provavelmente, o motivo para a comparação é o fato de que Beit Shamai tenha permitido que sua certeza transformasse ideias em ídolos, virassem absolutas, incontestáveis, inquestionáveis; semi-deuses pelos quais toda e qualquer atitude é justificável.
Vivemos em uma época em que parecemos ter perdido a capacidade de debater de forma respeitosa e produtiva. Alimentados pelas caixas de ressonância das redes sociais, temos adotado discursos cada vez mais radicais e vilificado as pessoas cujas opiniões divergem das nossas. Perdemos a curiosidade genuína pela opinião do outro e entramos em discussões com o único objetivo de vencê-las. Não deixamos nenhuma fresta em nossas certezas absolutas, também incorrendo no erro da idolatria de ideias. Em confrontos apresentados como decisões entre o bem e o mal absolutos, qualquer estratégia passou a ser válida para vencer o debate. Assim como foi o caso com os membros de Beit Shamai, nos esforçamos para obter o máximo resultado de qualquer vantagem numérica temporária. Foi-se a época em que a busca pelo consenso e pela paz era um valor que perseguíamos…
Todos concordam sobre a quebra das normas de convívio e debate, mas cada um de nós aponta para o grupo oponente como responsável por esta situação. Por outro lado, quando os rabinos do Talmud falam do ódio gratuito em Tishá beAv, apontam o dedo para a culpa dos próprios rabinos e os responsabilizam por terem permitido que a situação chegasse àquele ponto. Quando falam do 9 de Adar, é uma crise no próprio modelo rabínico de debate que causa o rompimento. A tradição nos ensina, desta forma, a não buscar subterfúgios ou bodes expiatórios e instrui a cada um a buscar sua própria responsabilidade por termos chegado até aqui antes de indicar a culpa do outro.
Na parashá desta semana, Aharon - o irmão de Moshé - e seus filhos Nadav, Avihu, Eliazar e Itamar, recebem as instruções para servirem como cohanim, sacerdotes responsáveis pela condução dos serviços religiosos da época. Que coincidência linda que seja justamente esta a parashá do shabat em que eu me somo ao grupo de rabinos da CIP!
Sobre Aharon, Pirkei Avot diz que ele era  אוֹהֵב שָׁלוֹם וְרוֹדֵף שָׁלוֹם, אוֹהֵב אֶת הַבְּרִיּוֹת וּמְקָרְבָן לַתּוֹרָה, “alguém que amava a paz e a buscava, que amava as pessoas e as aproximava da Torá.” Uma ótima fonte de inspiração nestes dias difíceis em que vivemos! Espero que junto com meus colegas na equipe profissional e com o apoio de toda a comunidade, possamos realmente ajudar na construção da paz e do consenso, tão necessários nestes tempos. Que o exemplo de 9 de Adar nos instrua a manter nossos debates construtivos e respeitosos.
Shabat Shalom!

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Judaísmo e Poder: uma história ambivalente

(artigo originalmente publicado na Revista Devarim 36, pgs. 53-56)

Com a proximidade das eleições e o acirramento das posições políticas, tanto dentro quanto fora da vida judaica, discussões sobre a representatividade das instituições comunitárias e do relacionamento institucional com as esferas de poder político passaram a pautar, com alguma centralidade, a agenda comunitária. Esta divisão política não é, de forma alguma, uma experiência inédita [1] mas o potencial de amplificação representado pelas redes sociais virtuais tem dado nova dimensão às disputas. Neste sentido, parece necessária a análise do que a tradição judaica tem a dizer sobre o relacionamento com as esferas de poder, sejam eles internos ou externos às instâncias comunitárias e sobre as formas como estes debates são conduzidos.

