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domingo, 20 de setembro de 2020

Dvar Torá: Um convite para construirmos juntos o novo anormal (CIP)


Há alguns anos, estava na moda falar no efeito borboleta, parte da teoria do caos que dizia que o bater de asas de uma borboleta no Japão poderia explicar a formação de um tornado nos Estados Unidos. A ideia era que pequenas mudanças nas condições iniciais de um sistema pudessem explicar grandes diferenças nos resultados finais [1].

Em 5780, nós vivemos nossa própria versão do efeito borboleta. Um vírus que começou a se espalhar em uma cidade na China da qual a maioria de nós nunca tinha ouvido falar gerou impactos no mundo todo. Gente que nunca foi pra China, gente que nunca saiu da sua cidade no interior da África ou da sua tribo indígena no meio do Brasil foi impactada pela pandemia de Covid-19. Há muitas décadas, o discurso ambientalista tem destacado que nossos destinos pessoais estão intrinsicamente conectados com o  destino do resto do planeta e que políticas de proteção da natureza têm que ser pensadas em escala global porque a consequência de não fazer nada também é global.  A crise do Corona Vírus parece ter fortalecido o argumento de que não apenas em questão do meio-ambiente, mas também em questões de saúde pública, estamos todos no mesmo barco, não é possível encontrar soluções que salvem só alguns enquanto o resto da humanidade continua vulnerável.

Daqui a alguns minutos, nós vamos cantar o Aleinu de Malchuiot, aquela versão do Aleinu na qual fazemos a prostração total até que nossas testas toquem o chão. Apesar de atualmente encerrar os três serviços diários: shacharit, minchá e arvit, a origem do Aleinu está na liturgia de Rosh haShaná. Há tradições que atribuem sua redação a Iehoshua, o sucessor de Moshé, ainda na época da conquista da Terra de Israel, e normalmente é entendido que Rav, um sábio da época do Talmud, estabeleceu que o poema deveria ser lido antes da seção de Malchuiot em Rosh haShaná. Foi só muitos séculos depois, que o Aleinu se estabeleceu como parte da liturgia diária [2].

Eu confesso que, assim como muitos outros judeus liberais, eu tenho sérios problemas com as primeiras frases do Aleinu. Em sua tradução literal elas dizem: “Nós devemos louvar o Senhor de tudo e expressar a grandeza ao Criador do universo, que não nos fez como as nações das terras e não nos colocou como as famílias do solo, que não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles”. Muitas são as comunidades liberais que mudaram estas linhas nos seus sidurim; outras, como a CIP, mantiveram o original em hebraico mas suavizaram a tradução — vocês podem checar na página 150 do Machzor de Rosh haShaná. 

Há alguns bons anos, eu protestei junto a um professor querido, perguntando por que mantínhamos estas linhas nas nossas rezas diárias. Sua resposta foi que nenhum judeu liberal acredita neste texto e que só o mantemos para honrar a tradição. O problema, na minha opinião, é que ao repetirmos estas palavras três vezes ao dia, corremos o risco de acabar acreditando no que elas dizem. Podemos achar que é possível um futuro no qual o nosso destino não esteja totalmente conectado com o que acontecer com os outros doze milhões de habitantes da cidade de São Paulo ou até mesmo com os outros 7 bilhões de seres humanos com quem compartilhamos o planeta.

Em uma das passagens mais complicadas da Torá, que lemos ontem de manhã, depois que seu filho Itschak nasceu, Sará pediu a Avraham que expulsasse Hagar e seu filho, Ishmael, que também era filho de Avraham e assim ele o fez. O motivo alegado era para que “o filho desta escrava não receba a herança junto com meu filho, com Itschak” [3]. Que ilusão da nossa primeira matriarca! Apesar da expulsão, os descendentes de Itschak e de Ishmael continuamos disputando esta herança até hoje….não só do ponto de vista concreto, com cada lado argumentando que tem a mais sólida justificativa religiosa para possuir a terra de Israel, mas também no nível da narrativa: o quase sacrifício de Itschak, que tradicionalmente lemos no segunda dia de Rosh haShaná e sobre a qual conversaremos daqui a pouco, também faz parte da tradição muçulmana, só que lá o filho querido que Deus pede a Avraham para sacrificar é Ishmael [4]. 

As correntes de água e as massas de ar são apenas parte da entropia natural do universo, que faz com que soluções que separem o “nosso” destino do “deles” nunca funcionem.

Neste Dia do Julgamento, um dia em que a prática de tshuvá, o reconhecimento dos nossos erros tem papel central, é importante reconhecermos como permitimos que a mentalidade do Aleinu  determinasse muitas das nossas ações no ano que está terminando: deixamos de ir aos supermercados e aos restaurantes para nos proteger da Covid, enquanto ciclistas e motociclistas dos aplicativos, muitas vezes sem dinheiro para fazer nenhuma refeição nos longos dias que passavam entregando comida para os outros, se expunham aos riscos de contaminação, sem qualquer direito trabalhista [5]. Nos orgulhamos das altas taxas de sucesso dos nossos hospitais para recuperação de pacientes com Covid enquanto os hospitais da periferia, aqueles que tratam nossos co-cidadãos que continuaram se expondo no transporte público e trabalhando nos supermercados, nos açougues, nas farmácias, nas empresas de entrega, tinham pacientes morrendo em taxas absolutamente alarmantes, algumas vezes acima de 90% [6]. Buscamos refúgio em condomínios no interior e no litoral [7] [8], ao mesmo tempo em que boa parte da cidade continuava apertada em seus espaços na periferia ou, ainda pior, jogada nas ruas sem proteção alguma.

