sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Dvar Torá: Sodoma: uma cidade como as nossas (CIP)


Nesta semana nós tivemos a segunda aula de um curso que eu estou dando com a arte-educadora Karen Greif Amar juntando midrash e as artes plásticas. Como nós começamos o curso algumas semanas depois de Simchat Torá, estamos um pouco atrasados em relação ao ciclo de leitura semanal. Nesta segunda semana do curso tratamos da segunda parashá da Torá: Noach.

Entre os midrashim que lemos, há um [1] que conta que, antes de criar este mundo em que vivemos, Deus criou vários outros. Criou e destruiu, criou e destruiu, criou e destruiu, até que se satisfez com este mundo e resolveu mantê-lo. Ao que parece, a resolução para manter este mundo sem ser destruído não durou muito. Ainda no finalzinho de parashat Bereshit, o texto indicava:
ה׳ viu quão grande era a maldade humana na terra - como todo plano elaborado pela mente humana não era nada além do mal o tempo todo. E ה׳ lamentou ter feito a humanidade na terra. Com o coração entristecido, ה׳ disse: “Exterminarei da terra os homens que criei: os homens com os animais, os répteis e as aves do céu; pois lamento tê-los feito.” [2]
Todos nós conhecemos ao final daquela história: um grande dilúvio veio e matou quase toda a vida sobre a Terra. Noach e sua arca salvaram alguns animais de cada espécie para que pudéssemos continuar nossa jornada por aqui. Para indicar que nunca mais Deus faria outro dilúvio destruir toda vida sobre a terra, Deus estabelece o arco-íris, sinal do pacto que Deus firmava com Noach.

Eu fico pensando na história de Noach quando leio a parashá desta semana, Vaierá — em particular, o começo da história de Sodoma e Gomorra, quando Deus se dá conta do que está acontecendo nestas cidades:
Então ה׳ disse: “A indignação de Sodoma e Gomorra é tão grande, e seu pecado tão grave! Descerei para ver se eles agiram de acordo com o clamor que Me alcançou; se não, tomarei nota.” [3]
Apesar da decisão prévia simbolizada pelo arco-íris, Deus decide — depois de considerar os protestos de Avraham — destruir as cidades, ainda que poupasse o resto do mundo. Podemos ir pela tecnicalidade de que desta vez não foi um dilúvio, mas uma chuva de enxofre e fogo, que matou tudo que lá vivia mas, pela segunda vez, Deus retoma o hábito de criar mundos e destruí-los, que parecia ter abandonado quando criou o nosso universo.

O que pode ter levado Deus a reverter sua decisão depois de tê-la reafirmado após o Dilúvio? Os midrashim buscaram com afinco esta explicação.

Alguns textos [4] afirmam que Sodoma era uma cidade extremamente rica, de solo fértil e cheia de prata, ouro e pedras preciosas. No entanto, apesar de serem caracterizados como as pessoas mais ricas da Terra, seus cidadãos não se preocupavam com o bem estar alheio. Cometiam fraudes contra os visitantes, impediam que as aves pudessem comer dos frutos da terra, cometiam inúmeras injustiças que mantinham seus privilégios intactos.

Algumas história contam que eles estabeleceram regras que proibiam a ajuda aos necessitados, um crime cuja pena era a pena de morte. Há diversas versões com relação a quem foi a jovem e quem ela ajudava, mas os midrashim apontam para uma moça que, tendo ajudado uma pessoa em necessidade e tendo sido descoberta pelos moradores de Sodoma, foi morta na fogueira. Teriam sido os seus gritos que chegaram aos ouvidos de Deus, justificando Sua intervenção. 

Mesmo antes dos midrashim, os profetas já apontavam em direções semelhantes para a má conduta de Sodoma. No livro do profeta Ezequiel, ele diz, em nome de Deus: “Este foi o pecado de sua irmã Sodoma: arrogância! Ela e as filhas tinham muito pão e uma tranquilidade imperturbável; no entanto, ela não apoiou os pobres e necessitados.” [5]

Quando eu comecei a estudar esse assunto, nunca tinha escutado sobre essas histórias que falam de arrogância, de egoísmo, de manutenção de privilégios, de indiferença para com os segmentos mais vulneráveis. Histórias que falam da tendência humana de, muitas vezes, se preocupar apenas com seus próprios desejos e necessidades, sem considerar quem mais é afetado pelas suas ações. Quando conseguimos ser a melhor versão de nós mesmos, reconhecemos estes impulsos e podemos atuar para amenizá-los. Em outras situações, simplesmente nos rendemos e somos tomados pelo que há de pior na humanidade. Por tudo isso, teria sido apropriado que esses midrashim tivessem se tornado os textos básicos de uma religiosidade preocupada com nossa conduta no mundo. Não foi o que aconteceu.

O mais curioso, ou o mais triste, é que a destruição de Sodoma e Gomorra recebeu uma outra narrativa. Ao invés de destacar a falta de solidariedade, de empatia, de generosidade, muitas tradições religiosas preferiram apontar para as práticas sexuais da cidade, insinuando que teria sido a homossexualidade de seus habitantes que teria dado origem à ira Divina. Sodomia, ainda hoje, aparece no dicionário como uma prática de homosexualidade masculina. 

Ao invés de olhar para nossas próprias falhas e identificar áreas em que podíamos crescer, estas abordagens ao texto apontaram para o “outro” como o problema, como a causa da ira Divina. Erramos e perdemos duas vezes: ao não percebermos em Sodoma e Gomorra um espelho para nossas próprias ações de egoísmo, arrogância e violência e ao apontarmos o dedo acusador para grupos inocentes de qualquer culpa.

A prática de responsabilizar o grupo com menos chance de responder ao nosso ataque não ficou restrito às lições religiosas de Sodoma e Gomorra. Ao longo da história — da NOSSA história — inúmeras são as situações em que, ao invés de reconhecer sua responsabilidade pelos problemas que a cercam, a humanidade elegeu atribuir a culpa a um grupo apontado como bode expiatório.

Que as lições da destruição de Sodoma e Gomorra sejam de fato aprendidas, que procuremos nossos fantasmas e resolvamos nossos problemas olhando mais pra dentro e apontando menos o dedo acusador para o primeiro que passar.

Shabat Shalom

[1] Bereshit Rabá 3:7
[2] Gen. 6:5-7
[3] Gen. 18:20-21
[4] Tosefta Sotá 3:3, Pirkei de Rabi Eliezer 25
[5] Eze 16:49-50

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Abandonando os lugares que nos aprisionam

Ein mucdám u-meuchár ba-Torá” é um princípio rabínico de acordo com o qual as passagens relatadas na Torá não estão, necessariamente, em ordem cronológica. Algo que apareça mais cedo no texto pode ter acontecido depois de algo que será relatado mais tarde. Na esperança de que este princípio valha para a forma como tratamos do calendário judaico, vou me permitir tratar de Pessach, festa para a qual ainda faltam mais de cinco meses!

Durante o seder e a contação da história na hagadá, em geral damos pouco destaque à discussão entre Rav e Shmuel, dois sábios da primeira geração de Amoraim da Babilônia, tendo vivido no terceiro século da Era Comum. Rav e Shmuel travavam debates frequentes que foram registrados nas páginas do Talmud. Com relação ao seder de Pessach, ambos aceitavam o princípio estabelecido na Mishná (que havia sido compilada na geração anterior, a última dos Tanaim), de que “Os pais devem ensinar de acordo com a inteligência e a personalidade de cada criança. Comece descrevendo degradação e culmine com a libertação” [1] Ees debatiam, no entanto, qual era o significado da degradação e da libertação sobre a qual deveriam ensinar as crianças. 

Shmuel disse: comece com “fomos escravos na terra do Egito” e continue contando, da escravidão física à libertação política. Rav disse: comece com Terach, o pai de Avraham, e o estado de idolatria em que nossos antepassados se encontravam. “Um dia nossos antepassados eram escravos da idolatria e idolatravam deuses pagãos. Agora, depois do Har Sinai, Deus nos trouxe mais próximos do serviço Divino.”

