domingo, 22 de agosto de 2021
domingo, 20 de setembro de 2020
Dvar Torá: Um convite para construirmos juntos o novo anormal (CIP)
Há alguns anos, estava na moda falar no efeito borboleta, parte da teoria do caos que dizia que o bater de asas de uma borboleta no Japão poderia explicar a formação de um tornado nos Estados Unidos. A ideia era que pequenas mudanças nas condições iniciais de um sistema pudessem explicar grandes diferenças nos resultados finais [1].
Em 5780, nós vivemos nossa própria versão do efeito borboleta. Um vírus que começou a se espalhar em uma cidade na China da qual a maioria de nós nunca tinha ouvido falar gerou impactos no mundo todo. Gente que nunca foi pra China, gente que nunca saiu da sua cidade no interior da África ou da sua tribo indígena no meio do Brasil foi impactada pela pandemia de Covid-19. Há muitas décadas, o discurso ambientalista tem destacado que nossos destinos pessoais estão intrinsicamente conectados com o destino do resto do planeta e que políticas de proteção da natureza têm que ser pensadas em escala global porque a consequência de não fazer nada também é global. A crise do Corona Vírus parece ter fortalecido o argumento de que não apenas em questão do meio-ambiente, mas também em questões de saúde pública, estamos todos no mesmo barco, não é possível encontrar soluções que salvem só alguns enquanto o resto da humanidade continua vulnerável.
Daqui a alguns minutos, nós vamos cantar o Aleinu de Malchuiot, aquela versão do Aleinu na qual fazemos a prostração total até que nossas testas toquem o chão. Apesar de atualmente encerrar os três serviços diários: shacharit, minchá e arvit, a origem do Aleinu está na liturgia de Rosh haShaná. Há tradições que atribuem sua redação a Iehoshua, o sucessor de Moshé, ainda na época da conquista da Terra de Israel, e normalmente é entendido que Rav, um sábio da época do Talmud, estabeleceu que o poema deveria ser lido antes da seção de Malchuiot em Rosh haShaná. Foi só muitos séculos depois, que o Aleinu se estabeleceu como parte da liturgia diária [2].
Eu confesso que, assim como muitos outros judeus liberais, eu tenho sérios problemas com as primeiras frases do Aleinu. Em sua tradução literal elas dizem: “Nós devemos louvar o Senhor de tudo e expressar a grandeza ao Criador do universo, que não nos fez como as nações das terras e não nos colocou como as famílias do solo, que não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles”. Muitas são as comunidades liberais que mudaram estas linhas nos seus sidurim; outras, como a CIP, mantiveram o original em hebraico mas suavizaram a tradução — vocês podem checar na página 150 do Machzor de Rosh haShaná.
Há alguns bons anos, eu protestei junto a um professor querido, perguntando por que mantínhamos estas linhas nas nossas rezas diárias. Sua resposta foi que nenhum judeu liberal acredita neste texto e que só o mantemos para honrar a tradição. O problema, na minha opinião, é que ao repetirmos estas palavras três vezes ao dia, corremos o risco de acabar acreditando no que elas dizem. Podemos achar que é possível um futuro no qual o nosso destino não esteja totalmente conectado com o que acontecer com os outros doze milhões de habitantes da cidade de São Paulo ou até mesmo com os outros 7 bilhões de seres humanos com quem compartilhamos o planeta.
Em uma das passagens mais complicadas da Torá, que lemos ontem de manhã, depois que seu filho Itschak nasceu, Sará pediu a Avraham que expulsasse Hagar e seu filho, Ishmael, que também era filho de Avraham e assim ele o fez. O motivo alegado era para que “o filho desta escrava não receba a herança junto com meu filho, com Itschak” [3]. Que ilusão da nossa primeira matriarca! Apesar da expulsão, os descendentes de Itschak e de Ishmael continuamos disputando esta herança até hoje….não só do ponto de vista concreto, com cada lado argumentando que tem a mais sólida justificativa religiosa para possuir a terra de Israel, mas também no nível da narrativa: o quase sacrifício de Itschak, que tradicionalmente lemos no segunda dia de Rosh haShaná e sobre a qual conversaremos daqui a pouco, também faz parte da tradição muçulmana, só que lá o filho querido que Deus pede a Avraham para sacrificar é Ishmael [4].
As correntes de água e as massas de ar são apenas parte da entropia natural do universo, que faz com que soluções que separem o “nosso” destino do “deles” nunca funcionem.