Frente a uma realidade que unia todos os destinos, continuamos achando que Deus “לֹא שָׂם חֶלְקֵנוּ כָּהֶם, וגוֹרָלֵנוּ כְּכָל-הֲמוֹנָם” “não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles” e operando dentro desta visão de mundo. Da bondade dos nossos corações, é bem verdade, desenvolvemos inúmeras ações de ajuda, mas foram poucas as que realmente vieram do lugar da Tsedacá, o conceito judaico de justiça social, que entende que o nosso compromisso com o bem-estar do próximo não deve depender da nossa generosidade, mas de uma obrigação permanente para com a construção de uma sociedade justa — que se manifesta tanto no desenvolvimento de ações emergenciais, quanto na luta pela transformação das estruturas que permitiram tanta desigualdade e injustiça.

Agora, temos que imaginar o mundo daqui pra frente e a expressão “novo-normal” me assusta. Nos acostumamos com situações inóspitas quando elas se repetem e se transformam em rotineiras. É um mecanismo de defesa importante, que permite, por exemplo, que saiamos de casa em São Paulo ou no Rio de Janeiro, apesar dos altos números de violência urbana — mas este mesmo mecanismo de defesa pode nos levar a enxergar o inaceitável como normal.

Passamos a aceitar um ritmo mensal de mais de 20.000 vidas perdidas no Brasil para a Covid-19 como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar o Pantanal e a Amazônia queimando, cada ano a ritmo recorde, como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar famílias inteiras vivendo nas calçadas das nossas ruas como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar pacientes morrendo nos corredores dos hospitais públicos da cidade mais rica do Brasil como se fosse normal. 

A verdade é que eu não quero voltar pra esse normal. Eu quero te convidar a imaginar como podemos sair deste estado de coisas e sonhar com a transformação da nossa cidade, da nossa sociedade, do nosso sentido de responsabilidade mútua uns com os outros. Como Avraham, o hebreu contestador sobre quem o rabino Michel falou na 6a feira, eu quero ter a coragem de estar na outra margem, de imaginar como poderia ser e não só descrever como é.

À mentalidade das primeiras linhas do Aleinu, à ideia de que nós temos direito a um destino diferenciado, se opõe a perspectiva da criação de um único ser humano, masculino e feminino, criado à imagem Divina, que comemoramos em Rosh haShaná. De acordo com a Mishná, Deus fez que toda a humanidade descendesse de uma única pessoa para que um não pudesse dizer ao outro “meu pai é maior que o teu” [9]. Estamos juntos nesse bote salva-vidas e somos todos necessários para manter seu equilíbrio. Não há sobrevivência que não envolva cuidarmos uns dos outros.

Deus, a energia viva que corre em todos nós, que hoje estabelece este tribunal em que apresentamos nossas histórias e pedimos a inscrição no Livro da Vida, nos urge a considerar nossa responsabilidade em sermos guardiões de todos os nossos irmãos.  Não sejamos como Cain, o primeiro assassino da Torá, que perguntou a Deus, de forma desafiadora “?הֲשומֵר אָחִי אָנוכִי ”, “E eu sou o guardião do meu irmão?!” [10] Que em 5781 possamos todos responder com um sonoro “Somos!”

Shaná Tová!


[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Butterfly_effect
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Aleinu
[3] Gen 21:9-14
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Binding_of_Isaac#Muslim_views
[5] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/21/entregadores-se-unem-por-melhores-condicoes-de-trabalho-nos-aplicativos-entrego-comida-com-fome-diz-ciclista.ghtml
[6] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml
[7] https://www1.folha.uol.com.br/sobretudo/morar/2020/09/paulistanos-trocam-capital-pelo-interior-e-aquecem-mercado-de-casas-no-campo.shtml
[8] https://brasil.elpais.com/internacional/2020-08-03/bilionarios-se-preparam-para-o-fim-da-civilizacao.html
[9] Mishná Sanhedrin 4:5 
[10] Gen 4:9



quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Dvar Torá: Rosh haShaná 5780 (CIP)

