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sexta-feira, 23 de junho de 2023

Dvar Torá: Uma educação judaica para os nossos tempos (CIP)


Há algumas semanas, eu recebi um pedido por WhatsApp da Priscila Karaver, coordenadora do Man’higut, o programa de preparação de madrichim e desenvolvimento de lideranças da CIP. Na mensagem, ela perguntava quais textos judaicos eu achava que eram essenciais na formação de um madrich. Aos ouvidos de um rabino, um pedido assim é a música que mais gostamos de escutar.

Desde então, tenho pensado em quais seriam estes textos na minha opinião e tenho visto meus colegas também procurando os textos essenciais na opinião deles. Curioso, fui olhar na pasta que Pri tinha compartilhado comigo para ver quais respostas já tinham sido enviadas e fiquei satisfatoriamente surpreso ao encontrar na lista um livro para bebês, daquele com muitas ilustrações, pouco texto e impresso em cartão grosso. O livro, de autoria da rabina Sandy Sasso, se chama “What is God’s Name?” e apresenta uma pluralidade de visões sobre o Divino, em um contexto que é simultaneamente muito judaico e intensamente plural. Usa uma linguagem acessível para crianças pequenas sem banalizar um assunto com o qual muitos de nós temos dificuldade de falar com abertura, especialmente com crianças pequenas, dando espaço para que elas desenvolvam suas próprias hipóteses parar onde está Deus no nosso mundo. Sandy Sasso é, na minha opinião, a melhor autora de livros infantis judaicos, tratando de assuntos importantes em linguagem acessível a crianças e a adultos, levantando questões muito significativas para todas as idades.

Há alguns anos, eu estava no carro e pude escutar uma entrevista dela na rádio. Uma ouvinte ligou e lhe perguntou:

Eu fui criada na Igreja Batista. Eu explorei uma variedade de religiões, tudo do judaísmo ao paganismo e voltei ao cristianismo e me juntei à Igreja Episcopal, porque é o que parece certo para mim. O que eu luto é como dar ao meu filho de sete anos e à minha filha de três anos a liberdade de encontrar seu próprio caminho para Deus e para a verdadeira espiritualidade, você sabe, em oposição à religião imposta pelos pais. Meus dois filhos gostam do aspecto social da igreja e, você sabe, fazem as perguntas habituais sobre Deus, mas quero que eles encontrem a paz que encontrei e não tenho ideia de como encorajar isso.

Era um domingo de manhã, eu voltava da sinagoga onde eu fazia meu estágio e quase bati o carro com essa pergunta para a rabina, pensando que pais judeus tipicamente não querem que seus filhos explorem opções religiosas diferentes das suas — mas a verdade é que gostaríamos que eles encontrassem nas suas vidas respostas que fossem verdadeiras para eles, incluindo no âmbito religioso. A rabina Sasso desviou dos aspectos mais polêmicos da pergunta e focou sua resposta no ensino de valores: 

Nós lemos toneladas de livros, o que dar de comida para [nossos filhos], como criá-los, como fazê-los dormir, como ensiná-los a usar a privada. Devemos também nos empenhar em nos educar sobre nossa própria vida espiritual, porque é muito difícil compartilhar com as crianças o que você está pensando se não estiver pensando sobre essas questões. Então, acho que primeiro precisamos nutrir nossa própria vida espiritual. E a maior parte do que fazemos em termos de nutrir a espiritualidade de nossos filhos realmente acontece quando ninguém mais está olhando, o que significa que nem tudo está planejado. É o que acontece todos os dias. Quero dizer, o que você faz quando vê uma pessoa em situação de rua na rua? Como você reage quando um animal é atropelado na estrada, um esquilo, por exemplo? Como agimos com outras pessoas? Todas essas são mensagens para nossos filhos sobre o que realmente importa na vida, o que é precioso, o que é mais importante do que ganhar a vida e seguir nossa rotina diária.

Acho que a sociedade faz um trabalho muito bom em nos ensinar como ser consumidores e um trabalho muito bom em nos ensinar como sermos concorrentes.

A pergunta que acho que os pais estão lutando para responder é como não apenas ensinamos a mente de nossos filhos, mas como ensinamos suas almas? E essa é uma questão muito mais profunda. E sei que queremos que nossos filhos sejam mais do que consumidores e concorrentes.

Na Escola Lafer acreditamos que o judaísmo precisa nos ensinar a sermos humanos mais capazes, que vão além de seus papéis como consumidores e concorrentes.

Eu tenho um amigo que estudo educação física na faculdade e que sempre me disse "educação física não é educação do físico; educação física é educação pelo físico". De alguma forma, o mesmo conceito se aplica à educação judaica. Claro que educação judaica é ensinar judaísmo mas também é ensinar através do judaísmo. É como ensinamos os nossos filhos o que fazer ao encontrar uma pessoa em situação de rua ou um animal atropelado na estrada, o que fazer no encontro com outras pessoas.

Há um outro livro sobre o qual eu tenho falado muito nos últimos anos, em particular com meus alunos de educação adulta, chamado "Here All Along", algo como "Sempre esteve aqui", de Sarah Hurwitz. [2] Na introdução do livro, ela conta que era uma aluna de bat-mitsvá em uma sinagoga de subúrbio nos Estados Unidos e achava o que aprendia absolutamente chato. Ela consegue enrolar os pais para trocar de sinagoga, para uma em que o curso era mais fácil e menos vezes por semana. Depois de trocar, ela se arrepende e se dá conta de que, mesmo chato, o primeiro curso era bem melhor, mas já não tinha o que dizer aos pais para voltar para a primeira sinagoga. Ela aprendeu essa versão chata do judaísmo e nunca mais se engajou com educação judaica. Ela teve uma carreira de sucesso, tendo se tornado a redatora-chefe dos discursos da primeira-dama dos Estados Unidos. Quando o governo terminou, ela, sem ter muito o que fazer, resolveu se inscrever em um curso de judaísmo para adultos. Sobre o que ela aprendeu, ela escreveu: "Este não era o velho e rotineiro judaísmo da minha infância. Era algo relevante, infinitamente fascinante e vivo."

O desafio que temos na educação dos nossos jovens é como apresentar um judaísmo que não é só preocupado com a ordem do acendimento das velas da chanukiá, mas é preocupado com as questões mais importantes das vidas deles e das nossas. Como diz a rabina Sandy Sasso, se o judaísmo não for um fator nas nossas vidas, não tem como transmití-lo para os nossos filhos.