Neste Dia do Julgamento, um dia em que a prática de tshuvá, o reconhecimento dos nossos erros tem papel central, é importante reconhecermos como permitimos que a mentalidade do Aleinu determinasse muitas das nossas ações no ano que está terminando: deixamos de ir aos supermercados e aos restaurantes para nos proteger da Covid, enquanto ciclistas e motociclistas dos aplicativos, muitas vezes sem dinheiro para fazer nenhuma refeição nos longos dias que passavam entregando comida para os outros, se expunham aos riscos de contaminação, sem qualquer direito trabalhista [5]. Nos orgulhamos das altas taxas de sucesso dos nossos hospitais para recuperação de pacientes com Covid enquanto os hospitais da periferia, aqueles que tratam nossos co-cidadãos que continuaram se expondo no transporte público e trabalhando nos supermercados, nos açougues, nas farmácias, nas empresas de entrega, tinham pacientes morrendo em taxas absolutamente alarmantes, algumas vezes acima de 90% [6]. Buscamos refúgio em condomínios no interior e no litoral [7] [8], ao mesmo tempo em que boa parte da cidade continuava apertada em seus espaços na periferia ou, ainda pior, jogada nas ruas sem proteção alguma.
Frente a uma realidade que unia todos os destinos, continuamos achando que Deus “לֹא שָׂם חֶלְקֵנוּ כָּהֶם, וגוֹרָלֵנוּ כְּכָל-הֲמוֹנָם” “não fez nossa parte como as deles, nem nosso destino como o de todos eles” e operando dentro desta visão de mundo. Da bondade dos nossos corações, é bem verdade, desenvolvemos inúmeras ações de ajuda, mas foram poucas as que realmente vieram do lugar da Tsedacá, o conceito judaico de justiça social, que entende que o nosso compromisso com o bem-estar do próximo não deve depender da nossa generosidade, mas de uma obrigação permanente para com a construção de uma sociedade justa — que se manifesta tanto no desenvolvimento de ações emergenciais, quanto na luta pela transformação das estruturas que permitiram tanta desigualdade e injustiça.
Agora, temos que imaginar o mundo daqui pra frente e a expressão “novo-normal” me assusta. Nos acostumamos com situações inóspitas quando elas se repetem e se transformam em rotineiras. É um mecanismo de defesa importante, que permite, por exemplo, que saiamos de casa em São Paulo ou no Rio de Janeiro, apesar dos altos números de violência urbana — mas este mesmo mecanismo de defesa pode nos levar a enxergar o inaceitável como normal.
Passamos a aceitar um ritmo mensal de mais de 20.000 vidas perdidas no Brasil para a Covid-19 como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar o Pantanal e a Amazônia queimando, cada ano a ritmo recorde, como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar famílias inteiras vivendo nas calçadas das nossas ruas como se fosse normal; nos acostumamos a aceitar pacientes morrendo nos corredores dos hospitais públicos da cidade mais rica do Brasil como se fosse normal.
A verdade é que eu não quero voltar pra esse normal. Eu quero te convidar a imaginar como podemos sair deste estado de coisas e sonhar com a transformação da nossa cidade, da nossa sociedade, do nosso sentido de responsabilidade mútua uns com os outros. Como Avraham, o hebreu contestador sobre quem o rabino Michel falou na 6a feira, eu quero ter a coragem de estar na outra margem, de imaginar como poderia ser e não só descrever como é.
À mentalidade das primeiras linhas do Aleinu, à ideia de que nós temos direito a um destino diferenciado, se opõe a perspectiva da criação de um único ser humano, masculino e feminino, criado à imagem Divina, que comemoramos em Rosh haShaná. De acordo com a Mishná, Deus fez que toda a humanidade descendesse de uma única pessoa para que um não pudesse dizer ao outro “meu pai é maior que o teu” [9]. Estamos juntos nesse bote salva-vidas e somos todos necessários para manter seu equilíbrio. Não há sobrevivência que não envolva cuidarmos uns dos outros.
Deus, a energia viva que corre em todos nós, que hoje estabelece este tribunal em que apresentamos nossas histórias e pedimos a inscrição no Livro da Vida, nos urge a considerar nossa responsabilidade em sermos guardiões de todos os nossos irmãos. Não sejamos como Cain, o primeiro assassino da Torá, que perguntou a Deus, de forma desafiadora “?הֲשומֵר אָחִי אָנוכִי ”, “E eu sou o guardião do meu irmão?!” [10] Que em 5781 possamos todos responder com um sonoro “Somos!”