A parashá desta semana, Lech Lechá, nos traz o início do processo de redenção espiritual sobre o qual Rav entendia que o Seder de Pessach deveria tratar. Nela, Deus diz a Avram: “Abandone a sua terra, do lugar em que você nasceu e a casa do teu pai e vá para a terra que te mostrarei”. O movimento de Avraham, ao deixar a casa dos seus pais e buscar seu caminho em direção à terra de Cnaán não foi apenas uma migração geográfica: foi um processo de renascimento espiritual.

Somos, na imensa maioria, descendentes de imigrantes, de pessoas que deixaram suas terras de origem e se instalaram no Brasil, um processo muitas vezes doloroso de desenraizamento de um lugar conhecido e busca de novas referências em uma nova terra. Somos, por característica cultural, um povo que segue o exemplo de Avraham, sempre em busca de novas referências de visão de mundo; um processo que pode ser igualmente difícil e doloroso, de rejeitar as antigas certezas mas de ainda não estar seguro de quais serão as novas crenças.

A jornada de Avraham, que tem início na parashá desta semana, pode nos servir de referência nessa travessia. O caminho não é, nem nunca foi, linear. Avraham avança e recua, demonstra bondade e caráter (como quando resgata seu sobrinho Lot, que havia sido sequestrado) ao mesmo tempo em que também comete seus erros (como quando, no Egito, tenta passar Sará como se fosse sua irmã). Nossos caminhos tampouco são lineares, aprendemos ao longo da jornada, nos fortalecemos e nos preparamos para os novos desafios.

Que neste shabat consigamos abandonar os lugares e as crenças que nos aprisionam e busquemos nossa redenção no caminho, no esforço de caminhar e aprender.

Shabat Shalom!


[1] Mishná Pessachim 10:4

[2] Bereshit Rabá 39:11



sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Dvar Torá: Que bom que não pensamos todos o mesmo (CIP)


Há alguns dias, antes do anúncio público que veio só hoje, minha filha veio toda animada me contar que a Gisele Bundchen e o Tom Brady estavam se separando. Aos 14 anos, ela adora ficar a par de tudo o que acontece no mundo das celebridades, sabe a data de lançamentos de todos os álbuns da música pop e conhece no detalhe a lista de filmes e séries que seus atores favoritos fizeram.

Apesar de achar a Gisele Bundchen linda e de ter torcido muito pelos arremessos certeiros do Tom Brady quando ele jogava no New England Patriots, não me interesso nada pela vida conjugal dos dois. Isso dito, preciso reconhecer que tem um tipo de stalking que eu, sim, pratico: gosto de visitar os sites de sinagogas em outros lugares e investigar quem são seus rabinos. Em uma destas empreitadas, descobri uma colega que tinha escrito um artigo para um livro editado pela Central Conference of American Rabbis, o sindicato rabínico reformista, que trata de um tema que muito me interessa: a conexão do judaísmo com a justiça social. Não foram nem cinco minutos entre descobrir o livro e tê-lo disponível no meu Kindle. O nome do livro, traduzido para o português: Resistência Moral e Autoridade Espiritual: Nossa Obrigação Judaica com a Justiça Social [1].

Logo no primeiro artigo do livro, o rabino Seth Linner, um dos seus editores,  escreve sobre “Judaísmo e o Mundo Político”. Ele abre o artigo dizendo que inúmeras vezes lhe perguntaram por que o judaísmo se importa tanto com a política e o estrutura como uma longa resposta a este questionamento.

A pergunta faz sentido e parece especialmente apropriada tendo em vista o clima político que temos vivido no Brasil nos últimos anos. Com alguma frequência, escutamos na imprensa comentários de que as religiões deveriam se ocupar da fé, da vida espiritual de suas comunidades, e deixar o debate sobre a vida cotidiana para líderes políticos ou outros analistas. Do ponto de vista cristão pode ser que esta conduta faça sentido, mas a tradição judaica, que vai muito além da religião no que foi definido por Mordecai Kaplan como uma Civilização Judaica, sempre se preocupou com formas de santificar a o comum, o cotidiano, de lhe atribuir intencionalidade, de empregá-la com os valores que nossa tradição transmite.

Nas páginas do Tanach e do Talmud, a vida espiritual ocupa um pequena minoria dos textos. A ênfase está na discussão da forma como tratamos uns aos outros, como protegemos os segmentos mais vulneráveis de nossas sociedades, como combatemos nas guerras, como estruturamos sistemas judiciais imparciais, como pagamos nossos funcionários de forma justa, como cuidamos dos recursos naturais e até quais estruturas de segurança precisam existir em nossas construções. Esses são apenas alguns exemplos de como a tradição judaica se preocupa com o concreto, com a vida que levamos além dos momentos que poderiam ser rotulados como “rituais” ou “religiosos”.

O parágrafo final do artigo do rabino Limmer resume bem esta posição:
Por que o judaísmo se preocupa com a política? Porque a Torá nos ensina que a santidade deve entrar no mundo através de nossas interações com os outros. Porque os profetas protestaram contra a injustiça, sejam pecados no santuário ou abuso de poder no reino político. Porque o Talmud estabelece um sistema intrincado de leis que nos liga aos nossos vizinhos, quer busquemos essa conexão social ou não. Porque, por mais de três mil anos, nossa tradição nos ensinou que todo ser humano é pessoalmente responsável pela posição moral do mundo inteiro.
Tudo isso dito, é claro que não estamos defendendo que um líder religioso defenda do púlpito o voto em um candidato ou em outro — isso seria claramente abuso do seu poder religioso.

O fato de que o judaísmo encare o universo da política como uma área natural para o seu exercício torna ainda mais preocupante do ponto de vista judaico a situação que vivemos hoje. Ao longo da última semana, podcasts da Folha de S. Paulo [2], e do O Globo [3] trataram da polarização afetiva, dos conflitos entre amigos e dentro de famílias que têm levado a rupturas sociais antes inimagináveis. Parte do caldo de cultura que tem permitido que essa polarização aconteça é uma radicalização das narrativas, com a efetiva negação da legitimidade de posições políticas destoantes, além da perda de referências que faz com que já não saibamos o que é verdadeiro e o que não é. 

Dentro da extensa lista de temas sobre os quais o judaísmo se interessa, a possibilidade da divergência ocupa lugar central. Uma das passagens talmúdicas mais famosas a este respeito conta que as escolas de Hilel e de Shamai debateram por três anos um assunto sem conseguir chegar a um consenso. Após este tempo, uma voz divina anunciou: “אלו ואלו דברי אלוהים חיים”, elu veelu divrei Elohim chayim, “tanto umas quanto as outras são as palavras vivas de Deus.” [4] Apesar de opostas, as posições dos dois lados carregavam verdades. Hoje, numa eleição que já foi caracterizada inúmeras vezes como uma guerra entre o bem e o mal, me parece absolutamente improvável que alguém conseguisse enxergar verdades na posição de seu opositor político. Mais do que isso, passamos da disputa eleitoral à guerra eleitoral, um fenômeno que não tem acontecido só no Brasil. 

Na campanha presidencial norte-americana de 2008, em um evento com seus eleitores, John McCain, um eleitor se levantou e lhe disse que tinha medo porque Barack Obama, contra quem McCain concorria, estava aliado aos terroristas. A resposta de McCain foi: “eu preciso te dizer que ele é uma pessoa decente e uma pessoa de quem você não precisa ter medo como presidente dos Estados Unidos”. O público passou a vaiar seu próprio candidato. Na sequência ele disse a outra eleitora, ainda sobre Barack Obama: “ele é um homem de família decente e um cidadão, com quem eu tenho discordâncias em questões fundamentais e é sobre isso de que se trata esta eleição.” [5] Talvez tenha sido pela sua decência em defender  a verdade e seu opositor que McCain perdeu aquela eleição — como outros ciclos eleitorais demonstraram, mentiras têm um poder imenso para criar fanatismo, medo e entusiasmo na eleição. McCain perdeu a eleição de 2008, mas continua sendo apontado como um exemplo de político que não estava disposto a corromper seus valores para vencer a qualquer custo.

A possibilidade de encontrar decência na pessoa de quem se diverge, tratá-la com respeito, é vista cada vez mais como uma esperança ingênua, a descrição de um mundo ao qual nunca mais voltaremos. Quem sabe, o judaísmo e sua visão da política pode ter algo a contribuir para alimentarmos este sonho, mesmo que ele seja fruto da nossa ingenuidade.