Na parashá desta semana, Côrach lidera uma rebelião contra Moshé: "se somos todos parte de uma nação de sacerdotes, por que só você está na liderança?" Ao final da história, Moshé continua como líder, mas podemos ler esta história e focar nas minúcias da narrativa ou podemos nos perguntar como ela se conecta com o momento que estamos vivendo, com a questão da democracia, sobre a forma de contestar o sistema político. Podemos usar a tradição judaica para ficar só nela, para ficar olhando para dentro de nós mesmos cada vez mais, ou podemos educar para um judaísmo que é sofisticado, que serve de lente, através da qual nos relacionamos com o mundo. 

Esse é o trabalho que fazemos na Escola Lafer. Em geral, as pessoas pensam que é um programa de preparação para B-Mitsvá mas é um programa de preparação de adultos judeus, no qual a cerimônia é só a desculpa que usamos para convencer as famílias a virem conversar com a gente, mas o trabalho que fazemos é pensar como estes jovens adultos judeus poderão funcionar em um mundo cujas dinâmicas nem conhecemos ainda, mas no qual esperamos que o judaísmo seja um fator importante nas suas decisões e nos seus valores.

Se vocês conhecem crianças que poderiam aproveitar uma abordagem assim, liga pra gente para pensarmos juntos como o judaísmo pode ser um fator na vida deles.

Shabat Shalom!


 

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Dvar Torá: O culpado pelo ciúme é o ciumento (CIP)


Outro dia, eu estava com a minha filha de 14 anos (quase 15!) na cozinha e ela me disse: “pai, quando eu tiver 18 anos eu vou escrever um livro sobre você, que vai chamar ‘Meu Pai, o Rabino.’” Segundo ela, aqui nas prédicas eu me apresento como uma pessoa séria, respeitada, e ela queria apresentar o outro lado do pai dela. Um desses lados sobre o qual minha filha queria escrever no livro é o fato de que eu, com uma frequência incrível, choro nas séries ou nos filmes que assistimos juntos. O curioso é que eu não acho que me apresente aqui tão sério, e, mesmo que de fato minhas relações pessoais, especialmente com meus filhos, incluam facetas da minha personalidade que eu não necessariamente revelo profissionalmente, já aconteceram algumas vezes de a minha voz embargar e eu ter que segurar o choro em várias das minhas prédicas.

Esses dias, entre lágrimas, eu assisti o último episódio da série Ted Lasso, que passa na Apple TV+. Essa série, sobre um treinador de futebol americano universitário contratado para treinar um time de futebol profissional na Premier League inglesa, foi um fenômeno global em termos de reconhecimento dos críticos e prêmios para os quais foi indicada e que efetivamente venceu. No entanto, como a plataforma Apple TV+ não é das mais populares por aqui, imagino que a grande maioria de vocês não a tenha assistido — mesmo assim, eu vou tentar não dar nenhum spoiler importante.

O que me atraiu na série foi a forma como ela vai na contramão de várias outras séries de sucesso. Em um mundo no qual o culto à personalidade é tão forte como no futebol profissional, ele tenta nadar contra a maré. Ted Lasso é o que, no linguajar judaico, chamaríamos de mensch. Além dele, ao longo das três temporadas da série, os demais personagens se transformam profundamente, na maioria dos casos, procurando ser pessoas melhores. No episódio final, um dos personagens que mais cresceu, reúne um grupo de amigos para dizer que, apesar de estar tentando se tornar uma pessoa melhor, ele está inconsolável frente à percepção de que ele continua sendo a mesma pessoa. “Mas você queria ser outra pessoa?!”, Ted lhe pergunta. “Sim, alguém melhor”, ele responde, emendando com a pergunta, “As pessoas podem mudar?”. Outro personagem responde: “eu não acho que mudemos, só aprendemos a aceitar quem sempre fomos”. Um terceiro personagem, que neste finalzinho da série está imerso em um processo de t'shuvá, de recohecimento dos seus erros, e tentando corrigi-los, diz: “eu acho que as pessoas podem mudar. Vocês sabem, às vezes para pior e às vezes para melhor.” Mais alguém entra na conversa, dizendo: “seres humanos nunca serão perfeitos. O melhor que podemos fazer é continuar pedindo ajuda e aceitando-a quando pudermos. E se você continuar fazendo isso, você sempre estará indo na direção de melhorar.”

Nesse momento, com os olhos vermelhos e o rosto molhado, eu fico pensando que eles têm razão. Não somos perfeitos e o máximo que podemos pedir é que, de maneira geral, estejamos caminhando na direção da melhora. Na tradição judaica, ou pelo menos na parte da tradição judaica pela qual eu me apaixonei, Deus tampouco é perfeito — são inúmeros os midrashim em que Deus se arrepende de algo que tenha feito. Há um midrash, por exemplo, de acordo com o qual Deus criou vários mundos antes do nosso, mas não ficou contente com o resultado, os destruiu e criou um novo. [1] Mesmo depois de estar com este mundo completo, Deus decide destrui-lo através do Dilúvio e, frente ao comportamento dos israelitas, propõe a Moshé mais de uma vez destruir todo o povo hebreu e começar de novo, só com Moshé.

Eu tinha um chefe que dizia que os erros da equipe não o incomodavam, desde que cada vez cometêssemos um erro novo. Segundo ele, nossos erros indicavam que estávamos tentando coisas novas, nos arriscando; algumas dessas tentativas dariam certo e outras, não. Se não fôssemos capazes de aprender dos nossos erros, no entanto, aí teríamos um problema. Nessa mesma linha de pensamento, quando a Fundação Kohelet criou um prêmio para a Educação Judaica, uma das 6 categorias foi “tomada de risco e fracasso” [2] — só não erra quem não toma riscos e mantermo-nos parados no mesmo lugar de sempre é a receita mais certeira para nos tornarmos irrelevantes muito em breve.

Essa forma de reconhecer e encarar nossa imperfeição e a intenção de caminharmos para frente pode ser aplicada também a coletivos, a sociedades e até mesmo à nossa tradição religiosa. Ter a coragem de reconhecer tanto os aspectos maravilhosos do judaísmo quanto as áreas nos quais ele nos frustra é o primeiro passo para sabermos para onde caminhar. Na parashá desta semana temos um exemplo de uma passagem problemática que nem sempre recebeu o olhar crítico que precisaria.

