quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Judaísmo e Poder: uma história ambivalente

(artigo originalmente publicado na Revista Devarim 36, pgs. 53-56)

Com a proximidade das eleições e o acirramento das posições políticas, tanto dentro quanto fora da vida judaica, discussões sobre a representatividade das instituições comunitárias e do relacionamento institucional com as esferas de poder político passaram a pautar, com alguma centralidade, a agenda comunitária. Esta divisão política não é, de forma alguma, uma experiência inédita [1] mas o potencial de amplificação representado pelas redes sociais virtuais tem dado nova dimensão às disputas. Neste sentido, parece necessária a análise do que a tradição judaica tem a dizer sobre o relacionamento com as esferas de poder, sejam eles internos ou externos às instâncias comunitárias e sobre as formas como estes debates são conduzidos.

Uma das passagens mais famosas de Pirkei Avot [2], o tratado da Mishná também conhecido como “Ética dos Pais”, procura caracterizar dois tipos de debates. Discussões produtivas são chamadas de “polêmicas em nome dos céus” (machloket l’shem shamayim) e seus resultados tendem a ser eternos; polêmicas destrutivas, por outro lado, têm impacto limitado no tempo. Como é típico da tradição rabínica, não há no texto uma definição específica do que constitua uma “polêmica em nome dos céus” - temos apenas dois exemplos, dos quais precisamos inferir a definição de cada categoria. O exemplo paradigmático que esta passagem dá para discussões produtivas é Hillel e Shamai, dois sábios que viveram no século I aEC e que são considerados precursores do movimento rabínico que estabeleceria, alguns séculos mais tarde, os parâmetros da vida judaica como a vivemos hoje. Hillel e Shamai discordavam em tudo, mas uma outra passagem da Mishná [3] nos conta que, mesmo assim, havia convívio social respeitoso entre eles, seus seguidores e suas famílias. Em contraponto, o exemplo para discussões destrutivas é a polêmica entre Korach e seus seguidores, que se levantaram em rebelião contra Moshé quando o povo vagava pelo deserto a caminho da Terra de Israel [4]. 

Que características justificam a distinção estabelecida entre as disputas entre Hillel e Shamai, de um lado, e a de Korach e seus seguidores, do outro? De acordo com os comentários tradicionais [5], uma “polêmica em nome dos céus” busca revelar a verdade com relação a um determinado assunto, ao passo que “uma polêmica que não seja em nome dos céus” se preocupa unicamente com o poder e o status conferido pela disputa. Uma análise mais profunda, no entanto, nos revela que a questão é, potencialmente, mais complexa. De um lado, o nome dos filhos de Korach são relembrados em onze salmos [6], indicando a perenidade também de sua memória; de outro, o Talmud revela episódios em que as disputas entre Hillel e Shamai não foram exatamente “amigáveis”, relembrando situações nas quais elas foram resolvidas apenas através da violência [7]. 

Alguns comentaristas apontam para o fato de que a polêmica entre Hillel e Shamai ter se dado entre iguais, ao passo que a disputa entre Korach e Moshé se deu entre alguém que detinha autoridade e alguém que a questionava. Esta leitura aponta a questão da legitimidade das disputas para sua relação com a autoridade estabelecida, em particular quando há uma assimetria de poder entre as partes. A partir dela, temos uma primeira evidência do caráter complexo e multifacetado da relação judaica com o poder estabelecido, especialmente durante os séculos nos quais a vida judaica se desenvolveu quase exclusivamente na Diáspora.

Um lado da questão é revelado por outra passagem de Pirkei Avot: “Tenha cuidado com o governo, pois (seus membros) se aproximam apenas por seus próprios problemas. Eles se apresentam como amigos nos bons tempos, mas não ficam ao seu lado nos tempos difíceis” [8]. A perspectiva de que o governo (na época em que o texto foi escrito, o Império Romano), ainda que se apresente como seu aliado nos tempos de bonança, está defendendo apenas seus próprios interesses, reforça a impressão de uma relação complexa com as autoridades que detêm o poder. 

Por outro lado, um ponto de vista mais positivo com relação à possibilidade de relacionamento construtivo com o poder é revelada em uma história sobre o estabelecimento da academia rabínica em Iavne, a cidade onde se deu a redação da Mishná, a obra na qual Pirkei Avot se insere. Conta a tradição rabínica [9] que, quando Jerusalém estava cercada pelas tropas romanas e os zelotas judeus impediam o estabelecimento de um acordo de paz com os romanos, Raban Iohanan ben Zakai conseguiu escapar da cidade e negociou com o general Vespaziano sua rendição e a de seus discípulos, tendo como contrapartida a garantia para o estabelecimento de Iavne como novo centro da vida intelectual judaica após a destruição de Jerusalém. Neste caso, a intransigência dos zelotas em negociar com o poder romano levou à destruição de Jerusalém, enquanto a disposição de Iohanan ben Zakai garantiu a sobrevivência judaica. A mensagem aqui, ao contrário do texto anterior, parece ser a da possibilidade de interação positiva com o governo.

A verdade é que já em textos bíblicos encontramos ambivalência com relação à proximidade ao poder, especialmente para a vida sob domínio estrangeiro. Nestes casos, a proximidade com o poder significa, simultaneamente, oportunidade e risco. Em Gênesis, temos a história de Iossef, cuja ascensão ao cargo de vice-rei do Egito garantiu suprimento para a família de seu pai quando a seca chegou à região. Quando seus irmãos lhe pedem perdão por tê-lo vendido como escravo anos antes, sua resposta indica que tudo fazia parte do plano Divino, para que ele pudesse estar próximo ao poder do Egito quando a necessidade se apresentasse [10]. No entanto, com relação ao mesmo Egito, temos, no início do livro de Êxodo, a ascensão de um novo faraó que, amedrontado pela presença israelita na terra, decide escravizar os hebreus e exterminá-los [11]. Da mesma forma, a história de Ester, marca o risco e a oportunidade que a comunidade judaica da Diáspora corre ao se aproximar do poder.