Na parashá desta semana lemos a história da Torre de Babel [6]. O texto conta que “toda a terra tinha o mesmo idioma e usava as mesmas palavras”, “דברים אחדים”, dvarim echadim. “Palavras”,  “דברים”, dvarim — a mesma expressão usada para o que a voz Divina, reconheceu como vindas de Deus no caso de Hilel e Shamai, ainda que refletindo posições opostas, é aqui usada para fazer referência às palavras únicas da geração de Babel. As pessoas, então, decidem construir uma torre que chegasse ao céu. Incomodado com o plano, Deus destrói a torre, os dispersa por toda a terra e estabelece múltiplos idiomas. 

O filósofo israelense Ieshaiahu Leibowitz, tem uma leitura bastante inusitada desta passagem e que me parece apropriada para o momento que vivemos. Ele escreveu:
Parece-me que este decreto não foi um castigo mas, pelo contrário, uma medida tomada para o benefício da humanidade. A grande importância do episódio da Torre de Babel não é, de forma alguma, a tentativa de construir uma torre, mas remete para o que foi dito anteriormente, que "a terra – a humanidade renovada após o dilúvio – tinha uma língua e as mesmas palavras”. Após o fracasso da construção, diversos idiomas foram criados, o que levou a diversos discursos. Parece-me que a raiz do erro (ou pecado) da “geração da separação” não foi a construção de uma cidade e uma torre, mas o objetivo de usar esses meios artificiais para garantir uma situação de "uma linguagem e um discurso" – de centralização, o que, em linguagem moderna é conhecido como “totalitarismo". Uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que esta – que não deve haver exceções e que não deve haver desvios do que é aceito e acordado, situação mantida pelos meios artificiais de uma cidade e uma torre. [7]
Para Leibowitz, ingênua é a crença de que estaríamos em uma situação ideal caso todos concordássemos sobre o melhor destino para nossas sociedades. A diversidade de opiniões, por outro lado, é o que possibilita o aparecimento de novas opinões, de oxigenação de modelos, de ideias, de perspectivas. 

Parafraseando John McCain, a maioria das pessoas de quem discordamos politicamente é formada por pessoas decentes, dignas, inteligentes e bem informadas. Elas têm o direito de ter uma opinião diferente da tua sem que isso negue sua humanidade, sua dignidade ou sua honestidade. É graças à diversidade política que podemos contemplar com que modelo de sociedade sonhamos e qual o projeto político que terá maior sucesso em nos levar lá. A alternativa é adotar um modelo de “דברים אחדים", dvarim echadim, de "palavras únicas” e abrir mão da possibilidade de crescer a partir do encontro de pontos de vista que reflitam simultaneamente as palavras vivas de Deus.

Neste domingo, com toda responsabilidade, pense na sociedade com que você sonha e escolha quem te parece ter mais chances de te aproximar dela — sem ódio, sem ressentimentos, sem cancelamentos e sem rompimentos de pessoas que você sempre considerou dignas; não será o voto delas nem o teu que deve te fazer mudar essa opinião. 

Shabat Shalom e bom voto!

[1] Seth M. Limmer e Jonah Dov Pesner, “Moral Resistance and Spiritual Authority: Our Jewish Obligation to Social Justice”, CCAR Press, 2019.
[2] https://open.spotify.com/episode/1awSmQ40tNt6xUaxFtCQMU?si=a12575c5b69f4100
[3] https://open.spotify.com/episode/6hk4S3p63agYyy58EFdvwV?si=ccb1baba71354c3b
[4] Talmud da Babilônia, Eruvin 13b
[5] https://www.youtube.com/watch?v=M0u3QJrtgEM 
[6] Gen. 11:1-9
[7] Yeshayahu Leibowitz, “Earot leParshiot haShavua”, Ch. 2: Bereshit - Noach 


quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Distantes no calendário, próximas nos valores

Muitas vezes, representamos o calendário judaico como um círculo, ao redor do qual escrevemos os meses, os feriados, as estações do ano e as espécies agrícolas cuja colheita na terra de Israel acontecem em cada época. Mais apropriado, me parece, seria representar o ano judaico como uma elipse, na qual existem dois pontos focais: os feriados da primavera, notadamente Pessach e Shavuot, e os feriados do outono, Rosh haShaná, Iom Kipur,  Sucot e Simchat Torá. Muitas são as semelhanças (e também as diferenças) entre as comemorações, apesar das diferentes narrativas e  de estarem diametralmente opostas quando vistas no ciclo anual.

Pessach é conhecida por comemorar a nossa libertação da servidão mas, nas páginas do Talmud, há uma disputa rabínica sobre qual é a servidão da qual fomos libertados. Shmuel acreditava que se tratava da escravidão física aos egípcios e que comemorar Pessach significava celebrar um processo de libertação política. Rav, por outro lado, acreditava que se tratava da escravidão espiritual à idolatria e ao paganismo. Para ele, comemorar Pessach implicava falar de um processo de libertação espiritual.

Rav provavelmente se sentiria validado pelos primeiros feriados de Tishrei, Rosh haShaná e Iom Kipur, que focam no nosso processo de crescimento espiritual, na introspecção e na avaliação das nossas condutas. Shmuel, por outro lado, gostaria de Sucot, na qual mudamos nossa orientação para o que é mais concreto, para a fragilidade dos lugares em que vivemos, em particular os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades.

Em determinado momento do seder de Pessach, abrimos as portas e cantamos Eliahu haNavi, lembrando-nos do profeta que, de acordo com a tradição, anunciará a chegada da Redenção. Sempre pensei que fazíamos este gesto com a esperança de que seria neste ano que chegaríamos à Era Messiânica. Há alguns anos, escutei do rabino Neil Gilman z”l outra interpretação para o gesto: de acordo com ele, depois de passarmos tantas horas cantando sobre a liberdade, poderíamos sair do seder com a ilusão de que o mundo já havia sido libertado. Assim, abrimos a porta para nos dar conta de que há muito trabalho ainda a ser feito para chegarmos a um mundo em que todos possam celebrar sua redenção pessoal e libertação nacional. Da mesma forma, há uma tradição de fincar a primeira estaca da sucá ao sairmos da sinagoga ao final de Iom Kipur. Depois de tantas horas focadas no nosso crescimento espiritual, buscamos equilíbrio trabalhando no mundo, martelo e estacas na mão.

O estudo e a prática da tradição judaica também fazem parte das mensagens destes dois pontos focais do calendário. No foco da primavera, comemoramos em Shavuot a entrega da Torá no Monte Sinai e celebramos passando a noite inteira em estudo; no foco do outono, celebramos a conclusão e o reinício do ciclo de leitura da Torá. Como uma criança que acaba de escutar uma história e, por ter gostado profundamente, pede para que a contem de novo, o povo judeu mal termina um ciclo de leitura da Torá e começa um novo, com muita dança e alegria.

Dois pontos focais na elipse do nosso calendário com mensagens muito semelhantes: a vida judaica deve buscar um equilíbrio entre o crescimento espiritual e o trabalho no mundo e a Torá, com suas setenta faces e inúmeras interpretações, é a ferramenta fundamental para atingir-se este equilíbrio.

Neste domingo à noite (dia 09/10), começamos as comemorações de Sucot e na próxima segunda-feira à noite (dia 17/10), começaremos a comemorar Simchat Torá. Cheque a programação e aproveite a chance de trazer mais significado e textura ao teu ano!