De acordo com a Torá, quando um marido tem ciúmes de sua esposa e teme que ela o tenha traído, ele deve levar a esposa ao sacerdote, que preparará uma mistura de água santificada e terra, na qual dissolverá a tinta com a qual escreveu um pergaminho com maldições caso as suspeitas ciumentas do marido sejam verdadeiras. A esposa deve, então, beber a mistura de água, terra e tinta. Se ela, de fato, tinha traído o marido “seu ventre se distenderá e sua coxa se enfraquecerá e a esposa se tornará uma maldição em meio ao seu povo.” [3] Por esta doutrina, caso não houvesse qualquer motivo para o ciúmes, ao beber a água com terra e tinta, a esposa não sofreria dos mesmos males. Neste caso, nem o marido, nem o sacerdote oferecem ao menos um pedido de desculpas por terem forçado-a a passar por este ritual.

A violência e a humilhação refletidas neste ritual devem chocar a todos. Lembremos que não existe na Bíblia qualquer procedimento semelhante para o marido que, estando casado com uma esposa, tem um relacionamento com outra pessoa. Na verdade, em tempos bíblicos, homens podiam casar-se com mais de uma esposa sem que isso fosse considerado traição do pacto nupcial.

Na literatura rabínica, ao perceberem adequar o ritual bíblico à realidade que eles conheciam de que a mágica não funcionava, os rabinos adicionaram um conceito de acordo com o qual mulheres que tinham mérito podiam ter as consequências por seus atos postergadas. [4] Ou seja: mesmo depois de sobreviver o ritual vexatório, ela ainda não era considerada inocente, mas podia ser que sua punição só tivesse sido retardada. Na Mishná, Rabi Shimón chega a alertar os outros rabinos de que “aquele que diz que o mérito atrasa a punição, enfraquece o poder da água frente a todas as mulheres que a bebem. Além disso, você difama as mulheres inocentes que a beberam, pois as pessoas dirão: ‘elas são impuras mas seu mérito atrasou a punição.’”  Apesar do aviso, rabi Iehudá haNassi, o redator da Mishná, decidiu manter esse conceito, dizendo que elas poderiam sobreviver, mas se tornariam estéreis e sua saúde deterioraria gradativamente. 

O ritual acabou sendo abolido, não por qualquer objeção moral a ele, mas porque o rabino Iochanán ben Zacái achou que, considerando o alto grau de infidelidade matrimonial no final do período do 2º Templo, não fazia mais sentido acusar ninguém deste pecado. [5]

Ao encontrarmos estes textos na nossa tradição, tanto a passagem bíblica como o tratamento que ele recebeu na Mishná, temos que denunciá-los, reafirmar que o ciúmes é uma doença do ciumento, que é ele que deve procurar ajuda e tratamento. Que a vítima do ciúmes nunca pode ser penalizada; ela deve ser acolhida e empoderada, encorajada a refletir se o relacionamento é saudável e se deseja continuar nele. Sempre vale destacar e divulgar o trabalho de prevenção da e resposta à violência doméstica desenvolvido pelo Grupo de Empoderamento e Liderança Feminina da FISESP. Informe-se mais visitando o site elf.ong.br

Que nas nossas vidas pessoais e comunitárias, nos nossos textos e nas nossas tradições, possamos aceitar nossas próprias falhas e as dos outros, sem nunca deixar de procurar a melhoria constante.

Shabat Shalom!



 

[1] Bereshit Rabá 3:7 

[2] https://koheletprize.org/pd-category/risk-taking-failure/

[3] Num. 5:27

[4] Mishná Sotá 3:4-5

[5] Mishná Sotá 9:9


sexta-feira, 26 de maio de 2023

Dvar Torá: A entrega da Torá vai muito além da entrega das Tábuas (CIP)


Alguém sabe qual a palavra do ano de 2022?

Quem respondeu a minha pergunta com outra pergunta, “de acordo com quem?” ganhou alguns pontinhos… Eu fui pesquisar o assunto e descobri uma enormidade de listas em várias línguas que tentam expressar em uma palavra o espírito geral da sociedade naquele ano. Aparentemente, tudo começou em 1972, quando a Sociedade para a Língua Alemã publicou a palavra do ano de 1971, o ano em que eu nasci. Para surpresa de todos, a palavra escolhida não foi “Rogério”, mas chegou bem perto. “Aufmüpfig”, a palavra escolhida, é traduzida como “rebelde” ou “insubordinado”.

Em português, existem, pelo menos, duas listas: uma organizada em Portugal e outra no Brasil, que vem sendo compilada desde 2016. Indo pela escolha de cada ano, vamos vendo como os ventos estão soprando e mudando de direção nos últimos sete anos. Veja a sequência desde 2016 até 2022: indignação, corrupção, mudança, dificuldades, luto, vacina e esperança. Nas listas em inglês, há uma predileção por palavras recém-criadas ou cujo uso ganhou novo significado. Em 2015, a palavra do ano escolhida pelo dicionário Oxford foi o emoji de uma pessoa chorando de rir, em 2016 foi “pós-verdade”, e em 2017 foi “youthquake”, uma mistura de “youth”/ “juventude” e “earthquake” / “terremoto” para indicar uma mudança na sociedade ou na cultura em resposta às demandas das pessoas mais jovens.

O que eu tinha ido procurar nessas listas e acabei não encontrando era a palavra “narrativa”, que apesar de não ser nova me parece que ganhou grande destaque nos últimos dez ou vinte anos. Quando eu procurei “narrativa” no dicionário, no Aurélio (1999) aparecia:

1 - A maneira de narrar.

2 - Narração.

3 - Conto, história.

Mas o significado no qual eu estava pensando para “narrativa” não era nenhum destes. Fui procurar em um dicionário em inglês (Oxford, 2021):

1 - um relato falado ou escrito de eventos relacionados; uma história.

2 - a parte ou partes narradas de uma obra literária, distintas do diálogo.

3 - a prática ou arte de contar histórias.

4 - uma representação de uma situação ou processo particular de forma a refletir ou estar em conformidade com um conjunto abrangente de objetivos ou valores.

Era esta última que eu estava buscando: “narrativa” como a perspectiva específica que damos ao que estamos apresentando, em sintonia com um conjunto de objetivos e valores. Se a palavra “narrativa” não apareceu em nenhuma lista de palavra do ano, a expressão “disputa de narrativas” certamente deveria ter aparecido — nós a vivemos em inúmeros aspectos das nossas vidas. Pensem em como se conta sobre a Guerra da Ucrânia no Ocidente e nos países aliados de Moscou, sobre o processo que tirou Dilma da presidência, se um único jogo disputado entre representantes de dois continentes apenas pode ser considerado campeonato mundial, sobre casais que se separam ou sobre quase toda briga. Há até um ditado que diz que para todo evento sempre há três lado: o de quem conta, o de sobre quem se conta, e a verdade. Definição perfeita de “disputa de narrativas.”