Shaná Tová!
sexta-feira, 21 de agosto de 2020
quarta-feira, 2 de outubro de 2019
Dvar Torá: Rosh haShaná 5780 (CIP)
sexta-feira, 27 de setembro de 2019
Lembra de quem queríamos ser?
(originalmente publicado em http://www.institutobrasilisrael.org/2019/09/27/lembra-de-quem-queriamos-ser/)
No universo dos feriados religiosos, Rosh haShaná e Iom Kipur não estariam na lista das 10 datas mais populares. Com suas metáforas sobre o Dia do Julgamento e o nome (em hebraico) de “Dias Terríveis” (Iamim Norayim), estas datas precisam urgentemente da repaginada de marketing que Jon Stewart pediu para outros feriados judaicos. A verdade, no entanto, é que, por trás do nome pouco popular (abandonado na tradução para o português) e das metáforas complicadas, temos conceitos religiosos profundos que se sobrepõem de forma quase paradoxal: uma autocrítica intensa e um otimismo quase ilimitado.
Tanto a crítica quanto o otimismo têm origem no conceito de tshuvá, palavra em hebraico cuja tradução pode variar de “resposta”, a “retorno” a “arrependimento”. Eu gosto de pensar em todos estes sentidos entrelaçados, nos quais a tshuvá da qual falamos nesta época do ano é a resposta que damos ao nosso processo de cheshbon hanefesh, a “contabilidade da alma”, a reflexão sobre os caminhos que nossas vidas estão tomando. Ao reconhecermos nossas conquistas no ano que termina e identificarmos as áreas em que nos afastamos dos nossos objetivos, tentamos voltar à nossa rota; através do arrependimento, voltamos à melhor versão de nós mesmos. O otimismo é expresso na possibilidade permanente de engajarmos neste processo de tshuvá, mesmo quando o “retorno” implica caminhar uma grande distância. Estes conceitos, eu acho, foram perfeitamente capturados por um antigo supervisor de estágio meu, o rabino Eric Gurvis, que certa vez distribuiu adesivos após sua prédica de Iom Kipur que diziam “Lembre-se de quem você queria ser”.
Para muitos de nós, lembrarmos de quem queríamos ser pode ser um esforço complexo. A necessidade de pagar a conta do aluguel todo mês ou de acordar cedo para levar os filhos à escola faz com que, muitas vezes, abramos mão de valores que nos eram caros mas que não nos ajudam nas demandas práticas da vida. Como mecanismo de defesa, ao nos distanciarmos dos ideais que tínhamos, apagamos os velhos sonhos. Em algum momento, passamos a acreditar que somos o que sempre tínhamos querido ser, apesar de todas as evidências do contrário.
Países ou movimentos nacionais, no entanto, costumam registrar de forma mais sistemática onde eles gostariam de chegar. Neste Rosh haShaná em que Israel tenta, mais uma vez, organizar um novo governo, vale a pena olharmos para os sonhos que o país um dia teve para si mesmo e pensar o que “Lembre-se de quem você queria ser” pode significar neste contexto. Neste processo, busquei a Declaração de Independência, como documento que expressava os sonhos dos fundadores do Estado. Percebe-se um otimismo claro no documento (alguns diriam “ingenuidade”), a esperança de um relacionamento de parceria com a ONU, de relações possíveis com os países vizinhos, de tratamento equânime entre todos os seus habitantes, de respeito aos seus idiomas, religiões e culturas. Cada um de nós terá suas próprias tshuvot na comparação entre este documento e a realidade do Estado de 71 anos, que precisa pagar o aluguel e acordar cedo para levar as crianças, mas que ainda contém dentro de si muitos dos valores registrados na Declaração de Independência. Quando consideramos “Quem Israel gostaria de ser?”, podemos identificar quais sonhos foram largados ao longo do caminho que, agora, gostaríamos de retomar e nos perguntar qual papel nós brasileiros podemos ter nesta retomada de valores e de sonhos?
Shaná Tová!