Shaná Tová e Chag Sameach!


terça-feira, 4 de outubro de 2022

Dvar Torá: Resgatando a tradição do questionar. Iom Kipur 5783 (CIP)


Daqui a pouco nós vamos a primeira sequência do Vidui, as listas de transgressões que confessamos, sempre no plural, porque é capaz que, individualmente, não tenhamos cometido todas elas, mas no coletivo, certamente a lista é inclusiva e correta. Pensando nela, eu me dei conta de que falta uma transgressão importante na lista, pelo menos no meu caso: a procrastinação, a compulsão de deixar para amanhã aquilo que não é absolutamente necessário, mas seria bem melhor se fosse feito hoje. Quem procrastina, como eu, sempre encontra alguma coisa urgente que precisa ser feita no lugar da tarefa que nos chama — até coisas que, em outras situações estaríamos evitando a qualquer custo. No caso das prédicas das Grandes Festas, meu armário nunca esteve tão arrumado, minhas louças tão limpas, minha leitura dos jornais tão em dia. Até as redes sociais eu chequei, coisa que não me dá prazer algum. E foi em uma rede social que eu encontrei uma postagem de um ex-chefe meu falando de uma antiga propaganda da Apple, ainda antes da revolução dos iPods, iPhones e iPads que a transformaram na empresa de maior valor de mercado no mundo. Naquela propaganda, víamos imagens em preto e branco de grandes líderes como Albert Einstein, Bob Dylan, Martin Luther King, Jr., Richard Branson, John Lennon e Yoko Ono, Buckminster Fuller, Thomas Edison, Muhammad Ali, Ted Turner, Maria Callas, Mahatma Gandhi, Amelia Earhart, Alfred Hitchcock, Martha Graham, Jim Henson, Frank Lloyd Wright e Pablo Picasso. Enquanto estas imagens passavam na tela, o narrador lia um texto:
Isto é para os loucos, para os desajustados, os rebeldes, aqueles que criam problemas. As peças redondas nos buracos quadrados. Os que vêem as coisas de forma diferente — eles não gostam de regras e eles não têm nenhum respeito pelo status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou difamá-los, mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los — porque eles mudam as coisas, eles empurram a humanidade para frente. Enquanto alguns os vêem como loucos, nós vemos gênios. Porque as pessoas que são loucas o suficiente para achar que podem mudar o mundo, são as que de fato, o mudam. [1]
O comercial terminava com a expressão “Think Different”, “Pense Diferente”, que se tornou o slogan da Apple dali pra frente.

Eu assisti este vídeo e fiquei um bom tempo refletindo. Nós precisamos deste loucos gênios para pensarmos diferente e sairmos do buraco em que estamos. Mais do que isso, precisamos nós sermos estes loucos gênios, irreverentes, que ousaram ver as coisas de forma diferente, desafiar e transformar a sociedade ao seu redor. Curiosamente, as imagens que apareciam na tela tinham poucos judeus, mas eu imediatamente pensei em Avraham, nosso primeiro patriarca e iconoclasta arquetípico da narrativa judaica.
 A tradição judaica considera Avraham como a pessoa que rompeu com a visão religiosa pagã que o cercava e desenvolveu o conceito de monoteísmo. A Torá nunca explica como isso aconteceu e, por isso, diversos midrashim procuraram preencher esta lacuna. 

O mais famoso deles, provavelmente o midrash mais famoso de toda a tradição rabínica, diz que Terach, o pai de Avraham, era um vendedor de ídolos. Um dia, quando Terach sai da loja e deixa Avraham tomando conta, o filho destrói todos os ídolos e deixa o bastão na mão do maior ídolo. Quando o pai volta, Avraham lhe diz que houve uma briga entre os ídolos e que o mais forte deles tinha quebrado os demais. “Do que você está falando?!” lhe responde o pai, “são objetos feito de madeira e argila”. “Por que seus ouvidos não escutam o que a sua boca diz?”, foi a forma como Avraham desafiou os conceitos religiosos de seu pai.

Claro que há uma agressividade desnecessária nesta história, mas ela dá origem a uma visão judaica de mundo no qual não há ídolos sagrados que não possam ser questionados. Na inauguração do Primeiro Templo de Jerusalém, uma obra imensa que tinha consumido recursos muito vultosos para o reino todo, o Rei Shlomô teve a coragem de perguntar: “Mas Deus realmente habitará na terra? Mesmo os céus até os seus confins não podem conter Você, quanto menos esta Casa que eu construí!” [2] Se o Templo não podia servir de morada para o Divino, por que gastar tantos recursos em sua construção?! Quem, hoje em dia, teria a coragem de fazer uma pergunta dessas na inauguração de uma obra cara?!

Na haftará de Iom Kipur, a leitura dos profetas que faremos amanhã de manhã, no dia em que uma grande parte do povo judeu passa jejuando, os rabinos tiveram a coragem de questionar o próprio conceito do jejum e trazer uma leitura em que o profeta Isaías desafia a ideia de que Deus se satisfaz com a forma como jejuamos. Nas palavras que serão lidas amanhã:
Acontece que, mesmo quando estão jejuando, vocês só cuidam dos próprios interesses e continuam explorando quem trabalha para vocês. Vocês jejuam entre rixas e discussões, dando socos sem piedade. Não é jejuando dessa forma que farão chegar lá em cima a voz de vocês. (….) O jejum que Eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer opressão; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente. [3]
De acordo com o rabino Abraham Joshua Heschel, este papel questionador faz parte do job description: “o profeta é um iconoclasta, desafiando aquilo que aparentemente é sagrado, reverenciado e impressionante. Crenças valorizadas como certezas, instituições dotadas com santidade suprema, ele as expõe como pretensões escandalosas.” [4] O rabino Jeffrey Salkin vai além e atribui este job description, não apenas aos profetas, mas a todo o povo judeu: 
A luta judaica milenar tem sido a luta contra os muitos “ismos” da história. Quando necessário, o judeu normalmente se rebelou contra os valores do mundo e procurou mudá-los. O segredo do judaísmo sempre foi ser a materialização de um desajuste criativo. Essa é a descrição do trabalho judaico: ensinar, encorajar, desencorajar, persuadir e influenciar. O judaísmo representa aquilo que é mais do que simplesmente fácil e conveniente. [5]
Novamente, esta conduta nos remete a Avraham. Um dos midrashim que eu mais gosto pergunta porque ele era chamado de Avraham haIvri, “o hebreu”. A resposta que, me parece, mais se relaciona à sua alma e a forma como ele influenciou a conduta judaica no mundo diz que “כל העולם מעבר אחד והוא מעבר אחד”, “o mundo inteiro está de um lado do rio e ele está do outro”. [6]

Para quem acha que é um exagero atribuir estes atributos a todo o povo judeu, talvez seja mesmo — mas ele não é restrito a uns poucos profetas e rabinos. De acordo com o rabino Salkin:
Pode-se facilmente argumentar que a própria modernidade é filha de três judeus que viviam em diferentes graus de intimidade e alienação do judaísmo, e cujo trabalho de vida constituiu uma crítica ao mundo e uma quebra dos ídolos da sociedade: Karl Marx, Sigmund Freud e Albert Einstein. (…)

A esmagação de ídolos reverbera como um tema na cultura judaica moderna. Na música, Arnold Schoenberg criou a escala de doze tons e, assim, quebrou o “ídolo” da tonalidade tradicional. Na literatura, Philip Roth quebrou os ídolos das sensibilidades da classe média judaica. A comédia judaica sempre foi iconoclasta - desde o falecido Lenny Bruce até Sascha Baron Cohen - e Sarah Silverman, que invocou a lenda de Avraham quando brincou: “Lembra do cara que quebrou todos os ídolos na loja de ídolos? A mãe dele teve um ataque cardíaco quando viu a bagunça, mas tenho certeza de que ela se gabou disso mais tarde. Isso somos nós. Essa sou eu. Eu sou judia.” [7]
Mas a verdade é que, apesar de nos enchermos de orgulho quando ouvimos os nomes destes judeus famosos, estamos perdendo a capacidade de sermos iconoclastas, de fazermos perguntas mesmos que elas nos levem a respostas incômodas, de valorizarmos a rebeldia intelectual, mesmo que ela questione as nossas opiniões e nossos privilégios. Nos tornamos conservadores em nossas ideias — mesmo quando parecemos questionadores, dotados de curiosidade intelectual, ela é muitas vezes aparente, desconstruindo argumentos de terceiros mas mantendo seus próprios pontos de vista protegidos de análise. 