Uma das passagens mais famosas de Pirkei Avot [2], o tratado da Mishná também conhecido como “Ética dos Pais”, procura caracterizar dois tipos de debates. Discussões produtivas são chamadas de “polêmicas em nome dos céus” (machloket l’shem shamayim) e seus resultados tendem a ser eternos; polêmicas destrutivas, por outro lado, têm impacto limitado no tempo. Como é típico da tradição rabínica, não há no texto uma definição específica do que constitua uma “polêmica em nome dos céus” - temos apenas dois exemplos, dos quais precisamos inferir a definição de cada categoria. O exemplo paradigmático que esta passagem dá para discussões produtivas é Hillel e Shamai, dois sábios que viveram no século I aEC e que são considerados precursores do movimento rabínico que estabeleceria, alguns séculos mais tarde, os parâmetros da vida judaica como a vivemos hoje. Hillel e Shamai discordavam em tudo, mas uma outra passagem da Mishná [3] nos conta que, mesmo assim, havia convívio social respeitoso entre eles, seus seguidores e suas famílias. Em contraponto, o exemplo para discussões destrutivas é a polêmica entre Korach e seus seguidores, que se levantaram em rebelião contra Moshé quando o povo vagava pelo deserto a caminho da Terra de Israel [4]. 

Que características justificam a distinção estabelecida entre as disputas entre Hillel e Shamai, de um lado, e a de Korach e seus seguidores, do outro? De acordo com os comentários tradicionais [5], uma “polêmica em nome dos céus” busca revelar a verdade com relação a um determinado assunto, ao passo que “uma polêmica que não seja em nome dos céus” se preocupa unicamente com o poder e o status conferido pela disputa. Uma análise mais profunda, no entanto, nos revela que a questão é, potencialmente, mais complexa. De um lado, o nome dos filhos de Korach são relembrados em onze salmos [6], indicando a perenidade também de sua memória; de outro, o Talmud revela episódios em que as disputas entre Hillel e Shamai não foram exatamente “amigáveis”, relembrando situações nas quais elas foram resolvidas apenas através da violência [7]. 

Alguns comentaristas apontam para o fato de que a polêmica entre Hillel e Shamai ter se dado entre iguais, ao passo que a disputa entre Korach e Moshé se deu entre alguém que detinha autoridade e alguém que a questionava. Esta leitura aponta a questão da legitimidade das disputas para sua relação com a autoridade estabelecida, em particular quando há uma assimetria de poder entre as partes. A partir dela, temos uma primeira evidência do caráter complexo e multifacetado da relação judaica com o poder estabelecido, especialmente durante os séculos nos quais a vida judaica se desenvolveu quase exclusivamente na Diáspora.

Um lado da questão é revelado por outra passagem de Pirkei Avot: “Tenha cuidado com o governo, pois (seus membros) se aproximam apenas por seus próprios problemas. Eles se apresentam como amigos nos bons tempos, mas não ficam ao seu lado nos tempos difíceis” [8]. A perspectiva de que o governo (na época em que o texto foi escrito, o Império Romano), ainda que se apresente como seu aliado nos tempos de bonança, está defendendo apenas seus próprios interesses, reforça a impressão de uma relação complexa com as autoridades que detêm o poder. 

Por outro lado, um ponto de vista mais positivo com relação à possibilidade de relacionamento construtivo com o poder é revelada em uma história sobre o estabelecimento da academia rabínica em Iavne, a cidade onde se deu a redação da Mishná, a obra na qual Pirkei Avot se insere. Conta a tradição rabínica [9] que, quando Jerusalém estava cercada pelas tropas romanas e os zelotas judeus impediam o estabelecimento de um acordo de paz com os romanos, Raban Iohanan ben Zakai conseguiu escapar da cidade e negociou com o general Vespaziano sua rendição e a de seus discípulos, tendo como contrapartida a garantia para o estabelecimento de Iavne como novo centro da vida intelectual judaica após a destruição de Jerusalém. Neste caso, a intransigência dos zelotas em negociar com o poder romano levou à destruição de Jerusalém, enquanto a disposição de Iohanan ben Zakai garantiu a sobrevivência judaica. A mensagem aqui, ao contrário do texto anterior, parece ser a da possibilidade de interação positiva com o governo.