Estamos em Shavuot, a festa que, de acordo com a narrativa rabínica, comemora a entrega da Torá no Monte Sinai. É aqui que o consenso acaba e começa a disputa de narrativas….

O que exatamente foi entregue no Monte Sinai? Os Rabinos se esforçaram para que a palavra Torá fosse tão ambígua quanto possível. De um lado, “Torá” são os cinco livros que Moshé entregou ao povo de Israel: בראשית, שמות, ויקרא, במדבר, דברים, , Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Além disso, “Torá” pode significar também todo o Tanach, a Bíblia Hebraica, e seus 39 livros. Mais do que isso, Torá pode significar toda a literatura rabínica, tanto a Torá escrita quanto a Torá Oral. Há um midrash de acordo com o qual até mesmo uma nova interpretação dita por um aluno esforçado ao seu professor nos dias de hoje já foi revelada por Deus a Moshé no Monte Sinai. [1]

Qual então o significado da palavra “Torá” quando dizemos que a “Torá” foi entregue no Monte Sinai? Foram as Dez Afirmações? Foram as Leis de acordo com as quais um povo recém-libertado deveria se comportar? Foram os valores contidos, não apenas nas leis, mas principalmente nas histórias que lemos na Torá? Foi a tradição rabínica do estudo e do debate, do questionamento incessante a todo momento?

O que nós celebramos hoje quando celebramos o recebimento da Torá em Shavuot? Na dinâmica conhecida dos conflitos de narrativas, este é um tema em debate. 

Há bastante gente, mesmo no mundo judaico liberal, que defende e ensina que Shavuot é a data do recebimento das leis. Ponto. De acordo com essa narrativa, o ponto central da prática judaica é o respeito estrito à halachá, a lei judaica, e, portanto, é seu recebimento que marcamos em Shavuot. Eu não sei quanto a vocês, mas as leis que governam a minha rotina não vêm da Torá — vêm de dois mil anos de tradição rabínica de encontro, duelo e questionamento com a Torá. Meu relacionamento com a Torá e com as inúmeras leis que, de fato, fazem parte do seu texto, não é fundamentalista, não é literal. Portanto, se Chag Matán Torá, a festa da Entrega da Torá, tem a ver só com a entrega das Leis, eu teria pouco o que comemorar.

O que eu descubro na Torá, muito além das Leis, são narrativas que me permitem encontrar o Divino, em disputa e em dança, com carinho e com tensão, na companhia de 2.000 anos de debates, interpretações, comentários que buscam a forma de viver a relação com o Divino nas ações mais prosaicas, no trocar a fralda de um bebê, no comer a fruta da estação, na declaração do Imposto de Renda que eu ainda não terminei. 

Para mim, Shavuot é a data de celebrar este encontro verdadeiro entre judeus e  seus judaísmos, assim no plural, e eu reconheço que este também é um ponto de vista, uma narrativa, em conflito com aquela outra. E provavelmente, hajam outras narrativas que discordam dessas duas e junto com as quais compõem um quadro de múltiplas perspectivas contraditórias, mas não por isso menos verdadeiras. Nada mais judaico!

Chag Sameach!




 

[1] Vaicrá Rabá, Acharei Mot 22:1

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Dvar Torá: O que desqualifica para a liderança hoje em dia? (CIP)


Minha prédica de hoje está em diálogo com os temas que a rabina Tati desenvolveu no comentário dela [1], por isso eu recomendo fortemente que as pessoas leiam-no quando puderem para enriquecer a conversa que estamos estabelecendo.

No seu comentário, a rabina Tati trata de uma passagem particularmente problemática da parashá desta semana:

ה׳ falou a Moshé: Fale com Aharón e lhe diga: Nenhum homem da tua descendência em todos os tempos que tiver um defeito será qualificado para oferecer a comida de seu Deus. Ninguém que tenha um defeito será qualificado: nenhum homem que seja cego, ou coxo, ou tenha um membro muito curto ou muito longo; nenhum homem que tenha uma perna quebrada ou um braço quebrado; ou que seja corcunda, ou anão, ou que tenha uma protuberância no olho, ou que tenha cicatriz de furúnculo, ou inflamação das gengivas ou testículos esmagados. Nenhum homem entre os descendentes de Aharón, o sacerdote, que tiver um defeito será qualificado para oferecer a oferta queimada de ה׳; tendo defeito, não poderá oferecer o alimento de seu Deus. Ele pode comer do alimento de seu Deus, tanto do santíssimo quanto do santo; mas não entrará atrás da cortina nem se aproximará do altar, porque tem defeito. Ele não profanará estes lugares sagrados para mim, pois eu ה׳ os santifiquei. [2]

A rabina Tati, incomodada com o teor do texto, um incômodo do qual eu compartilho, pergunta: “Assim fala Deus dos Seus filhos? Pode Deus ser preconceituoso? Não somos todos criados à Sua imagem e semelhança? O amor divino não é incondicional? Somos só aquilo o que se vê? Moshé tinha dificuldade na fala e ninguém esteve mais perto da presença divina do que ele.” 

O incômodo não é apenas dos rabinos desta geração. Ainda que o tom da crítica seja mais ameno e que tenhamos que ler nas entrelinhas, percebam como a seguinte história talmúdica oferece uma critica incisiva das regras estabelecidas na nossa parashá: 

Rabi Elazar, filho de Rabi Shimon, veio de Migdal Gedor, da casa de seu rabino, e ele estava montado em um burro e passeando na margem do rio. E ele estava muito feliz, e sua cabeça estava inchada de orgulho porque ele havia estudado muito a Torá. Ele se deparou com uma pessoa extremamente feia, que lhe disse: ‘Saudações a você, meu rabino’, mas o rabino Elazar não retornou sua saudação. Em vez disso, Rabi Elazar disse a ele: ‘Pessoa sem valor, quão feio é aquele homem. Todas as pessoas da sua cidade são tão feias quanto você?’ O homem disse a ele: ‘Eu não sei, mas você deveria ir e dizer ao Artesão que me fez: Quão feio é o vaso que você fez’. Quando Rabi Elazar percebeu que havia pecado, desceu de seu burro e prostrou-se diante dele, e disse ao homem: ‘Pequei contra você; me perdoe.’ O homem lhe disse: ‘Não te perdoarei até que você vá ao Artesão que me fez e diga: Que feio é o vaso que Você fez.’ Ele caminhou atrás do homem, tentando apaziguá-lo, até chegarem à cidade. O povo de sua cidade saiu para cumprimentá-lo, dizendo-lhe: ‘Saudações a você, meu rabino, meu rabino, meu mestre, meu mestre.’ O homem disse a eles: ‘Quem vocês estão chamando de meu rabino, meu rabino?’ Disseram-lhe: ‘A este homem, que caminha atrás de você.’ Ele lhes disse: ‘Se este homem é um rabino, que não haja muitos como ele entre o povo judeu.’ Eles lhe perguntaram: ‘Por que você diz isso?’ Ele disse a eles: Ele fez isso e aquilo comigo. Eles disseram a ele: ‘Mesmo assim, perdoe-o, pois ele é um grande estudioso da Torá.’ Ele lhes disse: ‘Por causa de vocês eu o perdôo, contanto que ele não se acostume a se comportar assim.’ [3]