Tem um ditado em ídiche que diz דער מענטש טראכט און גאט לאכט, “as pessoas fazem planos e Deus dá risada”! Pois é…. eu tinha um plano de fazer esta prédica de Rosh haShaná sobre o lado positivo dos nossos erros; tinha lido vários livros, procurado a perspectiva judaica, começado a escrever — eu estava bem atrasado pra conseguir terminar a tempo, mas ia dar. 
Eu sou um consumidor voraz de podcasts, que são tipo o Netflix do rádio: tem um aplicativo no celular e você escolhe o programa que quer ouvir na hora em que quiser. Um dos meus podcasts favoritos, o The Daily, do New York Times, lançou um episódio especial no domingo de manhã [1]. Uma entrevista de uns 30 minutos com Ella Maners, uma menina super fofa que acabou de completar nove anos. Ella tem TOC, o Transtorno Obsessivo Compulsivo, e crises de ansiedade relacionadas, principalmente, ao medo de furacões e de ficar enjoada. No programa, sua mãe conta como na primeira crise de ansiedade que a menina teve, ela fez o que qualquer pai ou mãe leigo e preocupado faria: tentou acalmá-la, dizendo que aqueles medos eram infundados, que tudo ficaria bem.
Ella acabou de voltar de um acampamento de férias na Flórida para crianças com quadros clínicos semelhantes ao dela. Lá, ela deu um nome ao seu TOC, “Ocie”, e aprendeu que, quando Ocie repete na sua cabeça: “você vai ficar enjoada, você vai ficar enjoada, você vai ficar enjoada”, a pior coisa que ela podia fazer para se acalmar era a estratégia que ela e seus pais vinham adotando até então e responder “eu vou ficar bem, eu vou ficar bem, eu vou ficar bem.” Quando, ao invés disso, ela respondeu no seu diálogo interno com Ocie: “sim, eu vou ficar doente”, seu monstrinho interno desistiu de importuná-la, vendo que não conseguia mais gerar o medo paralisador de antes. Nesse acampamento de férias, Ella foi exposta a seus medos e desenvolveu estratégias para lidar com eles. Ao final da semana que ela passou no acampamento, Ella tinha ganho 42 contas para formar um colar, o mesmo número de obstáculos que ela superou neste período.
Depois de escutar este podcast por meia hora, com os olhos vermelhos e o rosto molhado pelas lágrimas e pensando nas conversas que eu tive com meus filhos nos últimos dias, eu decidi - literalmente aos 45 do segundo tempo - mudar o tema da prédica, porque precisamos falar dos nossos medos.
Em hebraico, há algumas palavras para medo. Quando falamos da relação com Deus, em geral, usamos a palavra יראה, ir’á, que está relacionada à reverência, a um medo que vem do respeito, de estarmos impressionados com uma determinada realidade. A palavra פחד, pachad, é muito mais usada no hebraico cotidiano para falar do medo do tipo que a Ella sentia. A rabina Ilana Goldhaber-Gordon resume da seguinte forma a diferença entre as duas palavras: 
Embora “pachad” e “ir’á” sejam, às vezes, sinônimos na literatura antiga, uma pesquisa completa sugere conotações distintas. A reverência tingida de medo que abre a alma, provavelmente, será descrita como “ir'á". O medo opressivo que desliga a pessoa, provavelmente, será descrito como "pachad". [2]
Há, no entanto, na Torá uma história em que a palavra pachad é usada para descrever a relação com Deus. Ela aparece no capítulo 31 de Bereshit, quando o patriarca Iaacov está se despedindo de seu sogro Labán. Há uma discussão entre eles, cada um argumentando que o outro tentou trapaceá-lo. Em um determinado momento, Iaacóv diz ao sogro: 
לוּלֵי אֱלֹהֵי אָבִי אֱלֹהֵי אַבְרָהָם וּפַחַד יִצְחָק הָיָה לִי כִּי עַתָּה רֵיקָם שִׁלַּחְתָּנִי
Não fosse pelo Deus do meu pai, o Deus de Avraham e o medo de Itschak, que esteve comigo, você estaria me mandando embora de mãos vazias. [3]
A palavra que Iaacóv usa para medo nesta passagem é pachad, aquele tipo de medo que paralisa, que nos tranca. Deus é chamado de “pachad de Itschak” — um nome que é adotado em outras situações, incluindo no Machzor de Iom Kipur.
Os comentaristas, é claro, ficam loucos com essa combinação. Rashi, o grande comentarista da Torá e do Talmud, tenta negar o desconforto, argumentando que não se usaria a expressão אלוהי יצחק, “o Deus de Itschak”, enquanto Itschak ainda estava vivo. Avraham Ibn Ezra, que viveu poucas décadas depois de Rashi, aventa a possibilidade de que pachad Itschak seja uma referência à experiência que Itschak teve quando quase foi morto pelo seu pai na parashá que lemos hoje [4]. Nachmanides, que viveu poucas décadas depois de Ibn Ezra, discorda desta teoria e indica que, de acordo com a tradição mística, que esta afirmação se refere ao aspecto divino de דין, din, “Justiça”. A rabina Goldhaber-Gordon explica a leitura de Nachmanides:
Nachmanides era um cabalista, que entendia que cada patriarca canalizava um aspecto diferente de Deus. Avraham expressa “Chesed”, “Bondade”. Segundo a Cabalá, o contrapeso a “Chessed” é “Din”, “Julgamento”, ou “Guevurá”, “Heroísmo”, traços que limitam o fluxo do “Chessed”. Itschak está associado a “Guevurá”. O equilíbrio entre “Chessed” e “Guevurá” é “Emet”, “Verdade Divina”. “Emet” é a característica de Iaacov.
Essas associações uma vez me intrigaram. O homem que tentou abater o filho encarna a bondade? O filho que estava preso no altar representa heroísmo? E Iaacov, com todas as suas enganações, é verdade? Eu as entendi melhor depois de uma conversa com a acadêmica da Bíblia Avivah Zornberg, que explicou que essas são as características com que cada um dos patriarcas mais lutaram, seus sucessos contando tanto quanto seus fracassos. [5]
Transtornado pela experiência de seu quase-sacrifício pelas mãos de seu pai sob ordens de Deus, é com o conceito de Justiça Divina que Itschak precisava se encontrar. Assim como Ella aprendeu, não adiantava negar seus próprios medos e traumas — ele precisava ser exposto a eles para que pudesse desenvolver estratégias para lidar com eles. Quando o repórter pergunta a Ella se ela ainda tem medo, ela responde que sim. “O que mudou, então?”, ele pergunta. “Eles não são mais tão aterrorizantes.”
Meus filhos moram no Rio de Janeiro e estão passando este feriado comigo. Durante o final de semana, minha filha de 11 anos falou do seu medo de que, com o ritmo atual das mudanças climáticas e da elevação dos oceanos, o Rio de Janeiro estará submerso antes que ela possa ter filhos. Meu filho, que tinha cinco anos quando nos mudamos para o Rio de Janeiro, passou um tempo obcecado com tiroteio e arrastão. Esses medos nunca os paralisaram, mas geraram angústias que têm sido implícita e explicitamente expressas. Nessas situações, minha intuição era tentar acalmá-los, minimizando a dimensão dos problemas. A verdade é que o meu maior medo tem a ver com o mundo que estou entregando a eles; ver meus filhos com medo é o que dispara os meus próprios gatilhos e, por isso, eu faço de tudo para livrá-los deste sentimento. Ao ouvir a entrevista com Ella, passei a questionar se esta é a melhor abordagem. Escondê-los de seus medos não resolverá nada! Como pai, minha função é validá-los e ajudá-los a encontrar estratégias para lidar com as situações que lhe embrulham o estômago.
Os serviços de Rosh haShaná e de Iom Kipur oferecem excelentes oportunidades para confrontarmos nossos medos e buscarmos caminhos para transformar pachad, o medo que paralisa, em ir’á, o medo reverente que abre a alma e nos ajuda a buscar soluções. Ao longo destes dias, somos convidados a abaixar nossas defesas e nos expormos frente a Deus e a nós mesmos como realmente somos, sem a possibilidade de nos escondermos sob máscaras ou roupas caras. 
A verdade é que para muitos de nós, é a oportunidade de nos olharmos no espelho sem maquiagem que mais os aterroriza. Passamos tanto tento vivendo a persona que achamos que devíamos ser – agora potencializados pelo megafone das redes sociais – que nos esquecemos de quem realmente somos ou de quem gostaríamos de ser. Numa das peças centrais destes dias, o uNetanê Tokef, somos expostos àquele que, talvez, seja o maior dos nossos medos: confrontar a nossa própria mortalidade e questionar qual será nosso legado quando já não estivermos mais aqui.
Será que teremos coragem para enfrentar de verdade estas perguntas, sem repetirmos para nós mesmos “vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem”? Se Deus estivesse distribuindo contas de colar para cada vez que você realmente se confrontou com um dos seus medos nestes dias, quantas cores teria o seu colar?
Em sua entrevista, Ella e sua mãe contaram que algumas vezes pensaram em desistir da Colônia de Férias: o processo era realmente difícil e doloroso. Ao final da semana, no entanto, Ella declarou: “eu me senti muito bem depois de ter sido exposta [aos meus medos], eu me senti bem, eu me senti feliz, eu me senti corajosa.” A tradição rabínica ensina que Iom Kipur é um dos dois dias mais felizes do calendário judaico – será que este ano conseguiremos terminar o dia repetindo as palavras de Ella, “eu me senti muito bem, eu me senti feliz, eu me senti corajoso”?
Logo mais, começaremos o último Mussaf deste Rosh haShaná; na semana que vem estaremos novamente juntos, rezando e refletindo em Iom Kipur.
בְּראֹשׁ הַשָּׁנָה יִכָּתֵבוּן וּבְיוֹם צוֹם כִּפּוּר יֵחָתֵמוּן
Em Rosh haShaná será escrito e em Iom Kipur será confirmado.
Quem terá coragem de se expor, de correr riscos e revelar seus grandes medos e quem irá se esconder mais uma vez e deixar passar mais esta oportunidade?
Shaná Tová! Shaná Tová uMetucá!