A verdade é que já em textos bíblicos encontramos ambivalência com relação à proximidade ao poder, especialmente para a vida sob domínio estrangeiro. Nestes casos, a proximidade com o poder significa, simultaneamente, oportunidade e risco. Em Gênesis, temos a história de Iossef, cuja ascensão ao cargo de vice-rei do Egito garantiu suprimento para a família de seu pai quando a seca chegou à região. Quando seus irmãos lhe pedem perdão por tê-lo vendido como escravo anos antes, sua resposta indica que tudo fazia parte do plano Divino, para que ele pudesse estar próximo ao poder do Egito quando a necessidade se apresentasse [10]. No entanto, com relação ao mesmo Egito, temos, no início do livro de Êxodo, a ascensão de um novo faraó que, amedrontado pela presença israelita na terra, decide escravizar os hebreus e exterminá-los [11]. Da mesma forma, a história de Ester, marca o risco e a oportunidade que a comunidade judaica da Diáspora corre ao se aproximar do poder.

Mesmo com relação ao Poder absoluto representado por Deus, a tradição judaica tem sido ambivalente. De um lado, Deus é inquestionável e a devoção incondicional é celebrada em textos e na liturgia. De outro lado, o questionamento de Deus é, paradoxalmente, também valorizado. Avraham, questiona Deus de forma quase agressiva, “o Juiz de toda a Terra não julgará de forma justa?” [12], quando Deus lhe conta Seus planos de destruir Sodoma e Gomorra. Também Moshé, após o episódio do Bezerro de Ouro, questiona os planos Divinos de destruir todo o povo, insinuando que isto daria argumento aos egípcios, que diriam que os Israelitas tinham sido tirados do Egito para serem mortos no deserto e relembra Deus da promessa que havia feito aos patriarcas [13]. A tradição rabínica, provavelmente seguindo estes exemplos, também tem sua dose de chutzpá [14] na relação com a autoridade Divina. Em uma famosa passagem talmúdica [15], Deus tenta interferir em uma discussão na academia rabínica. A resposta dos sábios é clara no sentido de rejeitar a intervenção de Deus: “a Torá não está nos céus”, eles dizem citando um verso bíblico [16], “vocês devem seguir a vontade da maioria” [17], eles complementam citando outro verso. Esta última citação bíblica é especialmente interessante, tendo em vista que ela se estabelece como fonte para a abordagem judaica de decidir questões legais baseadas na vontade da maioria. Seu significado no contexto original não parece, no entanto, justificar esta leitura. O verso bíblico diz: “você não deve seguir rabim para fazer o mal e não dê testemunho em uma disputa para desviá-la de uma forma que a desvie na direção de rabim.” A palavra rabim (רַבִּ֖ים) pode significar “poderosos” ou “maioria”, mas, de qualquer forma, a injunção bíblica parece ser no sentido de não perverter a justiça seguindo a vontade da maioria ou dos poderosos. A interpretação rabínica, no entanto, ao tirar parte da frase do contexto, a estabeleceu como a evidência textual para regra da maioria na tradição judaica. 