Está estabelecido, então, que tanto para os rabinos de hoje como para os rabinos do Talmud, uma pessoa não deve ser julgada pela sua aparência física. A rabina Julia Watts Belser, no entanto, destaca que os rabinos do Talmud mudaram o foco das exclusões mas não acabaram com elas: daqueles que tinham alguma deficiência física para aqueles que tinham dificuldade de compreensão ou discernimento. Ela escreve: “Os sábios temiam e estigmatizavam a surdez, deficiências da fala, deficiências intelectuais e cognitivas, que eles percebiam como algo que tornava uma pessoa incapaz de participar do sistema de santidade que eles criaram.” [4] Seu ponto é que cada geração estabelece um padrão de acordo com o qual suas lideranças são validadas — na época bíblica, era a capacidade e perfeição físicas, na época do Talmud, a capacidade intelectual e de articulação oral.

Em nossos dias, aprendemos que esses atributos não são nem necessários, nem suficientes. Conhecemos líderes com atributos físicos impecáveis ou com dons de oratória invejáveis cuja capacidade de liderança ou cujo comportamento ético nos desapontaram de forma profunda. Ao mesmo tempo, passamos a reconhecer a capacidade de liderança de pessoas que, de acordo com estes parâmetros adotados no passado, teriam sido desconsideradas, pessoas cujas imperfeições são óbvias e salientes — e cujas qualidades são igualmente óbvias e salientes.

No seu comentário, a rabina Tati menciona Moshé, cuja dificuldade na fala não o impediu de se tornar um dos maiores líderes do povo judeu. Em nossos tempos, penso em Stephen Hawking, cuja fragilidade física não preveniu que ele fosse reconhecido como uma referência fundamental na física teórica, e em Greta Thunberg, um exemplo de jovem ativista, que se descreve tanto como como uma ativista ambiental quanto como uma ativista pelos direitos dos autistas. Ela disse: “Fui diagnosticada com síndrome de Asperger, TOC e mutismo seletivo. Isso basicamente significa que só falo quando acho necessário. Agora é um desses momentos.” [5]

Estes são apenas dois exemplos. Pelos parâmetros antigos, teríamos perdido suas imensas contribuições — será que hoje temos novos parâmetros pelos quais julgamos e validamos as contribuições de nossas lideranças?

Não é uma discussão nova: será que líderes — em qualquer ramo de atividade — devem ser julgados apenas pela qualidade do seu trabalho ou há parâmetros mais amplos que devem ser considerados?

Recentemente, um movimento de protesto de torcedores e, especialmente de torcedoras, do Corinthians levou Cuca, o técnico que tinha sido recém contratado, a pedir demissão menos de uma semana depois de aceitar o cargo. O protesto das torcedoras vinha do fato de que ele foi condenado pela Justiça suíça na década de 1980 pelo estupro de uma menina de 13 anos e nunca chegou a cumprir sua pena. [6] Uma falha técnica ética desta proporção justifica o “cancelamento” (para usar um termo da moda) de um técnico premiado, cujo talento não é questionado por quase ninguém?

No mundo rabínico, temos exemplos similares, mas cujas consequências foram muito distintas. Shlomo Carlebach era um rabino que navegava entre a ortodoxia Chabad e o mundo Renewal. Autor de algumas melodias mais cativantes da liturgia judaica, inclusive de músicas que cantamos aqui no Cabalat Shabat da CIP. Quando eu cheguei aos Estados Unidos para estudar, em 2005, já escutávamos acusações de assédio sexual contra ele. Após o início do movimento #metoo, ganhou força o fluxo de mulheres que o acusavam. Uma pessoa pesquisando o assunto contou mais de 15 mulheres que diziam ter sido vítimas de abuso sexual por parte do Carlebach. [7] Ao mesmo tempo, enquanto boa parte da Ortodoxia rejeita o canto de mulheres, especialmente na sinagoga, Shlomo Carlebach encorajou muitas mulheres a cantarem na bimá e ordenou mulheres rabinas muito antes de outros setores da Ortodoxia. Sua filha, Neshama Carlebach, uma renomada cantora e compositora, em resposta às acusações, escreveu um artigo que ela começa da seguinte forma: 

Minhas amigas, venho humildemente perante vocês. Sou grata por ter o privilégio de compartilhar o que espero que seja uma contribuição para a conversa que estamos travando neste momento de transformação. Reconheço que quem eu sou - meu próprio nome - pode dificultar o recebimento de qualquer coisa que eu queira oferecer. Ainda assim, nossa tradição nos ensina que silêncio é consentimento, e não posso ficar calado diante de tanta dor. Minhas irmãs, eu ouço vocês. Eu choro com vocês. Eu ando com vocês. Estarei com vocês até o dia em que o mundo se comprometer com a cura e a integridade para todas, para as inúmeras mulheres que sofreram os males do assédio e da agressão sexual. [8]

Em outros trechos do artigo, ela escreveu: “Eu vi a música do meu pai curar a vida de alguém diante dos meus olhos e li sobre como essa mesma música desencadeou uma dor profunda em outras pessoas. (…) Aceito a plenitude de quem meu pai era, com falhas e tudo. Estou com raiva dele. E me recuso a ver seus defeitos como a totalidade de quem ele era.” Há sinagogas que se recusam a cantar melodias escritas por Carlebach; há outras que as usam sem atribuir autoria e há também que prefira não misturar a qualidade da obra com as imperfeições do seu criador. A Central Synagogue de Nova York estabeleceu uma moratória de um ano no qual não tocaram qualquer melodia composta por Shlomo Carlebach; ao final deste período, convidaram Neshama Carlebach, que passou a ser o destino de críticas e de boicotes pelas ações de seu pai, para cantar, junto com o chazán da sinagoga, uma melodia escrita pelo pai.