[1] https://www.nytimes.com/2019/09/29/podcasts/the-daily/children-fears-ocd-anxiety.html
[2] https://forward.com/shma-now/pachad-yitzchak/381263/fear-becomes-strength/
[3] Gen. 31:42a
[4] Esta posição de Ibn Ezra aparece em seu comentário ao verso Gen. 31:53.
[5] https://forward.com/shma-now/pachad-yitzchak/381263/fear-becomes-strength/


sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Lembra de quem queríamos ser?

(originalmente publicado em http://www.institutobrasilisrael.org/2019/09/27/lembra-de-quem-queriamos-ser/)

No universo dos feriados religiosos, Rosh haShaná e Iom Kipur não estariam na lista das 10 datas mais populares. Com suas metáforas sobre o Dia do Julgamento e o nome (em hebraico) de “Dias Terríveis” (Iamim Norayim), estas datas precisam urgentemente da repaginada de marketing que Jon Stewart pediu para outros feriados judaicos. A verdade, no entanto, é que, por trás do nome pouco popular (abandonado na tradução para o português) e das metáforas complicadas, temos conceitos religiosos profundos que se sobrepõem de forma quase paradoxal: uma autocrítica intensa e um otimismo quase ilimitado.

Tanto a crítica quanto o otimismo têm origem no conceito de tshuvá, palavra em hebraico cuja tradução pode variar de “resposta”, a “retorno” a “arrependimento”. Eu gosto de pensar em todos estes sentidos entrelaçados, nos quais a tshuvá da qual falamos nesta época do ano é a resposta que damos ao nosso processo de cheshbon hanefesh, a “contabilidade da alma”, a reflexão sobre os caminhos que nossas vidas estão tomando. Ao reconhecermos nossas conquistas no ano que termina e identificarmos as áreas em que nos afastamos dos nossos objetivos, tentamos voltar à nossa rota; através do arrependimento, voltamos à melhor versão de nós mesmos. O otimismo é expresso na possibilidade permanente de engajarmos neste processo de tshuvá, mesmo quando o “retorno” implica caminhar uma  grande distância. Estes conceitos, eu acho, foram perfeitamente capturados por um antigo supervisor de estágio meu, o rabino Eric Gurvis, que certa vez distribuiu adesivos após sua prédica de Iom Kipur que diziam “Lembre-se de quem você queria ser”.

Para muitos de nós, lembrarmos de quem queríamos ser pode ser um esforço complexo. A necessidade de pagar a conta do aluguel todo mês ou de acordar cedo para levar os filhos à escola faz com que, muitas vezes, abramos mão de valores que nos eram caros mas que não nos ajudam nas demandas práticas da vida. Como mecanismo de defesa, ao nos distanciarmos dos ideais que tínhamos, apagamos os velhos sonhos. Em algum momento, passamos a acreditar que somos o que sempre tínhamos querido ser, apesar de todas as evidências do contrário.