Durante os quase dois milênios em que a comunidade judaica viveu quase exclusivamente na Diáspora e na qual a administração interna da comunidade judaica era deixada, na grande maioria dos casos, às suas próprias instituições, o preceito de seguir a maioria guiou, em grande medida, a abordagem judaica para o estabelecimento do seu próprio modelo de poder e governança. A definição do que constituía maioria, no entanto, era questão de debate. O rabino Eliahu Mizrahi, escrevendo na Turquia no final do século XV, expressou uma opinião inclusiva na definição de quem deveria ser contado para a maioria:
“puro e impuro, inocente e culpado…. todos devem ser contados e devem seguir a decisão da maioria, como está escrito na nossa sagrada Torá: ‘você deve decidir de acordo com a maioria’; e aquele que se opuser à maioria é considerado um pecador. Não faz diferença se a maioria é rica ou pobre, de homens sábios ou de pessoas comuns, porque toda a comunidade é considerada um tribunal em assuntos relativos a todos os seus membros.” [18]
Sua opinião, no entanto, não prevaleceu e as autoridades rabínicas medievais redefiniram muitas vezes o conceito de maioria para fortalecer os grupos dominantes – num claro sinal de que o preceito que defendia distância (ou uma postura crítica) com relação aos poderosos não se aplicava quando a liderança rabínica era, ela mesma, o governo judaico. Em alguns casos, os rabinos consideravam apenas os anciãos da cidade para composição da maioria; Rabeinu Asher chegou a propor, no final do século XIII, que apenas a elite econômica devia opinar em questões tributárias. Samuel de Medina de Salônica, defendeu que o voto deveria ser qualificado e que o voto de uma pessoa culta poderia valor o mesmo que o de mil ignorantes: “aceitar a vontade da maioria quando esta maioria é composta por pessoas ignorantes pode levar a uma perversão da justiça”, ele escreveu no século XVI [19].

Com a Hascalá, o Iluminismo Judaico através do qual as populações judaicas europeias foram integradas às sociedades em que viviam, as comunidades judaicas perderam a autonomia que desfrutavam até então, e a questão da relação judaica com o poder passou por nova transformação, focada nas relações institucionais com o governo laico e com quem tem a legitimidade de representar a comunidade judaica nestas relações institucionais. 

Para as comunidades judaicas da Diáspora, esta continua sendo a dinâmica de atuação até hoje. Assim como em tempos medievais, permanece não resolvida a questão de quem deve ter voto na formação da maioria comunitária. Aberta também continua a questão do relacionamento com o governo laico e do grau de proximidade desejável nesta relação. Ainda mais relevante, continua indefinida a questão sobre como a tradição e a história judaicas podem ajudar a pautar os processos de definição destes assuntos e como os valores judaicos podem nos ajudar a encaminhar estas discussões sem destruir a comunidade no processo. 

[1] A começar pela divisão dos dois Reinos em tempos bíblicos, passando pelos grupos judaicos na época do Segundo Templo (fariseus, saduceus, essênios, etc.), pela divisão entre judeus rabínicos e caraítas no século IX, entre místicos e adeptos do racionalismo de Maimônides no séc. XII, pelas profundas disputas entre Chassidicos e seus opositores (Mitnagdim) no sec. XVIII, entre sionistas e bundistas na Europa Oriental na primeira metade do séc. XX, entre idichistas e hebraistas em comunidades judaicas brasileiras no mesmo período, apenas para ficar em alguns exemplos.
[2] Mishná Avot 5:17.
[3] Mishná Ievamot 1:4.
[4] Números 16:1-17:14.
[5] Veja, por exemplo, Bartenura nesta passagem.
[6] Salmos 42, 44–49, 84, 85, 87, 88.
[7] Talmud Ierushalmi Shabat 1:4. Veja também Levine, Lee I. “Jerusalem: Portrait of the City in the Second Temple Period (538 BCE - 70 CE)”, Jewish Publication Society: Philadelphia, 2002, p. 308 para uma validação histórica desta passagem. 
[8] Mishná Avot 2:3.
[9] Talmud Bavli Guitin 56a-b.
[10] Gen. 45:4-9 e 50:19-20.
[11] Ex. 1:8-16.
[12] Gen. 18:25.
[13] Ex. 32:9-14.
[14] Termo em hebraico que pode ter conotações positivas e negativas. Traduções aproximadas incluem “insolência”, “cara de pau”, “iniciativa”.
[15] Talmud Bavli Bava Metzia 59b.
[16] Deut. 30:12.
[17] Ex. 23:2.
[18] Conforme citado em Biale, David. “Power and Powerlessness in Jewish History”, Schocken Books: New York,1986, p. 49.
[19] Biale, p. 50.