Mesmo com relação ao Poder absoluto representado por Deus, a tradição judaica tem sido ambivalente. De um lado, Deus é inquestionável e a devoção incondicional é celebrada em textos e na liturgia. De outro lado, o questionamento de Deus é, paradoxalmente, também valorizado. Avraham, questiona Deus de forma quase agressiva, “o Juiz de toda a Terra não julgará de forma justa?” [12], quando Deus lhe conta Seus planos de destruir Sodoma e Gomorra. Também Moshé, após o episódio do Bezerro de Ouro, questiona os planos Divinos de destruir todo o povo, insinuando que isto daria argumento aos egípcios, que diriam que os Israelitas tinham sido tirados do Egito para serem mortos no deserto e relembra Deus da promessa que havia feito aos patriarcas [13]. A tradição rabínica, provavelmente seguindo estes exemplos, também tem sua dose de chutzpá [14] na relação com a autoridade Divina. Em uma famosa passagem talmúdica [15], Deus tenta interferir em uma discussão na academia rabínica. A resposta dos sábios é clara no sentido de rejeitar a intervenção de Deus: “a Torá não está nos céus”, eles dizem citando um verso bíblico [16], “vocês devem seguir a vontade da maioria” [17], eles complementam citando outro verso. Esta última citação bíblica é especialmente interessante, tendo em vista que ela se estabelece como fonte para a abordagem judaica de decidir questões legais baseadas na vontade da maioria. Seu significado no contexto original não parece, no entanto, justificar esta leitura. O verso bíblico diz: “você não deve seguir rabim para fazer o mal e não dê testemunho em uma disputa para desviá-la de uma forma que a desvie na direção de rabim.” A palavra rabim (רַבִּ֖ים) pode significar “poderosos” ou “maioria”, mas, de qualquer forma, a injunção bíblica parece ser no sentido de não perverter a justiça seguindo a vontade da maioria ou dos poderosos. A interpretação rabínica, no entanto, ao tirar parte da frase do contexto, a estabeleceu como a evidência textual para regra da maioria na tradição judaica. 

Durante os quase dois milênios em que a comunidade judaica viveu quase exclusivamente na Diáspora e na qual a administração interna da comunidade judaica era deixada, na grande maioria dos casos, às suas próprias instituições, o preceito de seguir a maioria guiou, em grande medida, a abordagem judaica para o estabelecimento do seu próprio modelo de poder e governança. A definição do que constituía maioria, no entanto, era questão de debate. O rabino Eliahu Mizrahi, escrevendo na Turquia no final do século XV, expressou uma opinião inclusiva na definição de quem deveria ser contado para a maioria:
“puro e impuro, inocente e culpado…. todos devem ser contados e devem seguir a decisão da maioria, como está escrito na nossa sagrada Torá: ‘você deve decidir de acordo com a maioria’; e aquele que se opuser à maioria é considerado um pecador. Não faz diferença se a maioria é rica ou pobre, de homens sábios ou de pessoas comuns, porque toda a comunidade é considerada um tribunal em assuntos relativos a todos os seus membros.” [18]
Sua opinião, no entanto, não prevaleceu e as autoridades rabínicas medievais redefiniram muitas vezes o conceito de maioria para fortalecer os grupos dominantes – num claro sinal de que o preceito que defendia distância (ou uma postura crítica) com relação aos poderosos não se aplicava quando a liderança rabínica era, ela mesma, o governo judaico. Em alguns casos, os rabinos consideravam apenas os anciãos da cidade para composição da maioria; Rabeinu Asher chegou a propor, no final do século XIII, que apenas a elite econômica devia opinar em questões tributárias. Samuel de Medina de Salônica, defendeu que o voto deveria ser qualificado e que o voto de uma pessoa culta poderia valor o mesmo que o de mil ignorantes: “aceitar a vontade da maioria quando esta maioria é composta por pessoas ignorantes pode levar a uma perversão da justiça”, ele escreveu no século XVI [19].

Com a Hascalá, o Iluminismo Judaico através do qual as populações judaicas europeias foram integradas às sociedades em que viviam, as comunidades judaicas perderam a autonomia que desfrutavam até então, e a questão da relação judaica com o poder passou por nova transformação, focada nas relações institucionais com o governo laico e com quem tem a legitimidade de representar a comunidade judaica nestas relações institucionais. 

Para as comunidades judaicas da Diáspora, esta continua sendo a dinâmica de atuação até hoje. Assim como em tempos medievais, permanece não resolvida a questão de quem deve ter voto na formação da maioria comunitária. Aberta também continua a questão do relacionamento com o governo laico e do grau de proximidade desejável nesta relação. Ainda mais relevante, continua indefinida a questão sobre como a tradição e a história judaicas podem ajudar a pautar os processos de definição destes assuntos e como os valores judaicos podem nos ajudar a encaminhar estas discussões sem destruir a comunidade no processo. 

[1] A começar pela divisão dos dois Reinos em tempos bíblicos, passando pelos grupos judaicos na época do Segundo Templo (fariseus, saduceus, essênios, etc.), pela divisão entre judeus rabínicos e caraítas no século IX, entre místicos e adeptos do racionalismo de Maimônides no séc. XII, pelas profundas disputas entre Chassidicos e seus opositores (Mitnagdim) no sec. XVIII, entre sionistas e bundistas na Europa Oriental na primeira metade do séc. XX, entre idichistas e hebraistas em comunidades judaicas brasileiras no mesmo período, apenas para ficar em alguns exemplos.
[2] Mishná Avot 5:17.
[3] Mishná Ievamot 1:4.
[4] Números 16:1-17:14.
[5] Veja, por exemplo, Bartenura nesta passagem.
[6] Salmos 42, 44–49, 84, 85, 87, 88.
[7] Talmud Ierushalmi Shabat 1:4. Veja também Levine, Lee I. “Jerusalem: Portrait of the City in the Second Temple Period (538 BCE - 70 CE)”, Jewish Publication Society: Philadelphia, 2002, p. 308 para uma validação histórica desta passagem. 
[8] Mishná Avot 2:3.
[9] Talmud Bavli Guitin 56a-b.
[10] Gen. 45:4-9 e 50:19-20.
[11] Ex. 1:8-16.
[12] Gen. 18:25.
[13] Ex. 32:9-14.
[14] Termo em hebraico que pode ter conotações positivas e negativas. Traduções aproximadas incluem “insolência”, “cara de pau”, “iniciativa”.
[15] Talmud Bavli Bava Metzia 59b.
[16] Deut. 30:12.
[17] Ex. 23:2.
[18] Conforme citado em Biale, David. “Power and Powerlessness in Jewish History”, Schocken Books: New York,1986, p. 49.
[19] Biale, p. 50.

domingo, 13 de maio de 2018

Dvar Torá: Shabat da Marcha (ARI)


Tudo neste mundo tem o seu tempo;
cada coisa tem a sua ocasião.
Há tempo de nascer e tempo de morrer;
tempo de plantar e tempo de arrancar;
tempo de matar e tempo de curar;
tempo de derrubar e tempo de construir.
Há tempo de ficar triste e tempo de se alegrar;
tempo de chorar e tempo de dançar;
tempo de espalhar pedras e tempo de juntá-las;
tempo de abraçar e tempo de se afastar.
Há tempo de procurar e tempo de perder;
tempo de economizar e tempo de desperdiçar;
tempo de rasgar e tempo de remendar;
tempo de ficar calado e tempo de falar.
Há tempo de amar e tempo de odiar;
tempo de guerra e tempo de paz.
(Kohelet 3:1-8)

As palavras de Kohelet, o livro de Eclesiastes no Tanach, foram incorporadas à filosofia popular. Há algum consolo em saber que, depois da guerra, virá à paz; que depois de coisas serem destruídas, virá a época da reconstrução; que depois de termos economizado por muito tempo, poderemos, finalmente, gastar um pouquinho. Ao mesmo tempo, também nos dá serenidade nos momentos de fartura sabermos que um dia, aquilo que estamos plantando será arrancado; que aquilo que nasce hoje também morrerá. Estas palavras parecem tão óbvias, que acabamos acreditando que a vida se desenrola nestas categorias estanques de alegria e pesar, que se sucedem mas continuam distintas.