Para ser justo, esse não é um fenômeno exclusivamente judaico — temos visto uma radicalização de posições na sociedade como um tudo, a rejeição de opiniões sem considerá-las verdadeiramente. Uma frase famosa de Aristóteles que Maimônides citou na Introdução ao seu Tratado de Oito Capítulos diz “aceite a verdade, quem quer que a diga”. Hoje, pelo contrário, definimos o que é verdade e o que não é baseado em que foi que disse o quê. Quando o meu aliado diz algo é, por definição, verdadeiro. Quando é meu oponente quem o diz é, obviamente, falso.

Idolatramos conceitos, palavras cujo significado nem sempre conseguimos definir com precisão, mas que não podem ser questionadas de forma alguma. Idolatramos referências intelectuais e políticas, instituições e até países cujas opiniões e ações não podem ser escrutinadas sob ameaça de acusações de traição. Apontamos para as contradições nas condutas de outras pessoas, mas perdemos a capacidade de sermos críticos com relação à nossa própria conduta.

Eu comecei brincando que, no meu caso, “procrastinar” deveria estar na lista de transgressões que confessamos neste Iom Kipur — mas a verdade é que deveríamos adicionar “tivemos certezas demais”. Com relação à política, com relação à cultura, com relação ao nosso julgamento das pessoas com quem interagimos, com relação ao judaísmo — tivemos certezas demais e demos espaço de menos para a dúvida, para o questionamento sincero e verdadeiro.

É sempre difícil dizer que estamos no fundo do poço, porque com frequência descobrimos que dava pra descer ainda mais, mas é inegável que vamos mal. Nossas sociedades têm se tornado cada vez mais violentas, intransigentes e pouco acolhedoras às diferenças. O planeta clama para que prestemos atenção à crise ambiental que se torna a cada ano mais intensa e urgente. As redes sociais acirraram discursos extremistas e a pandemia corroeu nossa competência para o contato social com outras pessoas.

Mais do que nunca, precisamos ser capazes de abrir mão das nossas certezas e de fazermos mais perguntas. Perguntas tolas, perguntas difíceis, perguntas para as quais não sabemos se há resposta. O mundo precisa desesperadamente da criatividade que vem quando pensamos diferente, quando temos a coragem de quebrar os velhos ídolos e construir novos caminhos no desconfortável desequilíbrio de não saber.

Voltando ao comercial da Apple, o mundo precisa que sejamos um pouco loucos, desajustados, rebeldes, que criemos problemas. O mundo precisa que tenhamos um pouco mais da chutspá de Avraham. 

Shaná Tová e G’mar Chatimá Tová!

[2] 1 Reis 8:27
[3] Isa. 58:3b-4,6-7
[4] Abraham Joshua Heschel, The Prophets, p. 12.
[5] Jeffrey K. Salkin. The Gods are Broken . Pgs. xv-xvi
[6] Bereshit Rabá 42:8
[7] op. cit. p. xvi-xvii



domingo, 25 de setembro de 2022

Dvar Torá: Dando vida às metafóras sobre Deus. Rosh haShaná 5783 (CIP)


Eu quero começar a prédica com uma história chassídica que eu adoro ensinar e que eu encontrei em um livro de Shai Agnon [1], o autor israelense que ganhou o prêmio Nobel de Literatura de 1966. 
Um chassid um dia visitou seu rebe, o Rabino Elimelech de Lizensk nos dias entre Rosh Hashaná e Iom Kipur e lhe pediu se podia assistir a forma como o rabino conduzia a Capará.
Para quem não conhece o termo, Capará é uma tradição antiga na qual os pecados de uma pessoa eram transferidos para uma galinha na véspera de Iom Kipur, rodando o animal sobre a cabeça da pessoa. O animal era, então, abatido junto com todos os pecados da pessoa e doado. Com o tempo e a preocupação com o bem estar dos animais, algumas pessoas passaram a fazer o mesmo ritual, mas transferindo os pecados para notas de dinheiro que, então, eram doadas. Que fique claro que essas práticas não são mais praticadas pela imensa maioria do mundo judaico liberal.
A resposta do rabino, de alguma forma, surpreendeu o chassid:

 – “Eu estou honrado que você queira me ver fazendo a mitsvá de capará, mas eu preciso te dizer que nesta mitzvá especificamente, minha performance não é nada extraordinária. Se você quiser ver alguém que a faz de uma forma especial, vá ver o Moishe, que toma conta do albergue.”

Na manhã antes de Iom Kipur, o jovem chasid foi até a casa do Moishe observar como ele fazia Capará e ficou espiando pela fresta da janela.

Moishe começou sentando em uma cadeira de madeira em frente a uma pequena lareira em sua sala com“seus dois livros de teshuvá” ao seu lado. Moishe pegou o primeiro livro e disse:

– “Ribonô shel Olam”, Senhor do Universo, chegou a hora de acertarmos as contas  de todas as nossas transgressões do último ano, pois a Capará se aplica sobre todo Israel.”

Ele abriu o primeiro livro, leu o que estava escrito com muito cuidado e começou a chorar. O jovem chasid escutou atentamente enquanto Moishe lia uma lista de pecados (todos sem maior importância) que Moishe tinha cometido no ano anterior. Quando terminou de ler, Moishe pegou seu caderno encharcado de lágrimas, balançou-o sobre sua cabeça e o jogou no fogo. Ele, então, pegou o outro livro, bem mais pesado que o primeiro. E disse:

- “Ribonô shel Olam, Senhor do Universo, antes eu listei todas as minhas transgressões, agora eu vou contar todas as transgressões que Você fez.”

Moishe imediatamente começou a listar todos os episódios de morte, sofrimento, doença e destruição que tinham acontecido durante o ano anterior para todos os membros de sua família. Quando terminou de listar, Moishe disse:

- “Ribonô shel Olam, se formos calcular com exatidão, Você me deve mais do que eu te devo, mas eu não quero ser tão preciso nas contas, por que hoje é véspera de Iom Kipur e somos todos obrigados a fazer as pazes uns com os outros. Portanto, eu desculpo todas as Suas transgressões contra mim e minha família e Você também desculpa todas as minhas  transgressões contra Você.”

Com isso, Moishe pegou o segundo livro, que também estava encharcado de lágrimas, balançou sobre sua cabeça e jogou no fogo.

Ele então colocou vodka no seu copo, fez a benção, e disse “Le chayim!” bem alto. Se sentou com sua esposa e teve uma boa refeição em preparação ao jejum.

O jovem chasid, chocado, voltou ao seu rebe e lhe contou as heresias que Moishe tinha dito a Deus. O Rabino lhe disse:

– “Pois saiba que nos céus, todo ano Deus e toda a Sua corte se juntam para escutar com muita atenção as coisas que Moishe diz. E como resultado, há alegria e satisfação em todos os mundos.”
Como eu disse, eu adoro ensinar esta história porque há nela um elemento transgressor fundamentalmente judaico que acabamos perdendo no último século e meio. Quando eu dou a primeira aula no Curso de Introdução ao Judaísmo, eu digo aos alunos que, enquanto para a maioria das outras tradições religiosas, ser uma pessoa devota significa dizer “Sim, Senhor” para a mensagem Divina, no Judaísmo, um judeu comprometido responde ao chamado de Deus com “como você ousa me pedir uma coisa dessas?!”. Foi assim que Avraham, o primeiro patriarca respondeu quando Deus o instruiu a destruir Sodoma e Gomorra [2]; foi assim que Moshé respondeu quando Deus lhe disse que iria destruir o povo após o episódio do Bezerro de Ouro [3]; foi assim que os rabinos responderam quando Deus tentou se intrometer em uma das suas discussões rabínicas [4]. O nome que o povo judeu recebe na maior parte da tradição rabínica, o povo de Israel, reflete, de alguma forma, esta perspectiva: “Israel” quer dizer, literalmente, “aquele que duela com Deus”. O mais incrível é que Deus parece não se incomodar com o questionamento de Suas ações, pelo contrário: em um episódio em que sua opinião é recusada pelos rabinos, Deus sai sorrindo e dizendo “meus filhos me derrotaram”, orgulhoso como um pai cuja filha o derrota no jogo de xadrez.

Quando eu ensino a história do Moishe fazendo sua capará inovadora, as pessoas parecem apreciá-la, e eu acho que a razão para isso é que elas admiram a conduta dele. Mas a verdade é que eu acho que elas também se identificam com a conduta do chassid, que acha que trata-se de heresia. 