domingo, 13 de maio de 2018

Dvar Torá: Shabat da Marcha (ARI)


Tudo neste mundo tem o seu tempo;
cada coisa tem a sua ocasião.
Há tempo de nascer e tempo de morrer;
tempo de plantar e tempo de arrancar;
tempo de matar e tempo de curar;
tempo de derrubar e tempo de construir.
Há tempo de ficar triste e tempo de se alegrar;
tempo de chorar e tempo de dançar;
tempo de espalhar pedras e tempo de juntá-las;
tempo de abraçar e tempo de se afastar.
Há tempo de procurar e tempo de perder;
tempo de economizar e tempo de desperdiçar;
tempo de rasgar e tempo de remendar;
tempo de ficar calado e tempo de falar.
Há tempo de amar e tempo de odiar;
tempo de guerra e tempo de paz.
(Kohelet 3:1-8)

As palavras de Kohelet, o livro de Eclesiastes no Tanach, foram incorporadas à filosofia popular. Há algum consolo em saber que, depois da guerra, virá à paz; que depois de coisas serem destruídas, virá a época da reconstrução; que depois de termos economizado por muito tempo, poderemos, finalmente, gastar um pouquinho. Ao mesmo tempo, também nos dá serenidade nos momentos de fartura sabermos que um dia, aquilo que estamos plantando será arrancado; que aquilo que nasce hoje também morrerá. Estas palavras parecem tão óbvias, que acabamos acreditando que a vida se desenrola nestas categorias estanques de alegria e pesar, que se sucedem mas continuam distintas.

No entanto, no mundo em que vivemos, cheio de incertezas e em transição permanente, estas palavras parecem refletir pouco a nossa realidade. Coube ao poeta israelense Iehuda Amihai, a tarefa de estabelecer o contraponto a Kohelet:

Uma pessoa não tem tempo em sua vida
para ter tempo para tudo.
Ela não tem temporadas suficientes para ter
uma temporada para todos os fins.
Kohelet estava errada sobre isso.

Uma pessoa precisa amar e odiar ao mesmo tempo,
rir e chorar com os mesmos olhos,
atirar pedras e recolhê-las com as mesmas mãos,
fazer amor na guerra e guerra no amor.
E odiar e perdoar e lembrar e esquecer,
organizar e confundir, comer e digerir
o que a história
Leva anos e anos para fazer.

Uma pessoa não tem tempo.
Quando ela perde, ela procura; quando ela encontra,
ela esquece; quando ela esquece, ela ama; quando ela ama,
começa a esquecer.

E sua alma é experiente, sua alma
é muito profissional.
Apenas seu corpo permanece para sempre
um amador. Ele tenta e erra
fica confuso, não aprende nada,
bêbado e cego em seus prazeres
e suas dores.

A poesia de Amihai, diferentemente de Eclesiastes, captura outra realidade de nossas vidas, tão cheias de dilemas: quando temos que cuidar das crianças enquanto respondemos no celular o email do trabalho; temos brigas feias com nossos parceiros ao mesmo tempo em que os amamos e desejamos intensamente; somos pessoas inquestionavelmente responsáveis que, uma vez ou outra, agem com pouca reflexão; nos comprometemos com a dimensão judaica das nossas vidas sem abrir mão do nosso profundo comprometimento com o mundo.

Na Marcha Pela Vida endereçamos estas complexidades. Em nossa viagem para a Polônia e para Israel, muitas foram as oportunidades em que sentimos emoções antagônicas e simultâneas, em que conhecemos realidades complexas nas quais as decisões corretas não eram óbvias, em que expressamos compromissos paralelos.