Quais são nossos parâmetros para validar nossos líderes? Em algum momento, aqui em São Paulo “rouba mas faz” era o epíteto pelo qual conhecíamos um político no qual muitos nos recusávamos a votar. Hoje, a mesma frase é usada sem qualquer pudor para classificar em quem votamos. No mundo corporativo e nas nossas referências culturais, a genialidade é frequentemente acompanhada de características indesejadas, de um ego hipertrofiado, de arrogância e de agressividade no trato inter-pessoal, atributos que são “aceitos” como o preço a ser pago pela genialidade. Há parâmetros capazes de desqualificar uma conduta mesmo que o executivo traga grande lucro para sua companhia, que o artista seja brilhante ou que o médico consiga tratar situações clínicas em que outros teriam falhado? 

Somos todos pessoas imperfeitas, cheias de defeitos, alguns que apenas nós mesmos conhecemos. Algumas das nossas falhas atrapalham a nós mesmos, podem até incomodar a outras pessoas, mas não as degradam, não as desumanizam, não lhes causam traumas profundos. E há falhas éticas e morais cujas enormes consequências recaem sobre os outros e têm impactos que, muitas vezes, nem conseguimos estimar.

Em tempos bíblicos, a falta de perfeição física desqualificava para o exercício de liderança. Na época do Talmud, era a falta de perfeição intelectual e cognitiva que fazia este papel. Hoje, rejeitamos estes parâmetros como flagrantes violações da ideia central do judaísmo de que somos todos criados à imagem Divina, dotados de uma dignidade inalienável. Precisamos, no entanto, de novos parâmetros para que alguém possa acessar posições de liderança. 

Chegamos à época em que profundas falhas de caráter e violações éticas não devem mais ser toleradas como justificáveis, nem mesmo para pessoas cujas contribuições em seus campos de atuação sejam imensas. É hora de dizer “דַּי”, "dai", “basta”, e começarmos a verdadeiramente valorizar o comportamento decente, respeitoso, humano e construtivo.

Shabat Shalom 

 

[1] https://cip.org.br/abracar-as-diferencas-e-se-comprometer-com-a-inclusao-parashat-emor/

[2] Lev. 21:16-23.

[3] Talmud Bavli Taanit 20

[4] Julia Watts Belser, “Reading Talmudic Bodies: Disability, Narrative, and the Gaze in Rabbinic Judaism”, p. 9-10

[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Greta_Thunberg

[6] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/04/28/sentenca-que-condenou-cuca-por-ato-sexual-com-menor-ha-34-anos-e-confirmada.ghtml

[7] https://www.timesofisrael.com/after-metoo-some-congregations-weigh-changing-their-tune-on-shlomo-carlebach/

[8] https://blogs.timesofisrael.com/my-sisters-i-hear-you/






sexta-feira, 14 de abril de 2023

Dvar Torá: Silêncios que enaltecem e silêncios que destroem (CIP)


Faz uns anos, eu fui convidado a participar da cerimônia de 70 anos da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Em meio a várias outras autoridades religiosas citando passagens de suas escrituras sagradas, eu me aproximei do púlpito com minha cópia do Pequeno Príncipe para ler a passagem em que a raposa ensina ao príncipe que “o essencial é invisível para os olhos.” [1]

Eu conto essa história porque hoje eu vou citar nossa grande filósofa Rita Lee, que em “Jardins da Babilônia” cantou: “Pra pedir silêncio eu berro, pra fazer barulho, eu mesma faço.” [2] No tema do oxímoro, hoje eu vou gastar os próximos 15 minutos sem parar de falar sobre o silêncio.

Não sei se vocês já se deram conta, mas há vários tipos de silêncio — ou pelo menos há várias formas de interpretar o silêncio. Se durante a prédica, a comunidade inteira está em silêncio pode ser um sinal de atenção e engajamento ou o oposto deles, e a única forma de descobrir qual tipo de silêncio é, é olhando nos olhinhos de vocês e tentando “ler” as mensagens não verbais que vocês emitem. Há o silêncio que indica aceitação e o que expressa a mais profunda oposição. Quando as pessoas ficam profundamente magoadas, muitas vezes é através do silêncio que elas respondem, mas o silêncio também pode indicar parceria e cumplicidade, como eu testemunhei recentemente em um casamento, no qual os olhares que os noivos trocavam em silêncio sob a chupá falavam muito mais do que um milhão de palavras poderiam.

Na tradição judaica fala-se muito em defesa do silêncio — o que, pelo menos,  cria precedente histórico para a minha prática de falar sem parar sobre o silêncio. No livro de Provérbios, tradicionalmente atribuído ao rei Shlomô, diz-se em uma passagem que “mesmo uma pessoa tola será considerada sábia se se mantiver calada” [3]; em outra passagem do mesmo livro, é dito que “a pessoa tola não almeja a compreensão, apenas revelar seus pensamentos.” [4] Em Pirkei Avot, Rabi Akiva diz que “uma cerca protetora ao redor da sabedoria é o silêncio” e vários comentaristas explicam que a construção estranha da frase é para deixar claro que o silêncio é a única proteção possível para a sabedoria. [5] Outros comentaristas indicam que, além de proteger a sabedoria, o silêncio também permite que escutemos uns aos outros com maior atenção. No Talmud, os Rabinos afirmam que “o silêncio é apropriado para uma pessoa sábia, ainda mais para um tolo.” [6] Para quem já viu uma coleção do Talmud e seus 63 tratados, que nas minhas estantes equivalem a uma enciclopédia com 44 volumes, é no mínimo curioso que o silêncio fosse tão valorizado.

Na parashá desta semana, há uma situação de silêncio que vem sendo debatida pelos nossos sábios sem que seja estabelecido um consenso sobre  de qual tipo de silêncio se tratava. De forma pouco explicada e muito debatida, Nadav e Avihu, dois cohanim filhos de Aharón são tragados pelo fogo Divino em resposta a um “fogo estranho” que eles tinham ofertado [7]. Na sequência, o texto afirma apenas que “וַיִּדֹּם אַהֲרֹן”, “Aharón silenciou”. [8]

A reação de Aharón, o pai que perdeu seus filhos, choca pela passividade. Quando Sará soube da quase morte de seu filho Itschak, diz o midrash que sua alma fugiu do seu corpo. Quando Iaacóv ouviu que seu filho Iossêf tinha sido devorado por um animal selvagem, rasgou suas roupas, pôs pano de saco nas suas costas e guardou luto por seu filho por muitos dias. Mas Aharón ficou em silêncio.