No entanto, no mundo em que vivemos, cheio de incertezas e em transição permanente, estas palavras parecem refletir pouco a nossa realidade. Coube ao poeta israelense Iehuda Amihai, a tarefa de estabelecer o contraponto a Kohelet:

Uma pessoa não tem tempo em sua vida
para ter tempo para tudo.
Ela não tem temporadas suficientes para ter
uma temporada para todos os fins.
Kohelet estava errada sobre isso.

Uma pessoa precisa amar e odiar ao mesmo tempo,
rir e chorar com os mesmos olhos,
atirar pedras e recolhê-las com as mesmas mãos,
fazer amor na guerra e guerra no amor.
E odiar e perdoar e lembrar e esquecer,
organizar e confundir, comer e digerir
o que a história
Leva anos e anos para fazer.

Uma pessoa não tem tempo.
Quando ela perde, ela procura; quando ela encontra,
ela esquece; quando ela esquece, ela ama; quando ela ama,
começa a esquecer.

E sua alma é experiente, sua alma
é muito profissional.
Apenas seu corpo permanece para sempre
um amador. Ele tenta e erra
fica confuso, não aprende nada,
bêbado e cego em seus prazeres
e suas dores.

A poesia de Amihai, diferentemente de Eclesiastes, captura outra realidade de nossas vidas, tão cheias de dilemas: quando temos que cuidar das crianças enquanto respondemos no celular o email do trabalho; temos brigas feias com nossos parceiros ao mesmo tempo em que os amamos e desejamos intensamente; somos pessoas inquestionavelmente responsáveis que, uma vez ou outra, agem com pouca reflexão; nos comprometemos com a dimensão judaica das nossas vidas sem abrir mão do nosso profundo comprometimento com o mundo.

Na Marcha Pela Vida endereçamos estas complexidades. Em nossa viagem para a Polônia e para Israel, muitas foram as oportunidades em que sentimos emoções antagônicas e simultâneas, em que conhecemos realidades complexas nas quais as decisões corretas não eram óbvias, em que expressamos compromissos paralelos.

Nos campos de Auschwitz-Birkenau e Majdanek, nos impressionamos com o ar bucólico das fábricas da morte: lugares que assassinaram milhões de seres humanos em ritmo industrial não deveriam poder ser tão calmos, tão cheios de paz; mas eram. Os passarinhos que ciscavam em seus verdes gramados ignoravam o sofrimento escondido naquelas estruturas.  Quem já visitou um campo de concentração sabe como é difícil assimilar esta dualidade entre a calma e o mau absoluto. Conversamos muito à noite com nossos alunos sobre tudo isso, sobre a complexidade das situações às quais eles estavam sendo expostos, dos dilemas que elas continham.

Nossos alunos voltaram da viagem mais maduros, capazes de lidar com os dilemas de suas vidas, ao mesmo tempo em que tentam também compreender os dilemas do outro.

Nossa viagem também teve sua quota de polêmica: ao final da caminhada de 3 km entre Auschwitz e Birkenau realizada anualmente em Iom haShoá, o dia em memória às vítimas do Holocausto, plaquinhas são distribuídas para serem preenchidas e colocadas nos trilhos de trem que levam a Birkenau. Entre as muitas plaquinhas escritas por nosso grupo, uma tinha dizeres lembrando da Marielle, a vereadora do Rio de Janeiro brutalmente assassinada há quase dois meses e afirmando o compromisso em defesa de todas as vidas. Essa foto foi postada nas redes sociais, desacompanhada de maior contexto. Para quem vivencia o dia-a-dia do projeto Marcha Pela Vida, não existia conflito algum naquelas palavras, expressas em um campo de concentração em Iom haShoá. Ao lembrarmos das atrocidades do regime nazista contra os judeus, nos comprometemos com a defesa dos direitos humanos de todos e em qualquer lugar. A frase era o resultado possível de uma perspectiva pedagógica que entende que a educação da Shoá não pode olhar apenas para o passado, precisa também garantir que suas lições sejam efetivamente aprendidas e garantam que o “Nunca Mais” realmente valha. Como Amihai propôs em seu poema, vivemos tudo ao mesmo tempo: afirmávamos a dor pela perda dos seis milhões de judeus, ao mesmo tempo em que nos solidarizávamos, através de um símbolo, com o repúdio à violência humana, sob qualquer forma.

Nos orgulhamos do amadurecimento propiciado pela viagem e amadurecer implica igualmente perceber a realidade sob a perspectiva do outro. Falhamos ao não considerar que a expressão de uma perspectiva desacompanhada de seu contexto poderia causar incômodo e até sofrimento. A imagem exigia que quem a visse completasse o resto da narrativa de um projeto que lida com as complexidades da Shoá com a mesma visão desenvolvida pelo nosso trabalho. Alguns o fizeram e aplaudiram a iniciativa. Muitos outros, no entanto, a interpretaram como um desrespeito à memória do Holocausto ou perceberam na iniciativa um ato de apoio partidário, que desconfiguraria o caráter de Iom haShoá. Queremos reafirmar que a manifestação não teve qualquer caráter político-partidário, muito menos teve o propósito de representar um desrespeito a milhões de vítimas da barbárie e à dor de seus familiares. Ao mesmo tempo em que reafirmamos nosso compromisso com uma educação da Shoá comprometida com a defesa dos direitos humanos de todos e em qualquer lugar, queremos nos desculpar sinceramente àqueles que se sentiram ofendidos, pois jamais houve a intenção de causar qualquer mal aos que, de forma justa, ficaram indignados com o nosso ato.