Nos campos de Auschwitz-Birkenau e Majdanek, nos impressionamos com o ar bucólico das fábricas da morte: lugares que assassinaram milhões de seres humanos em ritmo industrial não deveriam poder ser tão calmos, tão cheios de paz; mas eram. Os passarinhos que ciscavam em seus verdes gramados ignoravam o sofrimento escondido naquelas estruturas.  Quem já visitou um campo de concentração sabe como é difícil assimilar esta dualidade entre a calma e o mau absoluto. Conversamos muito à noite com nossos alunos sobre tudo isso, sobre a complexidade das situações às quais eles estavam sendo expostos, dos dilemas que elas continham.

Nossos alunos voltaram da viagem mais maduros, capazes de lidar com os dilemas de suas vidas, ao mesmo tempo em que tentam também compreender os dilemas do outro.

Nossa viagem também teve sua quota de polêmica: ao final da caminhada de 3 km entre Auschwitz e Birkenau realizada anualmente em Iom haShoá, o dia em memória às vítimas do Holocausto, plaquinhas são distribuídas para serem preenchidas e colocadas nos trilhos de trem que levam a Birkenau. Entre as muitas plaquinhas escritas por nosso grupo, uma tinha dizeres lembrando da Marielle, a vereadora do Rio de Janeiro brutalmente assassinada há quase dois meses e afirmando o compromisso em defesa de todas as vidas. Essa foto foi postada nas redes sociais, desacompanhada de maior contexto. Para quem vivencia o dia-a-dia do projeto Marcha Pela Vida, não existia conflito algum naquelas palavras, expressas em um campo de concentração em Iom haShoá. Ao lembrarmos das atrocidades do regime nazista contra os judeus, nos comprometemos com a defesa dos direitos humanos de todos e em qualquer lugar. A frase era o resultado possível de uma perspectiva pedagógica que entende que a educação da Shoá não pode olhar apenas para o passado, precisa também garantir que suas lições sejam efetivamente aprendidas e garantam que o “Nunca Mais” realmente valha. Como Amihai propôs em seu poema, vivemos tudo ao mesmo tempo: afirmávamos a dor pela perda dos seis milhões de judeus, ao mesmo tempo em que nos solidarizávamos, através de um símbolo, com o repúdio à violência humana, sob qualquer forma.

Nos orgulhamos do amadurecimento propiciado pela viagem e amadurecer implica igualmente perceber a realidade sob a perspectiva do outro. Falhamos ao não considerar que a expressão de uma perspectiva desacompanhada de seu contexto poderia causar incômodo e até sofrimento. A imagem exigia que quem a visse completasse o resto da narrativa de um projeto que lida com as complexidades da Shoá com a mesma visão desenvolvida pelo nosso trabalho. Alguns o fizeram e aplaudiram a iniciativa. Muitos outros, no entanto, a interpretaram como um desrespeito à memória do Holocausto ou perceberam na iniciativa um ato de apoio partidário, que desconfiguraria o caráter de Iom haShoá. Queremos reafirmar que a manifestação não teve qualquer caráter político-partidário, muito menos teve o propósito de representar um desrespeito a milhões de vítimas da barbárie e à dor de seus familiares. Ao mesmo tempo em que reafirmamos nosso compromisso com uma educação da Shoá comprometida com a defesa dos direitos humanos de todos e em qualquer lugar, queremos nos desculpar sinceramente àqueles que se sentiram ofendidos, pois jamais houve a intenção de causar qualquer mal aos que, de forma justa, ficaram indignados com o nosso ato.

Nesta viagem à Polônia e a Israel, refletimos e festejamos; nos emocionamos, choramos e pulamos de alegria; visitamos lugares da maior tragédia da história judaica recente  e do renascimento de um Estado judeu. Vivenciando nossa história de perto, exploramos com nossos alunos formas de olhar para o futuro comprometidos com nossos valores e com o nosso passado. Frente a um mundo em permanente transição, nossos alunos se preparam para o processo constante de questionar suas antigas certezas, desafiar seus dogmas sem abrir mão de suas identidades, olhar o mundo com novos olhos, sabendo que têm um porto seguro para retornar.

Shabat Shalom!