Que nossas vidas — os sonhos, as ações, os valores, as restrições — façam diferença e mereçam ser registradas no Livro das Vidas.
quarta-feira, 5 de outubro de 2016
Dvar-Torá: Rosh haShaná 5777 (Coletivo Kol Chadash na Sinagoga do Cambuci, São Paulo)
Esta semana eu postei no facebook um artigo em que a autora explicava por que ela sairia do salão da sinagoga quando o piyut - poema litúrgico - uNetanê Tokef fosse cantado. Para quem nunca parou para ler sua tradução, o poema descreve o cenário de um julgamento, considera todas as nossas ações e decide como será nosso próximo ano. Quem viverá e quem não; quem encontrará a morte tranquilamente e quem só chegará lá depois de muito sofrimento. A metáfora sugere que nossas ações têm impacto no mundo e a qualidade da nossa vida é determinada, em parte, pelos comportamentos que adotamos.
Para a autora, no entanto, era difícil fugir do sentido literal do poema. Seu pai se suicidou depois de lutar com a depressão por vários meses, acreditando que o mundo estaria melhor sem ele. A forma como ele se matou e sua luta com a depressão aparecem literalmente nas linhas do uNetanê Tokef, como se fossem um castigo Divino.
No artigo ela diz:
Há 24 anos, a Polícia assumiu o papel de Deus e serviu como juiz, procurador, perito e testemunha. Assumiu também um papel mais duro e executou a sentença de morte que ela mesma havia decretado sobre 111 seres humanos. 89 deles ainda não tinham sido julgados pelos tribunais da terra.
Era véspera das eleições municipais, que seria também a data da posse de Itamar Franco após o impeachment de Fernando Collor de Mello. Por um tempo, não tivemos a dimensão real do que tinha acontecido. A capa da Folha do dia seguinte destacava as pesquisas eleitorais que apontavam a vitória de Paulo Maluf e a posse de Itamar Franco. Uma pequena nota na parte de baixo da página dizia: “Rebelião em presídio faz pelo menos oito mortos”[4]. Foi só no dia seguinte, depois das eleições terem passado, que soubemos o número oficial da chacina. Na manchete da Folha: “Chacina mata 111 presos em São Paulo.”[5]
Em sua coluna na Folha de ontem, o jornalista Oscar Vilhena Vieira escreveu:
Desafortunadamente tive a oportunidade de acompanhar profissionalmente os desdobramentos do massacre, ingressando no pavilhão 9 da Casa de Detenção pouco tempo depois do massacre. Duas imagens ficaram impregnadas em minha memória: a água vermelha empurrada pelo rodo dos presos que faziam a faxina, e as marcas de balas encravadas nas paredes das celas, sempre à meia altura, deixando claro que as vítimas foram eliminadas de cócoras, em posição de rendição. Indelével, ainda, o cheiro de morte.[7]
Depois da tempestade, o silêncio em que podemos escutar até um pequeno suspiro, enquanto os detentos lavavam o sangue dos seus colegas. Quem viu as fotos da chacina entende o descaso absoluto com a vida humana e com a perda dela que foi demonstrado naquele dia.
Há alguns anos, eu fui a um debate na sede do Habonim-Dror do Rio de Janeiro. Falavam de ocupações: Michel Gherman, amigo de muitos aqui, falava da Ocupação dos territórios palestinos por Israel e Marcelo Freixo, cujo nome eu nunca tinha ouvido, falava sobre a ocupação das favelas do Rio pela polícia e pelo exército. Em algum momento, Freixo fez uma afirmação que, apesar de óbvia, nunca tinha me ocorrido: “quando o pessoal ataca quem defende os direitos humanos dos presidiários, o que eles estão atacando não é a perspectiva de que presidiário tenha direitos; o que eles contestam é a perspectiva de que presidiários sejam seres humanos.”
Tem gente que acha que preso é gado. Nas palavras de Vandré, “porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente.”[8]
A tradição judaica é muito clara neste aspecto. Somos TODOS criados à imagem de Deus, o que garante a todos nós o direito à dignidade inalienável da condição humana. Todos nós, sem exceção, o tempo todo. Meu professor, o rabino Art Green, falando sobre o seu professor, o Rabino Abraham Joshua Heschel, escreveu:
Segundo a Mishná, a primeira obra legal escrita pelo movimento rabínico ao redor do ano 220 E.C., até o condenado à morte precisa ser tratado com dignidade e seu corpo precisa ser enterrado com a maior velocidade possível. Mesmo o condenado à morte não deixava de ser criado à imagem de Deus e, portanto, até na sua punição merecia ser tratado com dignidade.