Nesta viagem à Polônia e a Israel, refletimos e festejamos; nos emocionamos, choramos e pulamos de alegria; visitamos lugares da maior tragédia da história judaica recente  e do renascimento de um Estado judeu. Vivenciando nossa história de perto, exploramos com nossos alunos formas de olhar para o futuro comprometidos com nossos valores e com o nosso passado. Frente a um mundo em permanente transição, nossos alunos se preparam para o processo constante de questionar suas antigas certezas, desafiar seus dogmas sem abrir mão de suas identidades, olhar o mundo com novos olhos, sabendo que têm um porto seguro para retornar.

Shabat Shalom!

domingo, 23 de abril de 2017

Entre o Pacto e a Tribo

(artigo originalmente publicado no blog Pinat Brasil)

Há alguns anos, o representante da diretoria voluntária de uma escola judaica mencionou, em seu discurso durante uma cerimônia de formatura, tudo o que ele tinha aprendido na aulas de Cultura e História Judaicas daquela mesma escola, onde ele também tinha estudado. “Está tudo resumido em uma velha piada”, ele disse. “Tentaram nos matar, não conseguiram, agora vamos festejar”. O discurso continuou, endereçando a necessidade de união da comunidade judaica frente às ameaças externas, o perigo do antissemitismo fora dos muros escolares e a necessidade de garantirmos que as próximas gerações fossem educadas dentro do judaísmo.

Para muita gente que escutava o discurso, sua mensagem era certeira: na sua visão, a principal função da educação judaica é garantir que reconheçamos as ameaças à nossa existência e que aprendamos a nos defender e garantir a perpetuação do povo judeu. Para outro segmento não menos representativo, no entanto, o incômodo era claro. Para eles, a educação judaica deve focar nos valores humanistas da nossa tradição, central entre eles a dignidade de todo e qualquer ser humano.

O rabino Sid Schwarz, escrevendo sobre dinâmicas muito semelhantes que acontecem na comunidade judaica norte-americana, chama o primeiro grupo de “judeus tribais” e o segundo grupo de “judeus do pacto”. “Judeus tribais”, escaldados pela seqüência de perseguições contra os judeus, valorizam a proteção física da comunidade judaica; estão preocupados com o “corpo” do judaísmo. “Judeus do pacto” se ocupam com o papel que valores judaicos terão na forma como a comunidade judaica se conduz e como ela trata a proteção aos oprimidos, sejam eles quem forem; eles se preocupam com a “alma” do judaísmo.

Às vésperas de Pessach, chegamos ao terceiro e último feriado da trilogia da piada mencionada: “tentaram nos matar, não conseguiram, vamos comer!” As histórias de Chanucá, Purim e Pessach, lidas sob esta perspectiva, reforçam dimensões de compreensão da experiência histórica judaica que sempre nos enxergam como vítima. Na capacidade de vítimas, nossa responsabilidade se limita à nossa própria (e legítima!) defesa.

É difícil negar que esta seja uma dimensão plausível para a compreensão das narrativas destas três festas judaicas – ela não é, no entanto, a única narrativa possível, nem mesmo a lente através da qual devamos estabelecer a compreensão fundacional da experiência histórica e do calendário judaicos.

Em cada uma destas três festas, valores centrais que se opõem à narrativa da vitimização perene são, frequente e propositalmente, ignorados. Entre outros assuntos possíveis, em Chanucá, deixam de discutir a relação entre o poder hegemônico e as minorias culturais; em Purim não falam dos riscos do abuso de autoridade; em Pessach, deixam de lado a conversa sobre a possibilidade de resistirmos aos faraós do nosso tempo – abordagens que falam da responsabilidade judaica para com o mundo ao mesmo tempo em que discutem as ocasiões em que fomos nós os oprimidos.

O que a visão que privilegia a auto-preservação judaica sobre qualquer outro valor omite é que o paradigma judaico fundamental para a compreensão da nossa própria opressão estabelece a empatia para com os oprimidos em toda parte como a principal lição a ser aprendida destes episódios. כִּי־גֵרִים הֱיִיתֶם בְּאֶרֶץ מִצְרָיִם (“por que vocês foram estrangeiros na terra do Egito”) é uma das poucas frases repetidas múltiplas vezes na Torá, sempre seguindo instruções para que protejamos os estrangeiros na nossa terra.  Na perspectiva da Torá, a experiência judaica como vítimas não nos dá o direito de nos preocuparmos apenas com a nossa própria segurança; ao contrário, ela determina que devemos proteger aqueles que hoje estejam em situação de vulnerabilidade.

A triste verdade, no entanto, é que a fala do diretor voluntário na formatura da escola reflete o pensamento de grande parte da liderança institucional judaica, que não apenas educa dentro de parâmetros unicamente etnocêntricos, mas também deslegitima qualquer visão de mundo alternativa. A falha em reconhecer estas múltiplas perspectivas possíveis de engajamento com a nossa tradição tem feito com que um segmento expressivo da comunidade judaica (especialmente, mas não apenas, a sua juventude) não se sinta representado pelas instituições comunitárias que, por sua vez, não se sentem comprometidas a considerar sua opinião na formulação de políticas e programas. Um ciclo vicioso que vem se desenrolando há muito tempo e que  agora, ao que parece, chega ao seu ápice sem que as questões de fundo sejam, efetivamente, discutidas. “Judeus do pacto” e “judeus da tribo” não se reconhecem mais como pertencendo a uma comunidade na qual compartilhem valores ou uma visão de futuro que tenha espaço para ambos.

Passados os dois sedarim, entraremos no Omer, período de 49 dias que serve de ponte entre Pessach (quando nossos corpos deixaram de estar sob permanente ameaça) e Shavuot (quando recebemos a Torá e, com elas, os valores que devem guiar nossas ações). Tradicionalmente, estes 49 dias são de introspecção, apresentando até mesmo sinais de luto. Podem ser uma ótima oportunidade para esfriar os ânimos e se perguntar como fazer para que a defesa dos corpos dos judeus e a proteção da alma judaica não sejam projetos mutuamente exclusivos!

domingo, 9 de abril de 2017

Dvar-Torá: Shabat haGadol 5777 (ARI, Rio de Janeiro)

Há algumas semanas, representantes de todas as escolas judaicas do Brasil se reuniram em São Paulo para seu Terceiro Encontro Nacional, organizado pela Conib. O tema: pontos de vista. Na primeira sessão, a professora Diana Vidal, falou sobre “História e a construção de suas versões” e debateu como sempre existem inúmeras perspectivas para qualquer evento histórico. Ensinar história, portanto, sempre envolve a escolha de quais perspectivas iremos privilegiar.

Hoje é Shabat haGadol, o “grande shabat” que antecede Pessach.