Os comentaristas procuraram compreender o silêncio de Aharón. Há quem diga que seu coração se tornou pedra e que ele não tinha mais a capacidade de dizer nada, sua alma havia partido. [9] Por outro lado. há outros comentaristas que dizem que sua espiritualidade elevada permitiu que ele estivesse na mais completa calma, justificando a decisão Divina de levar seus filhos. [10]

E o nosso silêncio hoje, também pode ser interpretado de múltiplas formas? Dentro do mundo judaico, Ellie Wiesel foi um dos intelectuais que se dedicou a estudar o silêncio. De um lado, ele não permitiu que Orson Welles, o celebrado diretor de “Cidadão Kane” transformasse seu livro “A Noite” em um filme, argumentando que ele tinha escrito silêncios entre suas palavras e o cinema não deixava espaço para esses silêncios.” [11] O livro é um relato autobiográfico da experiência de Wiesel nos campos de extermínio nazistas, no qual ele afirma: 

“Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que converteu minha vida numa noite longa e trancada a sete chaves. Nunca esquecerei aquela fumaça. Nunca esquecerei os rostinhos das crianças cujos corpos vi se transformarem em espirais sob um firmamento calado. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha fé para todo o sempre. Nunca esquecerei o silêncio noturno que me tirou por toda a eternidade o desejo de viver. Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram meu Deus e minha alma, em que meus sonhos assumiram a face do deserto. Nunca esquecerei, ainda que fosse condenado a viver por tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.” [12]

O mesmo homem que impediu que seu livro virasse filme para proteger o silêncio que o texto continha dedicou sua vida à militância contra o silêncio que permitiu aquela atrocidade, mesmo na presença de pessoas poderosas. Em uma cerimônia na Casa Branca na época em que Ronald Reagan era presidente, ele protestou contra sua intenção de visitar um cemitério na Alemanha onde vários soldados SS estavam enterrados. “Seu lugar é com as vítimas dos SS”, ele disse ao presidente. Quando Clinton era presidente, ele o alertou que, como judeu, não podia aceitar o genocídio acontecendo na Iugoslávia naquela época. 

Wiesel jurou “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação” e talvez essa seja a linha que diferencia o silêncio produtivo, que favorece a escuta, daquele que permite que atrocidades sejam cometidas com o consentimento tácito implícito na nossa inação. 

“Devemos tomar partido”, ele disse. "Neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, não o atormentado. Às vezes devemos interferir. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana está em risco, as fronteiras nacionais e as sensibilidades tornam-se irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres sejam perseguidos por causa de sua raça, religião ou opiniões políticas, esse lugar deve – naquele momento – tornar-se o centro do universo”. [13]

Na segunda-feira à noite, marcaremos o início de Iom haShoá, a data no calendário judaico em memória às vítimas da atrocidade nazista. A data escolhida no calendário faz referência ao Levante do Gueto de Varsóvia que, em 1943, desafiou os nazistas que esvaziavam o gueto de seus moradores e os enviavam para os campos de extermínio, um ato de coragem que neste ano comemora 80 anos e que homenagearemos na CIP no Cabalat Shabat do dia 28 de abril, com a presença do Coral Tradição, da Casa do Povo.

Vivemos tempos difíceis. Uma matéria no Estadão de hoje fala que, de acordo com um levantamento da Universidade de Tel Aviv, houve em 2021 um aumento dramático de ataques antissemitas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, onde há estatísticas disponíveis também para 2022, o aumento foi de 36% com relação a 2021, que já tinha sido o ano do tal “aumento dramático”. [14] O mundo, em grande parte, tem se calado frente a este aumento de crimes de ódio contra judeus.

Aqui no Brasil, os ianomamis foram as vítimas de um projeto premeditado de eliminação aos qual assistimos ao vivo e a cores pela TV, na grande maioria, em silêncio.

Todos os dias, nas ruas das nossas grandes cidades, pessoas pretas são mortas em números assustadores. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas pretas mortas por policiais aumentou 5,8% de 2020 para a 2021, enquanto para pessoas brancas o número caiu 30,9%. Dessa forma, 84,1% das vítimas fatais de intervenções policiais eram pretos ou pardos, porcentagem significativamente superior ao seu número na população. [15] Nossa reação, de forma geral, foi o silêncio.

Como disse Elie Wiesel, “o silêncio encoraja o torturador, não o atormentado”. Mesmo que nossos corações, assim como o de Aharón, tenham se tornado pedras calejadas com tanta violência, é hora de sairmos de nossa dormência. Falecido em 2016, Wiesel precisa da nossa ajuda para continuar cumprindo sua promessa: “nunca ficar calado onde quer que os seres humanos sofram sofrimento e humilhação.”

Shabat Shalom!



 

[1] https://www.sesirs.org.br/sites/default/files/paragraph--files/o_pequeno_principe_-_antoine_de_saint-exupery.pdf, p. 56

[2] https://www.letras.mus.br/rita-lee/48512/

[3] Prov. 17:28

[4] Prov. 18:2

[5] Pirkei Avot 3:13. Para os comentários, vejam Bartenura e Ikar Tossafot Iom Tov.

[6] Talmud Bavli Pessachim 99a

[7] Lev. 10:1-2

[8] Lev. 10: 3

[9] Abarbanel comentando sobre Lev. 10:1

[10] R. Eliezer Lipman Lichtenstein - Shem Olam (1848-1896, Polônia), conforme citado por Nechama Leibowitz, http://www.jewishagency.org/he/leviticus/content/22409

[11] https://slate.com/human-interest/2016/07/elie-wiesel-s-profound-and-paradoxical-language-of-silence.html

[12] Elie Wiesel, “A noite: Um dos mais importantes testemunhos sobre a vida nos campos de concentração.”. Pag. 70/182 (ebook)

[13] https://www.thejc.com/lets-talk/all/elie-wiesel-understood-the-power-of-silence-6MIYglTlvuDwVhFe6pDINW

[14] https://www.estadao.com.br/alias/entenda-como-o-antissemitismo-em-alta-reune-radicais-de-todas-as-direcoes-politicas/

[15]  https://pt.org.br/negros-sao-84-das-pessoas-mortas-em-acoes-policiais-no-brasil/


sexta-feira, 24 de março de 2023

Dvar Torá: Justiça e democracia em Israel (CIP)