Países ou movimentos nacionais, no entanto, costumam registrar de forma mais sistemática onde eles gostariam de chegar. Neste Rosh haShaná em que Israel tenta, mais uma vez, organizar um novo governo, vale a pena olharmos para os sonhos que o país um dia teve para si mesmo e pensar o que “Lembre-se de quem você queria ser” pode significar neste contexto. Neste processo, busquei a Declaração de Independência, como documento que expressava os sonhos dos fundadores do Estado. Percebe-se um otimismo claro no documento (alguns diriam “ingenuidade”), a esperança de um relacionamento de parceria com a ONU, de relações possíveis com os países vizinhos, de tratamento equânime entre todos os seus habitantes, de respeito aos seus idiomas, religiões e culturas. Cada um de nós terá suas próprias tshuvot na comparação entre este documento e a realidade do Estado de 71 anos, que precisa pagar o aluguel e acordar cedo para levar as crianças, mas que ainda contém dentro de si muitos dos valores registrados na Declaração de Independência. Quando consideramos “Quem Israel gostaria de ser?”, podemos identificar quais sonhos foram largados ao longo do caminho que, agora, gostaríamos de retomar e nos perguntar qual papel nós brasileiros podemos ter nesta retomada de valores e de sonhos?

Shaná Tová!

Que nossas vidas —  os sonhos, as ações, os valores, as restrições — façam diferença e mereçam ser registradas no Livro das Vidas.



quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Dvar-Torá: Rosh haShaná 5777 (Coletivo Kol Chadash na Sinagoga do Cambuci, São Paulo)


Esta semana eu postei no facebook um artigo em que a autora explicava por que ela sairia do salão da sinagoga quando o piyut - poema litúrgico - uNetanê Tokef fosse cantado. Para quem nunca parou para ler sua tradução, o poema descreve o cenário de um julgamento, considera todas as nossas ações e decide como será nosso próximo ano. Quem viverá e quem não; quem encontrará a morte tranquilamente e quem só chegará lá depois de muito sofrimento. A metáfora sugere que nossas ações têm impacto no mundo e a qualidade da nossa vida é determinada, em parte, pelos comportamentos que adotamos.

Para a autora, no entanto, era difícil fugir do sentido literal do poema. Seu pai se suicidou depois de lutar com a depressão por vários meses, acreditando que o mundo estaria melhor sem ele. A forma como ele se matou e sua luta com a depressão aparecem literalmente nas linhas do uNetanê Tokef, como se fossem um castigo Divino.

No artigo ela diz:
 
Eu entendo o valor metafórico que alguns vêem neste poema. Mas, como uma sobrevivente de trauma, eu me tornei familiar, de uma forma pessoal e dolorosa, com termos que me fazem reviver a experiência [chamados “disparadores”]. E quando eu olho para as palavras deste poema, eu me impressiono não só pelos meus disparadores, mas pelo potencial para outras pessoas que foram tragicamente atingidas por incêndios, inundações ou agressões violentas.
Talvez, além de pedir a seus congregantes que tenham uma leitura mais profunda e leiam as palavras além do seu sentido literal, seja também chegada a hora para aqueles que lideram nossos serviços religiosos de reconhecer que as palavras por si só podem ter, para alguns, o poder de desencadear memórias e pensamentos traumáticos.[1]
Eu fico pensando nestas palavras, neste 2 de outubro de 2016, 1 de Tishrei de 5777. Talvez, hoje soframos todos de tensão do stress pós-traumático - pelo menos aqueles que lembram o que esta data significa. Aqueles que marcam o 2 de outubro como o dia em que 111 pessoas foram chacinadas nesta cidade há 24 anos. Talvez todos nós devêssemos sair do salão da sinagoga amanhã quando o uNetanê Tokef for lido. Hoje, no entanto, eu proponho que o enfrentemos uma vez mais…
וּנְתַנֶּה תֹּֽקֶף קְדֻשַּׁת הַיּוֹם
Declaramos a poderosa santidade deste dia – profundo e temível. Hoje, Tua soberania é elevada, Teu trono – de onde Você governa com verdade – é estabelecido com amor. Verdadeiramente, Você é o Juiz e o Procurador, Perito e Testemunha, Você registra e sela, conta e mede. Você lembra tudo que é esquecido e abrirá o Livro das Memórias, que fala por si próprio, pois todos nós o assinamos com nossas mãos.


Há 24 anos, 341 policiais militares sob o comando do Coronel Ubiratan Rodrigues, entraram no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo para conter uma rebelião de presos[2]. Os sobreviventes da chacina dizem que brigas entre presos eram comuns no presídio, e que tudo voltaria à calma depois de algum tempo - não fosse a entrada do Batalhão de Choque da PM naquele 2 de outubro. O governador era Luiz Antônio Fleury Filho, ex-policial militar e ex-secretário de Segurança Pública do Governo Quercia. 

Às vezes, a poesia nos ajuda a entender aquilo para o qual não há compreensão. Nas palavras dos Paralamas:
Mas naquele dia até Deus se escondeu
Quando se ouviram os gritos de socorro
A voz da razão sumiu
Quando a polícia subiu o morro[3]

Há 24 anos, a Polícia assumiu o papel de Deus e serviu como juiz, procurador, perito e testemunha. Assumiu também um papel mais duro e executou a sentença de morte que ela mesma havia decretado sobre 111 seres humanos. 89 deles ainda não tinham sido julgados pelos tribunais da terra.