Eu cresci em uma casa totalmente laica em São Paulo, mas sempre estudei em escolas judaicas, do jardim de infância ao colegial. A visão de judaísmo que me foi ensinada naqueles tempos era monocromática e não dava espaço à pluralidade de pontos de vista ou de práticas religiosas. Nas escolas em que eu estudei – que não eram religiosas – uma única perspectiva religiosa judaica era reconhecida como autêntica e, dada essa realidade, quando eu terminei o colegial e entrei na faculdade, queria a maior distância possível daquele judaísmo que tinham me ensinado e que era o único que eu conhecia…

Por ironia, depois de formado fui estudar em Israel e foi lá que eu comecei a descobrir que o judaísmo não tinha apenas um ponto de vista, havia grande diversidade interna. Me tornei membro ativo do Beit Daniel, a sinagoga reformista de Tel Aviv, e é graças a esta experiência que meu engajamento com o judaísmo tomou um novo rumo que me trouxe até aqui. Em Beit Daniel, o costume no Shabat haGadol era convidar todas as pessoas que falassem outros idiomas para que lessem parte do serviço em línguas além do hebraico. Era um serviço realmente internacional, reflexo de uma percepção de judaísmo multicultural, diverso, inclusivo e pluralista.

A mesma percepção que a Escola Eliezer Max vem perseguindo na educação judaica que oferece. Nos últimos dez dias, celebramos nove sedarim de Pessach com nossos alunos e suas famílias - explorando exatamente estas perspectivas de diversidade cultural. Do Infantil ao Ensino Médio, conversamos sobre multi-culturalismo, sobre indígenas e sobre judeus etíopes, sobre a mistura cultural da Tropicália e sua relação com uma tradição judaica que se renova continuamente. Buscamos relevância nas velhas tradições e mensagens universais de liberdade e respeito através das nossas práticas particulares.

Pessach tem, na tradição judaica, um papel educativo central. Somos instruídos 4 vezes na Torá a contarmos sua história a nossos filhos. Mas, lembrando da fala da Professora Diana Vidal, sob qual perspectiva contaremos esta história?

Dois dos pensadores judeus contemporâneos que mais têm me impactado, o rabino ortodoxo Donniel Hartman e a rabina conservadora Sharon Brous, escreveram nos últimos anos que não é suficiente contar a história da Saída do Egito como se existisse uma única narrativa: é fundamental considerar a qual mensagem estamos dando voz.

Uma perspectiva possível da história que contamos no seder enxerga a opressão que os hebreus sofreram no Egito como representante de dinâmicas sociais que se repetiram inúmeras vezes na história. Nossa história seria uma seqüência de perseguições e opressões: sob os egípcios, os assírios, os babilônios, os gregos, os romanos, as cruzadas, a Inquisição, os pogroms, a Shoá, o antissionismo e o antissemitismo moderno. Eventos que, isolados do resto da nossa experiência histórica, constroem uma percepção da história judaica que incluem apenas situações nas quais fomos vítimas. Neste paradigma, nossa maior responsabilidade é com nossa própria proteção e com a garantia que a comunidade judaica não passe por experiências similares no futuro.

Um outra perspectiva possível narra a história do Seder como a de uma obrigação judaica de lutar contra qualquer opressão. O evento fundador da experiência judaica, a servidão no Egito, faz com que nos identifiquemos com os segmentos mais vulneráveis das sociedades em que vivemos, sejam eles judeus ou não. No atual contexto histórico, em que as comunidades judaicas são bem integradas na maioria dos países em que vivemos, esta luta foca, primordialmente, em direitos de outros grupos.

Estas duas perspectivas, a que enxerga a Libertação do Egito como um evento relacionado à dinâmica histórica dos judeus e aquela que a enxerga como uma luta permanente contra a opressão, recebem voz no texto da hagadá. VeHi sheamda é reflexo da primeira perspectiva, enquanto Halachmá aniá é reflexo da segunda. Infelizmente, no entanto, não são raras as instâncias em que apenas uma delas é valorizada na história que é contada no seder.

Que história, por exemplo, contamos sobre a matzá? Ela representa tanto a fuga dos hebreus com pressa (uma perspectiva particular), quanto o pão da pobreza (uma perspectiva universal), mas eu conheço poucas pessoas que, quando questionadas, se lembram das duas explicações. 

O mal causado por um judaísmo monocromático, sem espaço para debate interno e que vive em absolutos, é sentido na forma como nos relacionamos com a tradição, mas também como nos relacionamos com outros judeus. Na acidez das redes sociais, cada vez mais escutamos ataques que negam a legitimidade do judaísmo do outro; as pessoas se orgulham dos debates talmúdicos, mas praticam um judaísmo sem espaço para divergências ou debates.

Como educadores, procuramos fugir destas armadilhas no Eliezer Max e educar nossos alunos no equilíbrio entre universalismo e particularismo; responsabilidade para com o outro e nossa própria defesa. Esperamos que eles sejam conhecedores dos textos, dos rituais e da história judaica, mas que também percebam nosso comprometimento com os direitos humanos e, em especial, com os segmentos mais vulneráveis da nossa sociedade. Buscamos a integração dos aspectos mais generosos das nossas tradições judaica e humanista, sem abrir mão de nenhuma delas.

Nessa segunda-feira, temos o primeiro seder de Pessach. Qual história você vai contar à sua mesa?


Shabat Shalom e Chag Sameach!

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Dvar-Torá: Rosh haShaná 5777 (Coletivo Kol Chadash na Sinagoga do Cambuci, São Paulo)


Esta semana eu postei no facebook um artigo em que a autora explicava por que ela sairia do salão da sinagoga quando o piyut - poema litúrgico - uNetanê Tokef fosse cantado. Para quem nunca parou para ler sua tradução, o poema descreve o cenário de um julgamento, considera todas as nossas ações e decide como será nosso próximo ano. Quem viverá e quem não; quem encontrará a morte tranquilamente e quem só chegará lá depois de muito sofrimento. A metáfora sugere que nossas ações têm impacto no mundo e a qualidade da nossa vida é determinada, em parte, pelos comportamentos que adotamos.

Para a autora, no entanto, era difícil fugir do sentido literal do poema. Seu pai se suicidou depois de lutar com a depressão por vários meses, acreditando que o mundo estaria melhor sem ele. A forma como ele se matou e sua luta com a depressão aparecem literalmente nas linhas do uNetanê Tokef, como se fossem um castigo Divino.

