sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Dvar Torá: O incômodo e a necessidade de falarmos sobre o antissemitismo (CIP)


A gente pode identificar o aburguesamento de um rabino pela forma como ele começa as prédicas… logo que eu comecei a trabalhar na CIP, fiz uma prédica[1] na qual eu abria falando de como eu tinha aproveitado o feriado de primeiro de maio para organizar os livros. Desta vez, eu aproveitei o dia de ontem, quando eu estava de férias, e fui comprar roupa! Como já faz tempo que os quilinhos a mais que eu ganhei durante a pandemia — e não foram tão  poucos quilinhos assim — vêm cobrando a conta na cintura das minhas calças, queria fazer uma renovação completa do guarda-roupa e fui arriscar a sorte no Outlet, que alguns dizem que valem a pena e outros falam que é pura enganação.

Entrei na primeira loja e me assustei com os preços. Entrei na segunda, pedi para ver calças, mas não cheguei a provar, de tão caras que eram. Na terceira loja que eu entrei, tinha uma promoção, supreendentemente não anunciada na vitrine, que dava 50% de desconto para quem levasse 4 peças ou mais. Incrédulo, eu perguntei várias vezes se era isso mesmo antes de começar a experimentar váaarias calças. No, final peguei minhas NOVE peças de roupa e fui para o caixa, ainda com medo de que, no final das contas, teria alguma pegadinha e o desconto seria menor que o prometido. Lá, eu brinquei com a vendedora: “nove peças deveriam me dar noventa porcento de desconto, você não acha?!”

A vendedora, que até aquele momento tinha sido SUPER simpática me olhou super séria e perguntou: “de onde você é?!”. “Eu sou brasileiro”, eu respondi, sabendo que minha quipá era o real motivo da pergunta dela. “Eu sou brasileiro, nasci aqui”, eu insisti. E ela comentou “pechinchando assim, acho que você é de um daqueles países em que as pessoas sabem negociar.” E, pronto, com a quipá na cabeça e as brincadeiras com a vendedora, eu tinha reforçado os estereótipos que ela tinha com relação aos judeus.

Eu ando sempre de quipá e raras são as situações em que sinto algum tipo de incômodo por causa disso. Todos nós navegamos em um universo de pertencimentos múltiplos — pensa só no número de grupos que você tem no WhatsApp ou no facebook. Somos simultaneamente condôminos no edifício em que moramos, torcedores de um time de futebol, simpatizantes de causas políticas, cidadãos de um país, detentores de uma identidade nacional religiosa.

Talvez o dilema de como navegamos entre múltiplas identidades tenha começado, na perspectiva judaica, com Iossêf, o jovem hebreu que cresceu na hierarquia egípcia graças à sua capacidade de decifrar os sonhos do faraó. Ele tinha se tornado tão semelhante aos egípcios com quem vivia há tanto tempo que seus irmãos não conseguiram reconhecê-lo — eles falavam em hebraico na sua frente, sem se darem conta de que ele conseguia entendê-los. Na parashá desta semana, finalmente, Iossêf revela aos seus irmãos quem realmente é e reconhece que navega entre duas identidades: o poderoso vice-rei, parte da cultura egípcia; o irmão vendido como escravo, parte dos filhos de Israel.

O desafio não é quando reconhecemos que temos todos diversas e distintas identidades, que se complementam e vivem em tensão umas com as outras, mas quando uma parte da nossa identidade é usada como evidência de que não podemos ser autênticos em outra parte. Quando a vendedora, tendo identificado a quipá como símbolo de alguma religião que ela talvez não soubesse nomear, assumiu que eu não podia ser brasileiro, ela — de forma inocente — usou uma parte de quem eu sou, judeu, para negar a viabilidade da outra parte, brasileiro.