Era véspera das eleições municipais, que seria também a data da posse de Itamar Franco após o impeachment de Fernando Collor de Mello. Por um tempo, não tivemos a dimensão real do que tinha acontecido. A capa da Folha do dia seguinte destacava as pesquisas eleitorais que apontavam a vitória de Paulo Maluf e a posse de Itamar Franco. Uma pequena nota na parte de baixo da página dizia: “Rebelião em presídio faz pelo menos oito mortos”[4]. Foi só no dia seguinte, depois das eleições terem passado, que soubemos o número oficial da chacina. Na manchete da Folha: “Chacina mata 111 presos em São Paulo.”[5] 
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos[6]

וּבְשׁוֹפָר גָדוֹל יִתָּקַע
E um grande shofar será soado e, mesmo assim, será possível escutar um pequeno suspiro. Os anjos estão agitados, tomados por medo e tremor. Eles gritam: “Este é o Dia do Julgamento visitando os exércitos divinos em julgamento, ninguém é inocente frente a Ti.” E todos aqueles que vieram ao mundo passam na Tua frente como ovelhas. Da mesma forma que o olhar de um pastor de ovelhas busca seu rebanho quando cada ovelha passa pelo seu cajado, Você revisa, reconta e avalia a vida de cada ser vivo e Você determina o término da vida de cada criatura e escreve o veredito dele.

Em sua coluna na Folha de ontem, o jornalista Oscar Vilhena Vieira escreveu:

Desafortunadamente tive a oportunidade de acompanhar profissionalmente os desdobramentos do massacre, ingressando no pavilhão 9 da Casa de Detenção pouco tempo depois do massacre. Duas imagens ficaram impregnadas em minha memória: a água vermelha empurrada pelo rodo dos presos que faziam a faxina, e as marcas de balas encravadas nas paredes das celas, sempre à meia altura, deixando claro que as vítimas foram eliminadas de cócoras, em posição de rendição. Indelével, ainda, o cheiro de morte.[7]

Depois da tempestade, o silêncio em que podemos escutar até um pequeno suspiro, enquanto os detentos lavavam o sangue dos seus colegas. Quem viu as fotos da chacina entende o descaso absoluto com a vida humana e com a perda dela que foi demonstrado naquele dia.

Há alguns anos, eu fui a um debate na sede do Habonim-Dror do Rio de Janeiro. Falavam de ocupações: Michel Gherman, amigo de muitos aqui, falava da Ocupação dos territórios palestinos por Israel e Marcelo Freixo, cujo nome eu nunca tinha ouvido, falava sobre a ocupação das favelas do Rio pela polícia e pelo exército. Em algum momento, Freixo fez uma afirmação que, apesar de óbvia, nunca tinha me ocorrido: “quando o pessoal ataca quem defende os direitos humanos dos presidiários, o que eles estão atacando não é a perspectiva de que presidiário tenha direitos; o que eles contestam é a perspectiva de que presidiários sejam seres humanos.”

Tem gente que acha que preso é gado. Nas palavras de Vandré, “porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente.”[8]

A tradição judaica é muito clara neste aspecto. Somos TODOS criados à imagem de Deus, o que garante a todos nós o direito à dignidade inalienável da condição humana. Todos nós, sem exceção, o tempo todo. Meu professor, o rabino Art Green, falando sobre o seu professor, o Rabino Abraham Joshua Heschel, escreveu:
“Por que somos proibidos de fazer imagens de Deus?” Heschel perguntou. Não é porque Deus esteja além de todas as imagens, de forma que nenhuma imagem poderia representar Deus. “Se este fosse o caso”, ele argumentava, “imagens seriam simplesmente inofensivas”. “Deus tem uma imagem,” ele insistia, “e esta imagem é você.” Você não pode fazer uma imagem de Deus por que você é a imagem de Deus.[9]

Segundo a Mishná, a primeira obra legal escrita pelo movimento rabínico ao redor do ano 220 E.C., até o condenado à morte precisa ser tratado com dignidade e seu corpo precisa ser enterrado com a maior velocidade possível. Mesmo o condenado à morte não deixava de ser criado à imagem de Deus e, portanto, até na sua punição merecia ser tratado com dignidade.

Um dos meus poemas favoritos da poetisa israelense Zelda desenvolve uma ideia rabínica de que recebemos e conquistamos diferentes nomes ao longo das nossas vidas. Diz Zelda:

לְכָל אִישׁ יֵשׁ שֵׁם
 שֶׁנָּתַן לוֹ אֱלֹהִים
וְנָתְנוּ לוֹ אָבִיו וְאִמּוֹ
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado por Deus
e que lhe foi dado por seu pai e sua mãe
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pela sua estatura e pelo seu sorriso
e que lhe foi dado por o que ela veste
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pelas montanhas
e que lhe foi dado pelos seus muros
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pelos signos
e que lhe foi dado pelos seus vizinhos
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pelas suas falhas
e que lhe foi dado pelos seus desejos
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado por aqueles que a odeiam
e que lhe foi dado por aquele que ela ama
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pelas suas celebrações
e que lhe foi dado pelo seu trabalho
Toda pessoas tem um nome
que lhe foi dado pelas estações do ano
e que lhe foi dado pela sua cegueira
Toda pessoa tem um nome
que lhe deu o mar
e que lhe deu
a sua morte.