No artigo ela diz:
 
Eu entendo o valor metafórico que alguns vêem neste poema. Mas, como uma sobrevivente de trauma, eu me tornei familiar, de uma forma pessoal e dolorosa, com termos que me fazem reviver a experiência [chamados “disparadores”]. E quando eu olho para as palavras deste poema, eu me impressiono não só pelos meus disparadores, mas pelo potencial para outras pessoas que foram tragicamente atingidas por incêndios, inundações ou agressões violentas.
Talvez, além de pedir a seus congregantes que tenham uma leitura mais profunda e leiam as palavras além do seu sentido literal, seja também chegada a hora para aqueles que lideram nossos serviços religiosos de reconhecer que as palavras por si só podem ter, para alguns, o poder de desencadear memórias e pensamentos traumáticos.[1]
Eu fico pensando nestas palavras, neste 2 de outubro de 2016, 1 de Tishrei de 5777. Talvez, hoje soframos todos de tensão do stress pós-traumático - pelo menos aqueles que lembram o que esta data significa. Aqueles que marcam o 2 de outubro como o dia em que 111 pessoas foram chacinadas nesta cidade há 24 anos. Talvez todos nós devêssemos sair do salão da sinagoga amanhã quando o uNetanê Tokef for lido. Hoje, no entanto, eu proponho que o enfrentemos uma vez mais…
וּנְתַנֶּה תֹּֽקֶף קְדֻשַּׁת הַיּוֹם
Declaramos a poderosa santidade deste dia – profundo e temível. Hoje, Tua soberania é elevada, Teu trono – de onde Você governa com verdade – é estabelecido com amor. Verdadeiramente, Você é o Juiz e o Procurador, Perito e Testemunha, Você registra e sela, conta e mede. Você lembra tudo que é esquecido e abrirá o Livro das Memórias, que fala por si próprio, pois todos nós o assinamos com nossas mãos.


Há 24 anos, 341 policiais militares sob o comando do Coronel Ubiratan Rodrigues, entraram no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo para conter uma rebelião de presos[2]. Os sobreviventes da chacina dizem que brigas entre presos eram comuns no presídio, e que tudo voltaria à calma depois de algum tempo - não fosse a entrada do Batalhão de Choque da PM naquele 2 de outubro. O governador era Luiz Antônio Fleury Filho, ex-policial militar e ex-secretário de Segurança Pública do Governo Quercia. 

Às vezes, a poesia nos ajuda a entender aquilo para o qual não há compreensão. Nas palavras dos Paralamas:
Mas naquele dia até Deus se escondeu
Quando se ouviram os gritos de socorro
A voz da razão sumiu
Quando a polícia subiu o morro[3]

Há 24 anos, a Polícia assumiu o papel de Deus e serviu como juiz, procurador, perito e testemunha. Assumiu também um papel mais duro e executou a sentença de morte que ela mesma havia decretado sobre 111 seres humanos. 89 deles ainda não tinham sido julgados pelos tribunais da terra.

Era véspera das eleições municipais, que seria também a data da posse de Itamar Franco após o impeachment de Fernando Collor de Mello. Por um tempo, não tivemos a dimensão real do que tinha acontecido. A capa da Folha do dia seguinte destacava as pesquisas eleitorais que apontavam a vitória de Paulo Maluf e a posse de Itamar Franco. Uma pequena nota na parte de baixo da página dizia: “Rebelião em presídio faz pelo menos oito mortos”[4]. Foi só no dia seguinte, depois das eleições terem passado, que soubemos o número oficial da chacina. Na manchete da Folha: “Chacina mata 111 presos em São Paulo.”[5] 
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos[6]

וּבְשׁוֹפָר גָדוֹל יִתָּקַע
E um grande shofar será soado e, mesmo assim, será possível escutar um pequeno suspiro. Os anjos estão agitados, tomados por medo e tremor. Eles gritam: “Este é o Dia do Julgamento visitando os exércitos divinos em julgamento, ninguém é inocente frente a Ti.” E todos aqueles que vieram ao mundo passam na Tua frente como ovelhas. Da mesma forma que o olhar de um pastor de ovelhas busca seu rebanho quando cada ovelha passa pelo seu cajado, Você revisa, reconta e avalia a vida de cada ser vivo e Você determina o término da vida de cada criatura e escreve o veredito dele.

Em sua coluna na Folha de ontem, o jornalista Oscar Vilhena Vieira escreveu:

Desafortunadamente tive a oportunidade de acompanhar profissionalmente os desdobramentos do massacre, ingressando no pavilhão 9 da Casa de Detenção pouco tempo depois do massacre. Duas imagens ficaram impregnadas em minha memória: a água vermelha empurrada pelo rodo dos presos que faziam a faxina, e as marcas de balas encravadas nas paredes das celas, sempre à meia altura, deixando claro que as vítimas foram eliminadas de cócoras, em posição de rendição. Indelével, ainda, o cheiro de morte.[7]

Depois da tempestade, o silêncio em que podemos escutar até um pequeno suspiro, enquanto os detentos lavavam o sangue dos seus colegas. Quem viu as fotos da chacina entende o descaso absoluto com a vida humana e com a perda dela que foi demonstrado naquele dia.

Há alguns anos, eu fui a um debate na sede do Habonim-Dror do Rio de Janeiro. Falavam de ocupações: Michel Gherman, amigo de muitos aqui, falava da Ocupação dos territórios palestinos por Israel e Marcelo Freixo, cujo nome eu nunca tinha ouvido, falava sobre a ocupação das favelas do Rio pela polícia e pelo exército. Em algum momento, Freixo fez uma afirmação que, apesar de óbvia, nunca tinha me ocorrido: “quando o pessoal ataca quem defende os direitos humanos dos presidiários, o que eles estão atacando não é a perspectiva de que presidiário tenha direitos; o que eles contestam é a perspectiva de que presidiários sejam seres humanos.”

Tem gente que acha que preso é gado. Nas palavras de Vandré, “porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente.”[8]

A tradição judaica é muito clara neste aspecto. Somos TODOS criados à imagem de Deus, o que garante a todos nós o direito à dignidade inalienável da condição humana. Todos nós, sem exceção, o tempo todo. Meu professor, o rabino Art Green, falando sobre o seu professor, o Rabino Abraham Joshua Heschel, escreveu:
“Por que somos proibidos de fazer imagens de Deus?” Heschel perguntou. Não é porque Deus esteja além de todas as imagens, de forma que nenhuma imagem poderia representar Deus. “Se este fosse o caso”, ele argumentava, “imagens seriam simplesmente inofensivas”. “Deus tem uma imagem,” ele insistia, “e esta imagem é você.” Você não pode fazer uma imagem de Deus por que você é a imagem de Deus.[9]

Segundo a Mishná, a primeira obra legal escrita pelo movimento rabínico ao redor do ano 220 E.C., até o condenado à morte precisa ser tratado com dignidade e seu corpo precisa ser enterrado com a maior velocidade possível. Mesmo o condenado à morte não deixava de ser criado à imagem de Deus e, portanto, até na sua punição merecia ser tratado com dignidade.