Queremos um novo modelo de relacionamento com o Divino mas temos uma dificuldade imensa de abrirmos mão do modelo atual, mesmo que nos sintamos profundamente incomodados com ele.

Na preparação para esta predica, eu estava lendo um livro chamado “Deus o quê? O que nossas metáforas para Deus revelam sobre nossas crenças sobre Deus”. Logo no começo do livro a autora, Carolyn Jane Bohler, oferece um questionário sobre as nossas crenças e ela sugere que os leitores o preencham antes de ler o livro e, de novo, depois de terminá-lo. 

Pessoalmente, depois de todos os anos de seminário rabínico, me considero um sujeito com uma educação judaica sofisticada, cuja compreensão de Deus não está baseada, de forma alguma, no que eu chamo de “o Deus Papai Noel”, de longas barbas brancas, sentado em um trono no céu, observando cada detalhe das nossas vidas. Meu entendimento do Divino é fluido, mas está muito mais próximo de Mordecai Kaplan, o fundador do movimento Reconstrucionista, que definiu Deus como “a força que causa a Salvação” ou de quem entende Deus como um processo ou ainda de Maimônides, o filósofo racionalista para quem a humanidade nunca seria capaz de afirmar com convicção o que Deus é, apenas o que Deus não é, como dizer que Deus não tem um corpo. E, apesar disso tudo, ao final do questionário, que tinha afirmações como “Deus continua trabalhando em nós, nos moldando”, “Deus e a humanidade compartilham poder e responsabilidade”, e “Deus toma o que é e, uma vez após a outra,  busca criar o melhor com o quem tem”, eu me surpreendi em me dar conta que a maior parte das minhas respostas partiam da premissa do “Deus Papai Noel”, aquele no qual eu não acredito. Eu fiquei me perguntando por que será, se essa não é o entendimento que eu tenho do Divino, que eu respondi as perguntas assim?

Porque o contexto que nos cerca conta e o contexto repetido conta ainda mais. Não sei quem acompanhou a polêmica do lançamento do trailer do filme com atores reais da Pequena Sereia, no qual o papel da protagonista é desempenhado por Halle Bailey, uma atriz negra. De um lado, fãs revoltados com o fato de que a Pequena Sereia do filme não terá a pele clarinha, quase branca, da versão em desenho animado. De outro,   crianças negras emocionadas em descobrir que sua heroína será retratada como alguém parecido com elas…. Eu nunca encontrei uma sereia nem conheço ninguém que tenha encontrado uma. Não sei a cor da sua pele nem do seu cabelo, não sei a altura nem o seu tom de voz — e mesmo sem conhecermos uma sereia, ninguém reclamou quando a personagem criada por Hans Christian Andersen no século 19 foi retratada como uma mulher branca de cabelo ruivo em um desenho da Disney. Sem deixar de lado o fato de que várias reclamações tinham uma inspiração racista, há também a verdade de que, depois de retratada branca e ruiva em inúmeros filmes infantis, a imagem ficou gravada nas nossas consciências. São bonecas, desenhos animados da Disney e de outros estúdios, roupas, e muitos ítens martelando essa ideia na nossa cabeça desde 1989, quando o longo metragem de animação foi lançado. Esse processo de repetição de uma imagem torna aquela que seria apenas uma possibilidade de leitura da aparência da personagem na única concepção verdadeira que ela poderia ter.

O mesmo fenômeno acontece com nossas percepções teológicas. Dentro do mundo judaico, toda vez que vamos dizer uma brachá usamos a fórmula “ברוך אתה ה׳, אלהינו מלך העולם”, “Você é Abençoado, ה׳, nosso Deus, Rei do Universo”. Vários aspectos do Divino estão implícitos nessa curta fórmula: Deus é outro, a quem endereçamos por אתה, Você — e portanto não é parte de nós. Deus é Masculino. Deus é hierárquico, nosso Rei e de todo o mundo. Na cultura mais ampla, quando Deus é personagem de um filme é, na imensa maioria das vezes, retratado como uma pessoa branca, idosa e de voz bem grave. Mesmo os humoristas mais desconstruídos, que mais questionam perspectivas religiosas tradicionais retratam Deus desta forma — outro, masculino e hierárquico. Quando Deus é apresentado como algo fora deste figurino — e tivemos várias tentativas assim nos últimos anos — tem a mesma recepção que a Capará do Moishe: é heresia!

Eu fiz um exercício com grupos de educadores e alunos nos últimos meses: lhes perguntei que atributos eles dariam a Deus de acordo com a forma como é retratado na Torá e na liturgia judaica. A maioria das respostas esteve longe de ser acolhedora: “punitivista”, “egocêntrico”, “dogmático”, “temido”, “violento”, “misógeno” foram algumas das expressões que me foram dadas. No entanto, quando eu perguntava sobre o que eles acreditavam a respeito de Deus, recebia respostas completamente diferentes, que falavam em acolhimento, parceria e horizontalidade. Pelos textos que lemos, pelas rezas que dizemos, pela realidade cultural em que vivemos, passamos a aceitar que a perspectiva “correta” de Deus é uma na qual, muitos de nós não acredita mais.

“Não acredita mais” também precisa ser qualificado por que está implícito nesta formulação que um dia os judeus acreditaram neste Deus. O rabino Larry Hoffmann é um dos principais — se não, o principal — especialista em liturgia judaica dentro do mundo judaico liberal. Ele contesta a ideia da qual fomos convencidos de que nossos antepassados acreditavam nestes textos de forma literal. Em suas palavras:
 
Para complicar a situação, ainda é muito ruim nossa compreensão de nossos antepassados, que consideramos santos sem humor que não tiveram que sofrer os problemas com a reza que nos atormentam. Mas e se eles fossem mais parecidos conosco do que pensamos? As mesmas rezas que nos incomodam os incomodaram - um Deus todo-poderoso, todo-bom e onisciente que permite que crianças inocentes morram, por exemplo? Quando encontraram essas alegações litúrgicas, eles as levaram literalmente? Ou eles já haviam chegado a um acordo com a impossibilidade de expressar o profundo? Eles tiveram que aguardar críticas literárias modernas para desenvolver aquilo que agora chamamos de "estratégias de leitura" - ou eles já sabiam o suficiente para ler da maneira que fazemos, reconhecendo a poética da símile, da hipérbole, da personificação, etc? Afinal, o fato de viverem em tempos medievais não os torna nem infantilmente ingênuos nem mentalmente incompetentes. Alguns deles eram gênios como Maimônides, que negaram a corporalidade de Deus e anteciparam nosso mal-estar com rezas que tratam Deus como se Deus fosse um juiz humano demais que requer pacificação por reza e petição. Mas Maimônides foi o único que pensou em tais "heresias" ou era apenas uma pessoa particularmente importante que ousou dizê-las em voz alta? Os grandes escritores nem sempre desenvolvem idéias que ninguém jamais teve, mas as expressam com palavras que evocam saberes de leitores que mais ou menos suspeitavam dessas verdades de qualquer maneira, mas não tinham como expressá-las.