Em respeito à vida dos 111 seres humanos que morreram há exatos 24 anos, eu passarei à leitura dos seus nomes. Por favor, levantem-se.
1) Adalberto Oliveira dos Santos
2) Adão Luiz Ferreira de Aquino
3) Adelson Pereira de Araujo
4) Alex Rogério de Araujo
5) Alexandre Nunes Machado da Silva
6) Almir Jean Soares
7) Antonio Alves dos Santos
8) Antonio da Silva Souza
9) Antonio Luiz Pereira
10) Antonio Quirino da Silva
11) Carlos Almirante Borges da Silva
12) Carlos Antonio Silvano Santos
13) Carlos Cesar de Souza
14) Claudemir Marques
15) Claudio do Nascimento da Silva
16) Claudio José de Carvalho
17) Cosmo Alberto dos Santos
18) Daniel Roque Pires
19) Dimas Geraldo dos Santos
20) Douglas Edson de Brito
21) Edivaldo Joaquim de Almeida
22) Elias Oliveira Costa
23) Elias Palmiciano
24) Emerson Marcelo de Pontes
25) Erivaldo da Silva Ribeiro
26) Estefano Mard da Silva Prudente
27) Fabio Rogério dos Santos
28) Francisco Antonio dos Santos
29) Francisco Ferreira dos Santos
30) Francisco Rodrigues
31) Genivaldo Araujo dos Santos
32) Geraldo Martins Pereira
33) Geraldo Messias da Silva
34) Grimario Valério de Albuquerque
35) Jarbas da Silveira Rosa
36) Jesuino Campos
37) João Carlos Rodrigues Vasques
38) João Gonçalves da Silva
39) Jodilson Ferreira dos Santos
40) Jorge Sakai
41) Josanias Ferreira de Lima
42) José Alberto Gomes Pessoa
43) José Bento da Silva
44) José Carlos Clementino da Silva
45) José Carlos da Silva
46) José Carlos dos Santos
47) José Carlos Inojosa
48) José Cícero Angelo dos Santos
49) José Cícero da Silva
50) José Domingues Duarte
51) José Elias Miranda da Silva
52) José Jaime Costa e Silva
53) José Jorge Vicente
54) José Marcolino Monteiro
55) José Martins Vieira Rodrigues
56) José Ocelio Alves Rodrigues
57) José Pereira da Silva
58) José Ronaldo Vilela da Silva
59) Josue Pedroso de Andrade
60) Jovemar Paulo Alves Ribeiro
61) Juares dos Santos
62) Luiz Cesar Leite
63) Luiz Claudio do Carmo
64) Luiz Enrique Martin
65) Luiz Granja da Silva Neto
66) Mamed da Silva
67) Marcelo Couto
68) Marcelo Ramos
69) Marco Antonio Avelino Ramos
70) Marco Antonio Soares
71) Marcos Rodrigues Melo
72) Marcos Sérgio Lino de Souza
73) Mario Felipe dos Santos
74) Mario Gonçalves da Silva
75) Mauricio Calio
76) Mauro Batista Silva
77) Nivaldo Aparecido Marques de Souza
78) Nivaldo Barreto Pinto
79) Nivaldo de Jesus Santos
80) Ocenir Paulo de Lima
81) Olivio Antonio Luiz Filho
82) Orlando Alves Rodrigues
83) Osvaldino Moreira Flores
84) Paulo Antonio Ramos
85) Paulo Cesar Moreira
86) Paulo Martins Silva
87) Paulo Reis Antunes
88) Paulo Roberto da Luz
89) Paulo Roberto Rodrigues de Oliveira
90) Paulo Rogério Luiz de Oliveira
91) Reginaldo Ferreira Martins
92) Reginaldo Judici da Silva
93) Roberio Azevedo da Silva
94) Roberto Alves Vieira
95) Roberto Aparecido Nogueira
96) Roberto Azevedo Silva
97) Roberto Rodrigues Teodoro
98) Rogério Piassa
99) Rogério Presaniuk
100) Ronaldo Aparecido Gasparinio
101) Samuel Teixeira de Queiroz
102) Sandoval Batista da Silva
103) Sandro Rogério Bispo
104) Sérgio Angelo Bonane
105) Tenilson Souza
106) Valdemir Bernardo da Silva
107) Valdemir Pereira da Silva
108) Valmir Marques dos Santos
109) Valter Gonçalves Gaetano
110) Vanildo Luiz
111) Vivaldo Virculino dos Santos[10]
que suas memórias sejam abençoadas
Podem se sentar.

Um midrash conta que, em resposta à destruição de Jerusalém, Deus pergunta aos seus anjos como um rei humano responderia se tivesse perdido um filho. Os anjos respondem: "um rei humano… 
penduraria sacos na sua porta,
apagarias as luzes,
viraria o sofá,
andaria sem sapatos,
rasgaria suas roupas,
sentaria em silêncio e choraria."
"Eu vou fazer o mesmo", responde Deus, "Eu vou pendurar sacos na porta, apagar as luzes, virar o sofá, andar sem sapatos, rasgar minhas roupas, sentar em silêncio e chorar." [11]

Eu não tenho dúvida alguma de que Deus está chorando há 24 anos pela morte destes 111  filhos. Cento e onze filhos cujo direito à justiça, ainda que póstuma, foi mais uma vez negada esta semana.

בְּרֹאשׁ הַשָּׁנָה יִכָּתֵבוּן, וּבְיוֹם צוֹם כִּפּוּר יֵחָתֵמוּן
Em Rosh Hashaná está escrito, e no jejum de Yom Kipur é selado!
Quantos vão passar, e quantas vão nascer;
quem vai viver e quem vai morrer;
que terá uma vida longa e quem chegará a um fim prematuro;
quem morrerá pelo fogo e quem pela água;
quem pela espada e quem por animais;
quem pela fome e quem pela sede;
quem pelo terremoto e quem pela peste;
quem será estrangulado e quem será apedrejado;
que estará em paz e quem será perturbado;
quem estará sereno e quem estará agitado;
quem estará tranquilo e que estará atormentado;
quem empobrecerá e quem ficará rico;
quem cairá, quem se levantará.