Na semana passada, eu estava dando uma aula sobre as novas tradições de Pessach, que é uma dos feriados judaicos mais antigos, dos que ainda são muito celebrados entre as famílias e nos quais, nas últimas décadas, nós encontramos mais inovação. Eu coleciono hagadot com propostas inovadoras e eu trouxe algumas pra mostrar para os alunos: uma hagadá surpreendentemente interessante e profunda que usa como pano de fundo Harry Potter e sua turma, uma hagadá como uma teologia linda escrita pelo poetisa Marcia Falk, algumas hagadot de sedarim de mulheres, uma hagadá que busca o diálogo inter-geracional, uma escrita por e para mulheres vítimas de violência doméstica, uma que conversa com os temas do movimento sindical, com questões dos refugiados contemporâneos. Uma hagadá linda e difícil, escrita por sobreviventes da Shoá para seu primeiro seder de Pessach depois de libertados dos campos de extermínio, ainda em um campo para refugiados em Munique. Lemos juntos um texto escrito por Arthur Waskow, um rabino vinculado ao movimento Renewal que escreveu sobre sua experiência comemorando Pessach apenas alguns dias depois do assassinato de Martin Luther King, enquanto o caos imperava nas ruas de Washington, onde ele vivia — toque de recolher, tanques nas ruas e centenas de manifestantes negros presos. No ônibus, Waskow ia planejando os detalhes do sêder, o momento do calendário judaico em que mais nos identificamos com os oprimidos. De repente, ele começou a cantarolar no ônibus: “Este é o exército do faraó e estou voltando para casa para fazer o sêder”. Naquele momento, ele tomou uma decisão importante na sua vida: “De novo, não! Nunca mais uma bolha no tempo. Nunca mais, nunca mais, uma recitação ritual antes da vida real, da refeição real, da conversa real.” [1]

Esse é o dilema da vida religiosa — quando permitir que a recitação ritual tome o lugar da vida real, da conversa real e quando não. Muitas vezes, quando eu conduzo o serviço de Shacharit, eu digo que há toda uma sessão introdutória, chamada Psukei deZimrá, dedicada a permitir que esqueçamos dos problemas que nos acompanharam até aquele momento, de tal forma que possamos verdadeiramente nos dedicarmos à nossa vida interior. Uma vida espiritual equilibrada é uma necessidade de quem quer poder transformar objetivamente nossa realidade social: precisamos de força interna para lidarmos com as questões de todo dia e se não dedicarmos tempo a construí-la, também não temos como agir no mundo. E, ao mesmo tempo, temos que reconhecer que há situações frente às quais focar exclusivamente na nossa realidade interior pode configurar uma heresia.

Algumas semanas atrás, em Shabat Shirá, quando lemos sobre a saída dos hebreus de Mitsrayim, o texto nos contava que quando o povo reclamava com Moshé por uma intervenção Divina, quando os soldados do Faraó os perseguiam de um lado e o Mar, ainda fechado, estava do outro, a resposta de Deus foi 

 מַה־תִּצְעַק אֵלָי?! דַּבֵּר אֶל־בְּנֵי־יִשְׂרָאֵל וְיִסָּעוּ!! 

Por que você grita comigo?! 

Fale com os israelitas e que eles sigam em frente!! [2]

Há momentos em que, mais que reza, precisamos de ação ou pelo menos de solidariedade com quem age.

A sociedade israelense está em ebulição, como estava Washington naquele abril de 1968 seguindo o assassinato de Martin Luther King Jr. Há semanas que centenas de milhares de manifestantes têm saído às ruas de todo o país em protestos contra uma mudança tão radical no seus sistema judicial que os analistas dizem que comprometeria o caráter democrático do Estado de Israel. Uma explicação bastante superficial é que há dois pontos principais no projeto que tem avançado em velocidade recorde na Knesset: um ponto garante que a coalisão do governo indique a maioria dos membros da Suprema Corte. Outro ponto estabelece que a Knesset passe a poder derrubar decisões da Suprema Corte pela maioria simples de seus membros. Lembrem-se que uma das funções de cortes constitucionais, como é a Suprema Corte de Israel, é defender os direitos das minorias contra leis que infrinjam suas garantias legais. Da forma como a reforma judicial está proposta, direitos estabelecidos poderiam ser revogados com a anuência da coalisão da vez.

No mundo todo, comunidades judaicas têm se mobilizado, buscando reverter a proposta encaminhada ou desacelerar seu processo de aprovação, possibilitando que, através do diálogo entre os grupos políticos, uma proposta de consenso social possa ser formulada. Rabinos de todos os movimentos tem se manifestado pedindo ao governo de Israel que reconsidere sua proposta. A JFNA, a entidade guarda-chuva das Federações Judaicas nos Estados Unidos, emitiu uma carta aberta endereçada tanto ao primeiro ministro Biniamin Netaniahu quanto ao líder da Oposição, Yair Lapid, apontando para o impacto que uma mudança deste tipo teria na relação entre Israel e a comunidade judaica norte-americana [3]. Eles pediam, sem sucesso, que fosse adotada, no lugar do projeto encaminhado pelo governo, a proposta de  Itschak Herzog, o presidente de Israel [4].

Segmentos da comunidade judaica brasileira também têm se mobilizado em solidariedade aos manifestantes que pedem a proteção ao caráter democrática de Israel. Em uma carta endereçada ao governo israelense e assinada inicialmente por um grupo de entidades judaicas, incluindo a CIP [5], reafirmamos nosso Sionismo e compromisso com Israel como um Estado Judaico e Democrático e, reconhecemos o impacto que acontecimentos em Israel projetam sobre nós. Ao final do documento, “manifestamos nosso apoio e solidariedade aos israelenses que lutam pela manutenção da democracia, e conclamamos a população judaica brasileira para que faça o mesmo, repudiando qualquer ameaça ao Estado Democrático de Direito no país.”

Nesta semana começamos Vaicrá, o terceiro livro da Torá. Nesta primeira parashá, o texto trata de diversos tipos de sacrifícios, incluindo a “chatat” e o “asham”, ofertas para casos em que as pessoas deixavam de cumprir as instruções da Torá por negligência, descuido ou má fé [6]. Uma parte importante dessas regras dizia respeito à preservação da integridade do sistema judicial, garantindo que não houvessem testemunhos falsos nem omissão em testemunhos que poderiam inocentar um suspeito. 

A decisão sobre sua estrutura judicial pertence apenas aos israelenses, mas suas implicações claramente nos afetam também. Se informe sobre o processo em curso, procure formar a sua própria opinião e, se achar apropriado, se manifeste e ajude a defender a Democracia israelense!

Shabat Shalom!