Um dos meus poemas favoritos da poetisa israelense Zelda desenvolve uma ideia rabínica de que recebemos e conquistamos diferentes nomes ao longo das nossas vidas. Diz Zelda:

לְכָל אִישׁ יֵשׁ שֵׁם
 שֶׁנָּתַן לוֹ אֱלֹהִים
וְנָתְנוּ לוֹ אָבִיו וְאִמּוֹ
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado por Deus
e que lhe foi dado por seu pai e sua mãe
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pela sua estatura e pelo seu sorriso
e que lhe foi dado por o que ela veste
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pelas montanhas
e que lhe foi dado pelos seus muros
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pelos signos
e que lhe foi dado pelos seus vizinhos
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pelas suas falhas
e que lhe foi dado pelos seus desejos
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado por aqueles que a odeiam
e que lhe foi dado por aquele que ela ama
Toda pessoa tem um nome
que lhe foi dado pelas suas celebrações
e que lhe foi dado pelo seu trabalho
Toda pessoas tem um nome
que lhe foi dado pelas estações do ano
e que lhe foi dado pela sua cegueira
Toda pessoa tem um nome
que lhe deu o mar
e que lhe deu
a sua morte.

Em respeito à vida dos 111 seres humanos que morreram há exatos 24 anos, eu passarei à leitura dos seus nomes. Por favor, levantem-se.
1) Adalberto Oliveira dos Santos
2) Adão Luiz Ferreira de Aquino
3) Adelson Pereira de Araujo
4) Alex Rogério de Araujo
5) Alexandre Nunes Machado da Silva
6) Almir Jean Soares
7) Antonio Alves dos Santos
8) Antonio da Silva Souza
9) Antonio Luiz Pereira
10) Antonio Quirino da Silva
11) Carlos Almirante Borges da Silva
12) Carlos Antonio Silvano Santos
13) Carlos Cesar de Souza
14) Claudemir Marques
15) Claudio do Nascimento da Silva
16) Claudio José de Carvalho
17) Cosmo Alberto dos Santos
18) Daniel Roque Pires
19) Dimas Geraldo dos Santos
20) Douglas Edson de Brito
21) Edivaldo Joaquim de Almeida
22) Elias Oliveira Costa
23) Elias Palmiciano
24) Emerson Marcelo de Pontes
25) Erivaldo da Silva Ribeiro
26) Estefano Mard da Silva Prudente
27) Fabio Rogério dos Santos
28) Francisco Antonio dos Santos
29) Francisco Ferreira dos Santos
30) Francisco Rodrigues
31) Genivaldo Araujo dos Santos
32) Geraldo Martins Pereira
33) Geraldo Messias da Silva
34) Grimario Valério de Albuquerque
35) Jarbas da Silveira Rosa
36) Jesuino Campos
37) João Carlos Rodrigues Vasques
38) João Gonçalves da Silva
39) Jodilson Ferreira dos Santos
40) Jorge Sakai
41) Josanias Ferreira de Lima
42) José Alberto Gomes Pessoa
43) José Bento da Silva
44) José Carlos Clementino da Silva
45) José Carlos da Silva
46) José Carlos dos Santos
47) José Carlos Inojosa
48) José Cícero Angelo dos Santos
49) José Cícero da Silva
50) José Domingues Duarte
51) José Elias Miranda da Silva
52) José Jaime Costa e Silva
53) José Jorge Vicente
54) José Marcolino Monteiro
55) José Martins Vieira Rodrigues
56) José Ocelio Alves Rodrigues
57) José Pereira da Silva
58) José Ronaldo Vilela da Silva
59) Josue Pedroso de Andrade
60) Jovemar Paulo Alves Ribeiro
61) Juares dos Santos
62) Luiz Cesar Leite
63) Luiz Claudio do Carmo
64) Luiz Enrique Martin
65) Luiz Granja da Silva Neto
66) Mamed da Silva
67) Marcelo Couto
68) Marcelo Ramos
69) Marco Antonio Avelino Ramos
70) Marco Antonio Soares
71) Marcos Rodrigues Melo
72) Marcos Sérgio Lino de Souza
73) Mario Felipe dos Santos
74) Mario Gonçalves da Silva
75) Mauricio Calio
76) Mauro Batista Silva
77) Nivaldo Aparecido Marques de Souza
78) Nivaldo Barreto Pinto
79) Nivaldo de Jesus Santos
80) Ocenir Paulo de Lima
81) Olivio Antonio Luiz Filho
82) Orlando Alves Rodrigues
83) Osvaldino Moreira Flores
84) Paulo Antonio Ramos
85) Paulo Cesar Moreira
86) Paulo Martins Silva
87) Paulo Reis Antunes
88) Paulo Roberto da Luz
89) Paulo Roberto Rodrigues de Oliveira
90) Paulo Rogério Luiz de Oliveira
91) Reginaldo Ferreira Martins
92) Reginaldo Judici da Silva
93) Roberio Azevedo da Silva
94) Roberto Alves Vieira
95) Roberto Aparecido Nogueira
96) Roberto Azevedo Silva
97) Roberto Rodrigues Teodoro
98) Rogério Piassa
99) Rogério Presaniuk
100) Ronaldo Aparecido Gasparinio
101) Samuel Teixeira de Queiroz
102) Sandoval Batista da Silva
103) Sandro Rogério Bispo
104) Sérgio Angelo Bonane
105) Tenilson Souza
106) Valdemir Bernardo da Silva
107) Valdemir Pereira da Silva
108) Valmir Marques dos Santos
109) Valter Gonçalves Gaetano
110) Vanildo Luiz
111) Vivaldo Virculino dos Santos[10]
que suas memórias sejam abençoadas
Podem se sentar.

Um midrash conta que, em resposta à destruição de Jerusalém, Deus pergunta aos seus anjos como um rei humano responderia se tivesse perdido um filho. Os anjos respondem: "um rei humano… 
penduraria sacos na sua porta,
apagarias as luzes,
viraria o sofá,
andaria sem sapatos,
rasgaria suas roupas,
sentaria em silêncio e choraria."
"Eu vou fazer o mesmo", responde Deus, "Eu vou pendurar sacos na porta, apagar as luzes, virar o sofá, andar sem sapatos, rasgar minhas roupas, sentar em silêncio e chorar." [11]

Eu não tenho dúvida alguma de que Deus está chorando há 24 anos pela morte destes 111  filhos. Cento e onze filhos cujo direito à justiça, ainda que póstuma, foi mais uma vez negada esta semana.