Há eventos que, de tão brutais, deveriam levar a mudanças de comportamento. Depois da Shoá, dos 6 milhões de nossos irmãos brutalmente assassinados só por que eram nossos irmãos, achávamos que o mundo acordaria e que o antissemitismo não brotaria mais em qualquer lugar. É com horror que vemos hoje o antissemitismo re-aparecendo em tantas partes do mundo. 

Depois do Carandirú, depois de 111 seres humanos brutalmente assassinados, esperávamos que o Brasil acordasse e mudasse no tratamento que dá aos nossos irmãos na cadeia. É com horror que percebemos que este não é o caso - que vinte e quatro anos depois, nenhum responsável pela chacina do Carandirú tenha sido preso e que o julgamento tenha acabado de voltar à estaca zero;  que pesquisa realizada em 2015 tenha constatado que 50% dos residentes nas grandes cidades brasileiras concordam com a frase “Bandido bom é Bandido Morto”.[12]

O relator do processo que levou ao cancelamento do julgamento dos 74 PMs esta semana, desembargador Ivan Sartori, afirmou que “não houve realmente um massacre. O que houve foi estrito cumprimento do dever legal, obediência hierárquica e legítima defesa, inclusive.” As imagens e os depoimentos dos sobreviventes do massacre deixam claro que os presos foram fuzilados depois de rendidos; os fatos dos soldados estarem fortemente armados e terem saído todos com vida deveriam ser suficientes para desqualificar a tese de legítima defesa; as lições de Hanna Arendt depois do julgamento de Eichman deveriam ter nos ensinado o que acontece quando há o "estrito cumprimento do dever legal" e "obediência hierárquica" sem questionar a moralidade das ordens dadas. Do mesmo Freixo, eu ouvi em outra oportunidade que o país precisa “democratizar a polícia”: “a gente ainda tem uma polícia oriunda da ditadura, com uma concepção de guerra, com uma concepção de eliminar o inimigo”, ele disse.[13]

A decisão do Tribunal de Justiça deveria ter-nos levado às ruas, exigindo um país diferente - sem nos importarmos com o machzor que precisava ficar pronto, com o trabalho que a chefe esperava ver na mesa dela naquela manhã ou com a prova do dia seguinte. Se em Rosh haShaná, acreditamos quando cantamos uNetanê Tokef e perguntamos quem será inscrito no livro da vida, minamos nossas chances nesta semana que passou. Nesta quarta feira, todos falhamos e deixamos um pedacinho da nossa humanidade morrer… 

Um midrash conta que certa vez Rabi Yehoshua sonhou ter encontrado o profeta Eliahu. “Quando o Messias virá?” ele perguntou ao profeta. “Quando seremos redimidos desta opressão?” O profeta respondeu: “Vá e pergunte ao Messias!”. “E onde posso encontrá-lo?”, perguntou Rabi Yehoshua. “No portão de Roma, onde ele se senta junto aos mendigos da cidade”. Nestes dias de Iamim Noraim, Rosh haShaná e Yom Kipur, em que tentamos re-encontrar nosso eu mais profundo e perdido, é bom lembrar que às vezes, é exatamente aquele que mais desprezamos - o mendigo, a prostituta, o presidiário - que nos dá a oportunidade de re-encontrar nossas humanidade.
 
A maioria de nós conhece o verso  "וְאָהַבְתָּ לְרֵעֲךָ כָּמוֹךָ אֲנִי ה׳",  “Ama um outro ser humano da mesma forma como você ama a si mesmo; Eu sou Adonai.”[14] Ainda que não seja explícito, parece que a obrigação de amar os outros seres humanos como a nós mesmos decorre do fato de que somos todos criados à imagem de Deus. Dois versos antes deste, encontramos a mesma lógica aplicada a outra instrução: "לֹא תַעֲמֹד עַל־דַּם רֵעֶךָ אֲנִי ה׳",  “Não fique assistindo enquanto derramam o sangue de outro ser humano; Eu sou Adonai”.[15]  A implicação sobre o que a tradição judaica diz que devemos fazer nesta situação é óbvia.

O comentário do meu professor sobre Heschel e a criação do ser humano à imagem de Deus continuava:
A única forma na qual você pode fazer uma imagem de Deus é a forma de toda a sua vida, e é isto precisamente que você é comandado a fazer. Tudo o que você faz, tudo o que você diz, cada momento e a forma como você o usa são todas partes da forma como você constrói a imagem de Deus.[16]

Construímos a imagem de Deus através das nossas ações! Hoje, infelizmente, a imagem que nossas ações constroem é de um Deus sentado no chão, chorando pelos seus filhos assassinados. Que imagem de Deus as ações que tomaremos a partir deste momento construirão?

Durante os últimos 70 anos, temos nos perguntado como o mundo pôde ter se calado. Agora é a hora de perguntar a nós mesmos: vamos nos calar?

Shaná Tová! 
Que neste ano...

consigamos encontrar a dignidade humana em toda pessoa;

que nossa busca por justiça inclua também a defesa daqueles a quem desprezamos;

que nossas ações construam a imagem do Deus em que dizemos acreditar.

Ken Yehi Ratzon (que assim seja a Vontade)




[3] https://www.letras.mus.br/os-paralamas-do-sucesso/47927/
[4] http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1992/10/03/2/
[5] http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1992/10/04/2/
[6] https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44730/
[9] Green, Art. Ehyeh: A Kabbalah for Tomorrow, p. 121 (tradução minha)
[11]  Eika Rabá 1:1
[14] Lev. 19:18
[15] Lev. 19:16
[16] Green, Art. Ehyeh: A Kabbalah for Tomorrow, p. 121 (tradução minha)