Da mesma forma, o que diríamos sobre os autores dessas rezas? Como saberíamos se eles escreveram ironicamente, em vez de literalmente, por exemplo? O hebraico deles não era vocalizado, deixando a nós, leitores, adivinhar pontuação como vírgulas e pontos, mas também pontos de exclamação por intensidade, pontos de interrogação para indicar incertezas retóricas e aspas para alertar contra uma compreensão literal do que eles colocam. E se estivermos entendendo tudo errado? Podemos ver, por exemplo, com que frequência eles citaram a Bíblia; mas se a principal preocupação deles fosse citar, como saberíamos se eles pretendiam que as citações fossem verdades literais? Citamos as “sete eras do homem” de Shakespeare para transmitir a idéia de desenvolvimento humano, mas não para dizer que existem sete dessas eras especificamente pelas quais os “homens”, mas não as mulheres, passam. Se alguém escreve "divinamente", não queremos dizer que realmente escreva como Deus. E se nossos escritores de reza mais talentosos quase nunca interpretassem seus escritos literalmente? E se eles fossem talentosos do jeito que os escritores são hoje - capazes de esticar a linguagem com imaginação suficiente para transmitir o que o pensamento conceitual comum nunca chegará? [5]
Eu li na semana passada um artigo do Fernando Reinach segundo o qual encontraram um esqueleto em Bornéu, na Indonésia, que teve uma perna amputada entre o joelho e o pé 31 MIL anos atrás. As marcas nos ossos demonstram que não foi um acidente, mas uma amputação cirúrgica. A cirurgia aconteceu quando o paciente tinha 14 ou 15 anos e ele viveu até os 20 anos. De acordo com Reinach:
O que me parece óbvio é que essa descoberta vai levar os cientistas a reconsiderar o grau de desenvolvimento tecnológico e cultural desses povos. Como essas populações não conheciam a escrita e praticamente não construíam obras arquitetônicas, tudo o que sabemos sobre elas foi aprendido escavando locais em que viviam e estudando os ossos, as pinturas, os restos de alimentos e os poucos artefatos encontrados. Com tão pouca informação, é natural subestimarmos o progresso dessas sociedades. Uma descoberta como essa vai nos forçar a reavaliar o conhecimento e as tecnologias que essas pessoas já dominavam. [6]
Há mais de 30 mil anos a humanidade já conseguia amputar órgãos mas continuamos imaginando que nossos antepassados acreditavam na Torá de forma literal e que nossos rabinos escreveram a liturgia judaica sem nenhuma dose de licença poética, sem uso de metáforas e sem ironias. Todas essas seriam técnicas modernas para escapar de uma realidade teológica com a qual não conseguimos nos adequar.

Em seu livro “Teologia Metafórica: Modelos de Deus na Linguagem Religiosa”, Sally McFague defende que a leitura de textos religiosos com se eles tivessem um significado único e literal constitui “idolatria da linguagem religiosa”: 
Os antigos eram menos literalistas do que nós, conscientes de que a verdade tem muitos níveis e que quando se escreve a história da vida de uma pessoa influente, a perspectiva de alguém colorirá essa história. A nossa é uma mentalidade literalista; a deles era uma mentalidade simbólica. [7]
E se uma leitura simbólica fosse uma possibilidade ao nosso alcance? E se nos permitíssemos ter uma leitura generosa e radicalmente metafórica dos poemas litúrgicos que leremos nesses dias de Grandes Festas?

No livro sobre metáforas religiosas que eu mencionei acima, a autora propões técnicas para sermos capazes de usar estas metáforas com intenção, sem sentir que estamos nos submetendo a uma teologia que não é a nossa — e também para reconhecer que algumas destas metáforas não funcionam conosco e que devemos buscar outras referências. Em um desses exemplos no qual a releitura foi possível, ela fala da imagem de Deus como ceramista,  que faz parte da liturgia de Iom Kipur e que me era cara e incômoda. Me incomodava a ideia de Deus como ceramista porque ela me colocava no incômodo e passivo papel de argila, sem agência alguma e sujeito à vontade do meu Criador. Carolyn Jane Bohler, a autora, conta no livro que seu filho trabalha com argila e o que ela aprendeu com ele é que são necessárias várias tentativas até que o produto final esteja pronto. Ela continua, dizendo que o Ceramista Divino gosta de ser criativo, de nos editar, nos moldar e nos dar forma.

Com uma leitura generosa assim, sem ofender o sentido do texto mas tampouco assumindo que seus autores tinham a intenção que adotássemos uma leitura literal, eu consegui enxergar uma forma como o Divino que reside dentro de mim, de forma não hierárquica e sem assumir qualquer gênero, me ajuda a me transformar o tempo todo, em diálogo comigo, e como buscamos juntos que eu me transforme na melhor versão de mim mesmo. A própria autora reconhece que nem todas as metáforas dão espaço para este tipo de busca simbólica. No livro do profeta Hoshea, Deus se compara a um marido abusivo — uma imagem, talvez impossível de ser resgatada, especialmente para vítimas de abuso doméstico. Muitos outras, no entanto, foram o bebê proverbial jogado fora junto com a água suja.

Na melhor prédica que eu já li, a rabina Margaret Moers Wenig retrata Deus como uma velha mulher esperando seus filhos visitarem em Iom Kipur. Em um certo momento, Deus reclama dos cartões postais que seus filhos lhe mandam, com palavras impressas escritas por outros, nas quais eles apenas assinam seu nome — no final do texto, fica claro que estes cartões postais são as páginas do machzor, o livro de rezas de Rosh haShaná e Iom Kipur, palavras que repetimos como se fossem nossas, como se tivéssemos a intenção que elas transmitem, sem nem ao menos pararmos para refletir sobre o seu significado.

Moishe, o dono da hospedagem, teve a coragem radical de fazer cheshbon hanefesh, a contabilidade da alma, por ele e por Deus e, assim, dar significado ao ritual de Capará. Será que nós também somos capazes deste tipo de coragem radical e de transformar a experiência destes dias temíveis em algo verdadeiramente significativo e transformador?

Shaná Tová! Que seja um 5783 transformador e muito doce para todos nós!


[1] S. Y. Agnon, “A Conta”, Yamim Noraim, parte II, cap. 22
[2] Gen. 18:25
[3] Ex. 32:11-13
[4] Talmud Bavli Bava Metsia 59b
[5] Lawrence A. Hoffman, Talmud Bavli Bava Metsia 59b “Prayers of Awe, Intuitions of Wonder”, Who by Fire, Who by Water: Un’taneh Tokef. Lawrence A. Hoffman (ed.), Woodstock, Vt: Jewish Lights Pub, 2010. pp. 4-12.
[6] Fernando Reinach, “A mais antiga perna amputada”, Estado de São Paulo, 17 de setembro de 2022
[7] Sallie McFague, Metaphorical Theology: Models of God in Religious Language, p. 23/401 (e-book)

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Dvar Torá: Tshuvá por nossa história coletiva (CIP)


No longínquo ano de 2014, eu trabalhava em uma escola judaica de São Paulo e levei uma turma de alunos do Ensino Médio para a Marcha da Vida, a visita aos campos de concentração e extermínio que ajudaram a praticamente exterminar a vida judaica em diversos países europeus durante a Segunda Guerra Mundial. Quando estávamos na Polônia, eu encontrei o Celso Zilbovicius, amigo desta casa e meu amigo pessoal, diretor pedagógico da Marcha dos Universitários, organizada pelo Fundo Comunitário de São Paulo. Eles tinham ido pela primeira vez a Berlim, que não fazia parte do nosso roteiro e eu lhe perguntei como tinha sido. “Eles se encontraram com seu passado e com toda a dor que dele deriva de forma verdadeira e corajosa”, ele me disse. “A partir de agora, nosso roteiro sempre passará a incluir a Alemanha” na Marcha. 
Esse encontro verdadeiro e corajoso com nossos erros tem nome na tradição judaica: “tshuvá”, que vem da raiz “lashuv”, “retornar”. Em hebraico contemporâneo, “tshuvá” quer dizer “resposta”, da mesma forma que, em português, nós dizemos que daremos “retorno” a algum questionamento mais complexo depois de averiguá-lo. Quando mencionamos “tshuvá” no do contexto judaico ao qual eu estou me referindo, é muito frequentemente traduzido como “arrependimento”, mas é um conceito muito mais complexo e estruturado do que o que normalmente entendemos por “arrependimento”.

O rabino Joseph Soloveitchik, a principal referência do Ortodoxia Moderna norte-americana no século XX carinhosamente chamado de “O Rav”, falaou assim sobre a tshuvá:
É um preceito cuja essência não está na realização de certos atos ou feitos, mas sim em um processo que às vezes se estende por toda uma vida, um processo que começa com o remorso, com o sentimento de culpa, com a crescente consciência do homem de que não há propósito para sua vida, com uma sensação de isolamento, de estar perdido e à deriva no vácuo, de falência espiritual, de frustração e fracasso - e o caminho a ser percorrido é muito longo, até que o objetivo do arrependimento seja realmente alcançado. O arrependimento não é uma função de um ato único e decisivo, mas cresce e aumenta de tamanho lenta e gradualmente, até que o penitente sofre uma metamorfose completa, e então, depois de se tornar uma nova pessoa, e só então, ocorre o arrependimento. [1]
Tshuvá é um tema central da preparação espiritual que nos leva a Rosh haShaná e a Iom Kipur e da liturgia das Grandes Festas. Também é, pelo menos gramaticalmente, importante na parashá desta semana, na qual temos 8 variações verbais de “lashuv” em apenas 10 versos [2]. Certamente, não é por coincidência que os rabinos estruturaram o ciclo de leituras da Torá de forma que parashat Nitsvamim caísse quase sempre no Shabat antes de Rosh haShaná.