Um dos meus poemas favoritos da poetisa israelense Zelda desenvolve uma ideia rabínica de que recebemos e conquistamos diferentes nomes ao longo das nossas vidas. Diz Zelda:
שֶׁנָּתַן לוֹ אֱלֹהִים
Um midrash conta que, em resposta à destruição de Jerusalém, Deus pergunta aos seus anjos como um rei humano responderia se tivesse perdido um filho. Os anjos respondem: "um rei humano…
Eu não tenho dúvida alguma de que Deus está chorando há 24 anos pela morte destes 111 filhos. Cento e onze filhos cujo direito à justiça, ainda que póstuma, foi mais uma vez negada esta semana.
Há eventos que, de tão brutais, deveriam levar a mudanças de comportamento. Depois da Shoá, dos 6 milhões de nossos irmãos brutalmente assassinados só por que eram nossos irmãos, achávamos que o mundo acordaria e que o antissemitismo não brotaria mais em qualquer lugar. É com horror que vemos hoje o antissemitismo re-aparecendo em tantas partes do mundo.
Depois do Carandirú, depois de 111 seres humanos brutalmente assassinados, esperávamos que o Brasil acordasse e mudasse no tratamento que dá aos nossos irmãos na cadeia. É com horror que percebemos que este não é o caso - que vinte e quatro anos depois, nenhum responsável pela chacina do Carandirú tenha sido preso e que o julgamento tenha acabado de voltar à estaca zero; que pesquisa realizada em 2015 tenha constatado que 50% dos residentes nas grandes cidades brasileiras concordam com a frase “Bandido bom é Bandido Morto”.[12]
O relator do processo que levou ao cancelamento do julgamento dos 74 PMs esta semana, desembargador Ivan Sartori, afirmou que “não houve realmente um massacre. O que houve foi estrito cumprimento do dever legal, obediência hierárquica e legítima defesa, inclusive.” As imagens e os depoimentos dos sobreviventes do massacre deixam claro que os presos foram fuzilados depois de rendidos; os fatos dos soldados estarem fortemente armados e terem saído todos com vida deveriam ser suficientes para desqualificar a tese de legítima defesa; as lições de Hanna Arendt depois do julgamento de Eichman deveriam ter nos ensinado o que acontece quando há o "estrito cumprimento do dever legal" e "obediência hierárquica" sem questionar a moralidade das ordens dadas. Do mesmo Freixo, eu ouvi em outra oportunidade que o país precisa “democratizar a polícia”: “a gente ainda tem uma polícia oriunda da ditadura, com uma concepção de guerra, com uma concepção de eliminar o inimigo”, ele disse.[13]
A decisão do Tribunal de Justiça deveria ter-nos levado às ruas, exigindo um país diferente - sem nos importarmos com o machzor que precisava ficar pronto, com o trabalho que a chefe esperava ver na mesa dela naquela manhã ou com a prova do dia seguinte. Se em Rosh haShaná, acreditamos quando cantamos uNetanê Tokef e perguntamos quem será inscrito no livro da vida, minamos nossas chances nesta semana que passou. Nesta quarta feira, todos falhamos e deixamos um pedacinho da nossa humanidade morrer…
Um midrash conta que certa vez Rabi Yehoshua sonhou ter encontrado o profeta Eliahu. “Quando o Messias virá?” ele perguntou ao profeta. “Quando seremos redimidos desta opressão?” O profeta respondeu: “Vá e pergunte ao Messias!”. “E onde posso encontrá-lo?”, perguntou Rabi Yehoshua. “No portão de Roma, onde ele se senta junto aos mendigos da cidade”. Nestes dias de Iamim Noraim, Rosh haShaná e Yom Kipur, em que tentamos re-encontrar nosso eu mais profundo e perdido, é bom lembrar que às vezes, é exatamente aquele que mais desprezamos - o mendigo, a prostituta, o presidiário - que nos dá a oportunidade de re-encontrar nossas humanidade.
O comentário do meu professor sobre Heschel e a criação do ser humano à imagem de Deus continuava:
Construímos a imagem de Deus através das nossas ações! Hoje, infelizmente, a imagem que nossas ações constroem é de um Deus sentado no chão, chorando pelos seus filhos assassinados. Que imagem de Deus as ações que tomaremos a partir deste momento construirão?
Shaná Tová!
consigamos encontrar a dignidade humana em toda pessoa;
que nossa busca por justiça inclua também a defesa daqueles a quem desprezamos;
que nossas ações construam a imagem do Deus em que dizemos acreditar.
Ken Yehi Ratzon (que assim seja a Vontade)