בְּרֹאשׁ הַשָּׁנָה יִכָּתֵבוּן, וּבְיוֹם צוֹם כִּפּוּר יֵחָתֵמוּן
Em Rosh Hashaná está escrito, e no jejum de Yom Kipur é selado!
Quantos vão passar, e quantas vão nascer;
quem vai viver e quem vai morrer;
que terá uma vida longa e quem chegará a um fim prematuro;
quem morrerá pelo fogo e quem pela água;
quem pela espada e quem por animais;
quem pela fome e quem pela sede;
quem pelo terremoto e quem pela peste;
quem será estrangulado e quem será apedrejado;
que estará em paz e quem será perturbado;
quem estará sereno e quem estará agitado;
quem estará tranquilo e que estará atormentado;
quem empobrecerá e quem ficará rico;
quem cairá, quem se levantará.

Há eventos que, de tão brutais, deveriam levar a mudanças de comportamento. Depois da Shoá, dos 6 milhões de nossos irmãos brutalmente assassinados só por que eram nossos irmãos, achávamos que o mundo acordaria e que o antissemitismo não brotaria mais em qualquer lugar. É com horror que vemos hoje o antissemitismo re-aparecendo em tantas partes do mundo. 

Depois do Carandirú, depois de 111 seres humanos brutalmente assassinados, esperávamos que o Brasil acordasse e mudasse no tratamento que dá aos nossos irmãos na cadeia. É com horror que percebemos que este não é o caso - que vinte e quatro anos depois, nenhum responsável pela chacina do Carandirú tenha sido preso e que o julgamento tenha acabado de voltar à estaca zero;  que pesquisa realizada em 2015 tenha constatado que 50% dos residentes nas grandes cidades brasileiras concordam com a frase “Bandido bom é Bandido Morto”.[12]

O relator do processo que levou ao cancelamento do julgamento dos 74 PMs esta semana, desembargador Ivan Sartori, afirmou que “não houve realmente um massacre. O que houve foi estrito cumprimento do dever legal, obediência hierárquica e legítima defesa, inclusive.” As imagens e os depoimentos dos sobreviventes do massacre deixam claro que os presos foram fuzilados depois de rendidos; os fatos dos soldados estarem fortemente armados e terem saído todos com vida deveriam ser suficientes para desqualificar a tese de legítima defesa; as lições de Hanna Arendt depois do julgamento de Eichman deveriam ter nos ensinado o que acontece quando há o "estrito cumprimento do dever legal" e "obediência hierárquica" sem questionar a moralidade das ordens dadas. Do mesmo Freixo, eu ouvi em outra oportunidade que o país precisa “democratizar a polícia”: “a gente ainda tem uma polícia oriunda da ditadura, com uma concepção de guerra, com uma concepção de eliminar o inimigo”, ele disse.[13]

A decisão do Tribunal de Justiça deveria ter-nos levado às ruas, exigindo um país diferente - sem nos importarmos com o machzor que precisava ficar pronto, com o trabalho que a chefe esperava ver na mesa dela naquela manhã ou com a prova do dia seguinte. Se em Rosh haShaná, acreditamos quando cantamos uNetanê Tokef e perguntamos quem será inscrito no livro da vida, minamos nossas chances nesta semana que passou. Nesta quarta feira, todos falhamos e deixamos um pedacinho da nossa humanidade morrer… 

Um midrash conta que certa vez Rabi Yehoshua sonhou ter encontrado o profeta Eliahu. “Quando o Messias virá?” ele perguntou ao profeta. “Quando seremos redimidos desta opressão?” O profeta respondeu: “Vá e pergunte ao Messias!”. “E onde posso encontrá-lo?”, perguntou Rabi Yehoshua. “No portão de Roma, onde ele se senta junto aos mendigos da cidade”. Nestes dias de Iamim Noraim, Rosh haShaná e Yom Kipur, em que tentamos re-encontrar nosso eu mais profundo e perdido, é bom lembrar que às vezes, é exatamente aquele que mais desprezamos - o mendigo, a prostituta, o presidiário - que nos dá a oportunidade de re-encontrar nossas humanidade.
 
A maioria de nós conhece o verso  "וְאָהַבְתָּ לְרֵעֲךָ כָּמוֹךָ אֲנִי ה׳",  “Ama um outro ser humano da mesma forma como você ama a si mesmo; Eu sou Adonai.”[14] Ainda que não seja explícito, parece que a obrigação de amar os outros seres humanos como a nós mesmos decorre do fato de que somos todos criados à imagem de Deus. Dois versos antes deste, encontramos a mesma lógica aplicada a outra instrução: "לֹא תַעֲמֹד עַל־דַּם רֵעֶךָ אֲנִי ה׳",  “Não fique assistindo enquanto derramam o sangue de outro ser humano; Eu sou Adonai”.[15]  A implicação sobre o que a tradição judaica diz que devemos fazer nesta situação é óbvia.

O comentário do meu professor sobre Heschel e a criação do ser humano à imagem de Deus continuava:
A única forma na qual você pode fazer uma imagem de Deus é a forma de toda a sua vida, e é isto precisamente que você é comandado a fazer. Tudo o que você faz, tudo o que você diz, cada momento e a forma como você o usa são todas partes da forma como você constrói a imagem de Deus.[16]

Construímos a imagem de Deus através das nossas ações! Hoje, infelizmente, a imagem que nossas ações constroem é de um Deus sentado no chão, chorando pelos seus filhos assassinados. Que imagem de Deus as ações que tomaremos a partir deste momento construirão?

Durante os últimos 70 anos, temos nos perguntado como o mundo pôde ter se calado. Agora é a hora de perguntar a nós mesmos: vamos nos calar?

Shaná Tová! 
Que neste ano...

consigamos encontrar a dignidade humana em toda pessoa;

que nossa busca por justiça inclua também a defesa daqueles a quem desprezamos;

que nossas ações construam a imagem do Deus em que dizemos acreditar.

Ken Yehi Ratzon (que assim seja a Vontade)




[3] https://www.letras.mus.br/os-paralamas-do-sucesso/47927/
[4] http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1992/10/03/2/
[5] http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1992/10/04/2/
[6] https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44730/
[9] Green, Art. Ehyeh: A Kabbalah for Tomorrow, p. 121 (tradução minha)
[11]  Eika Rabá 1:1
[14] Lev. 19:18
[15] Lev. 19:16
[16] Green, Art. Ehyeh: A Kabbalah for Tomorrow, p. 121 (tradução minha)