Hoje eu queria propor um exercício um pouco diferente daquele que vamos fazer em Rosh haShaná e Iom Kipur. Lá, o foco será, na maioria das vezes, os erros que cometemos individualmente, as pessoas que ofendemos pessoalmente, as formas como nos afastamos da pessoa que gostaríamos de ser. Hoje, eu queria que pensássemos em um processo mais coletivo de tshuvá, de pensarmos como comunidade, como sociedade, como nação, as formas como erramos no nosso passado e a forma como, em muitos destes casos, a tshuvá verdadeira e profunda, como definiu o Rav Soloveitchik.

Como vocês devem saber, eu escuto muitos podcasts e nas últimas semanas, uma coincidência de efemérides me levou a pensar em nossos erros históricos cujos processos de tshuvá ainda estão no início: de um lado, os 200 anos da Independência do Brasil, em especial quando avaliados em perspectivas distintas daquelas que eu aprendi na escola — olhando para estes processos a partir do olhar de mulheres, de negros, de indígenas e de outros grupos cujas experiências históricas foram quase apagadas mas que agora começam a re-aparecer [3]. De outro lado, a semana que vem marcará 30 anos do Massacre do Carandirú, no qual 111 presos foram brutalmente assassinados, sem que nenhuma pessoa tenha ido para a prisão. Estes são dois temas caros para mim, que talvez não sejam para vocês, mas podemos todos concordar que merecemos um encontro profundo e verdadeiro com nosso passado, que este processo será dolorido e nos causará constrangimento, mas que ao final dele sairemos melhores e mais fortes. Guardadas as proporções, o exemplo da Alemanha sempre ecoa nos meus ouvidos quando penso neste tema — certamente não foi fácil para um geração de alemães que não tinham nascido quando a Shoá foi perpetrada por seus pais, avós e bisavós falar dos erros como se fossem pessoalmente deles, mas nenhum processo que levasse a menos do que isso levaria à transformação necessária.

A rabina Danya Ruttenberg publicou há algumas semanas um livro sobre este assunto entitulado “On Repentance and Repair”, “Sobre o Arrependimento e o Reparo”, no qual ela se baseia nos ensinamentos de Maimônides sobre a tshuvá para analisar o momento que a sociedade norte-americana vive hoje. Em suas palavras:
O trabalho de se arrepender completamente é o trabalho de transformação. É o trabalho de enfrentar histórias falsas e se envolver com a realidade dolorosa. É o trabalho de estar aberto para nos ver como realmente somos, de entender que as necessidades e a dor de outras pessoas são pelo menos tão importantes - se não mais - do que as nossas. É sobre descobrir como ser o tipo de pessoa que vê o sofrimento dos outros e assume a responsabilidade por qualquer papel que possamos ter em causar isso. É sobre reconhecer sua responsabilidade - reconhecer quem fomos e o que fizemos, e também reconhecer a pessoa que somos capazes de nos tornar.
Na estrutura que ela adota, fortemente baseada na que propôs Maimônides, há cinco etapas no processo de tshuvá:
  1. Reconhecimento do erro e da sua responsabilidade por ele. Aqui, a rabina Danya destaca que é fundamental ser o mais específico possível e indicar porque essa ação machucou outras pessoas. Pedidos genéricos de desculpas, sem indicar o motivo ou sem reconhecer nossa culpa não levam ao processo de tshuvá verdadeiro. Nas suas palavras: “Uma pessoa não pode se arrepender se não entender por que o que aconteceu é realmente um grande problema – por que a pessoa que foi magoada está realmente ferida.” O exercício de empatia, de reconhecer uma situação da perspectiva de outra pessoa, que não necessariamente tem os mesmos valores que você, e entender como tuas ações a machucaram não é trivial mas é profundamente necessário, como reconhecemos quando somos nós as vítimas da ofensa.
  2. Começar a mudar. Nas palavras de Maimônides: “O que é arrependimento completo? O [caso de] alguém que tinha o poder de repetir uma transgressão, mas se separou dela e não o fez porque se arrependeu” [4]. Mudar sempre é difícil. Carregamos conosco nossos vícios, nossas manias — nos acostumamos com eles, não queremos abrir mão de quem fomos até agora. No entanto, se não nos transformarmos, continuaremos tomando as mesmas decisões e cometendo os mesmos erros.  Não há processo verdadeiro de tshuvá sem uma mudança de algo significativo em quem somos. Na época de Maimônides, as ferramentas para esta etapa incluíam a reza em súplica, a doação financeira, colocar-se em situação de vulnerabilidade — como ir morar em outro lugar — para desinflar o ego e permitir que a mudança ocorresse. A rabina Danya propõe uma atualização desta lista, adicionando terapia, meditação, e se educando sobre os temas relacionados à ofensa para garantir uma compressão mais sofisticada e complexa do que está em jogo. 
  3. Restituição e Aceitação das Consequências. Maimônides listou cinco categorias nas quais a restituição deveria ser paga em casos de dano físico: pela ofensa em si mesma, pela dor, pelos custos médicos, pelo tempo sem trabalhar e pela humilhação.  Para cada uma destas categorias, poderíamos pensar qual sua melhor aplicação em cada caso. Se uma pessoa, em função de um ato causado por outro, perdeu a oportunidade de continuar na sua área profissional, por exemplo, a restituição pode incluir o custo de treiná-la em outra profissão, de tal forma que ela possa voltar a ter um emprego.
  4. Desculpas. Mesmo depois que uma pessoa fez “restituição da dívida monetária, ela é obrigada a apaziguar [a pessoa prejudicada] e implorar seu perdão. Mesmo que ela só tenha ofendido a outra pessoa verbalmente, ela deve apaziguar e implorar até que [a parte prejudicada] a perdoe.” De acordo com a rabina Danya, “um verdadeiro pedido de desculpas não se destina à pessoa que foi ferida, mas é dada em relação a ela. Requer vulnerabilidade e escuta empática; exige uma oferta sincera de arrependimento e tristeza por suas ações. Requer compreensão de quando aproximar-se de uma vítima pode prejudicá-las ainda mais e navegar por isso com sensibilidade. O objetivo não é fazer mais danos, mas fazer um trabalho que seja de cura, de reparação. Isso significa que as necessidades da vítima devem sempre estar no centro do processo.”
  5. Tomando decisões diferentes. O processo de tshuvá só está completo quando, apresentado com um contexto semelhante, tomamos decisões distintas. Somos frutos do hábito e, sem querer, tomamos decisões muito parecidas uma vez depois da outra. Mudar esta forma de agir exige intencionalidade e reconhecimento do impacto das nossas ações.
A rabina Sharon Brous, de cuja comunidade eu tive a honra de fazer parte em algum momento, sempre diz que o judaísmo é paradoxalmente exigente e otimista ao mesmo tempo. De um lado, nos aponta com frequência a necessidade de tshuvá, de transformação profunda; de outro, sempre acredita no nosso potencial de nos transformarmos e oferece inúmeras oportunidades para fazê-lo. Neste sentido, a rabina Danya cita Rav Nachman de Brestlav: “Se você acredita que pode causar danos, acredite que pode consertar. Se você acredita que pode machucar, acredite que pode curar.”

Que estas Grandes Festas sejam uma experiência transformadora para todos nós, individual e coletivamente e que em 5783 nos encontremos com a versão de nós mesmos que sempre sonhamos ser.

Shabat Shalom! Shaná Tová!


[1] Pinchas Pelo, “On Repentance: The Thought and Oral Discourses of Rabbi Joseph Dov Soloveitchik”, p. 75
[2] Deut. 30:1, 2, 3 (3x), 8, 9, 10
[4] On Repentance and Repair, p. 52/381 (e-book)