Começamos a semana com um episódio parecido, ainda que bem mais sério. Um economista, que verdade seja dita, foi o melhor professor que eu tive na faculdade, buscou desqualificar outro economista, Ilan Goldfejn, que acaba de ser eleito para a presidência do BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento[2]. Seu sobrenome, claramente judaico, foi qualificado de “impronunciável”;  sua longa carreira, foi desconsiderada porque ele seria “ligado (…) à comunidade judaica”.  Nas palavras cheias de preconceito de seus acusados: “Ele, na verdade, é judeu… brasileiro, nasceu em Haifa, em Israel e a comunidade judaica tem muita presença no Tesouro Americano, no Fundo Monetário, nos organismos internacionais, não só nos bancos privados. Então, ele de brasileiro, só tem o passaporte.” 

A fala não é só cheia de preconceitos e ecoa as piores acusações antissemitas de manipulação e de conspiração judaica como também lhe falta lógica. De que forma a vinculação de alguém com a comunidade judaica caracterizaria falta de vínculo com o Brasil? Parece a mesma lógica aplicada pela vendedora que perguntou de onde eu era.

Luiz Nassif, o jornalista que o entrevistava, em artigo escrito após a polêmica resultante da entrevista, reforçou a perspectiva reducionista e preconceituosa e reconheceu que elas circulam livremente nos bastidores: “Em uma conversa fechada, entre economistas e jornalistas, a referência à comunidade financeira judia seria normal, e não seria interpretada como anti-semitismo (sic).”[3]Nassif ainda atacou o Instituto Brasil-Israel e o grupo Judeus pela Democracia por terem condenado, em suas mídias sociais, um economista de esquerda, dando argumentos para críticas bolsonaristas.

Eu confesso que eu me sinto frequentemente desconfortável para falar sobre antissemitismo. Neste desconforto, busco a companhia do rabino Donniel Hartman, presidente do Instituto Hartman, fundado por seu pai e que se tornou, ao longo das últimas décadas, na principal referência em educação rabínica continuada, um centro de produção de conhecimento judaico e de reflexão sobre suas conexões com a realidade em que vivemos. Em um artigo publicado há quase exatamente dois anos, ele explicou de onde vem sua resistência a falar sobre antissemitismo[4]. Suas razões são múltiplas, mas elas podem ser reunidas em dois grupos: (1) a conversa sobre antissemitismo deslegitima a viabilidade da vida judaica na Diáspora, como  se Aushwitz se tornasse o único fim possível para toda e qualquer comunidade judaica fora de Israel; e (2) ao focar na pura e simples sobrevivência judaica, perdemos o foco da criatividade, do comprometimento, dos valores que uma vivência judaica intensa pode trazer às sociedades em que vivemos. Ecoando palavras que tinham sido formuladas por seu pai, o rabino David Hartman[5], é como se tivéssemos que escolher entre a destruição de Aushwitz e mandato que recebemos no monte Sinai. 

Depois de listar os motivos pelos quais ele odeia falar sobre antissemitismo, Donniel Hartman acrescenta, “mas eu odeio o antissemitismo ainda mais.” Se torna, portanto, importante que falemos desse assunto, apesar das nossas resistências, e de como podemos combatê-lo. Para isso, ele elenca três recomendações:

1.      Não usar incidentes antissemitas para fortalecer nossas próprias perspectivas ideológicas. Há antissemitismo na esquerda, na direita e também no centro. Enfrentamos antissemitismo na Diáspora e em Israel. Quando incidentes antissemitas ocorrem, devemos prestar nossas solidariedade e apoio a quem foi atacado e condenar o ataque, independentemente de pertencermos ou não ao mesmo bloco ideológico. Hartman escreveu: “Quando politizamos o antissemitismo, minamos a condenação universal que os ataques antissemitas merecem e exigem. Mais significativamente, criamos divisões profundas dentro de nossa própria comunidade e impedimos de nos unirmos para combater as ameaças que enfrentamos. É fundamental que nosso discurso adote uma política de tolerância zero – não apenas contra o próprio antissemitismo, mas contra os judeus e as instituições judaicas que permitem que ele seja politizado.”

2.      Precisamos reconhecer que o antissemitismo é um problema sério, que cresce no mundo e que, ainda assim, não é comparável ao que aconteceu na Alemanha Nazista. À exceção de alguns poucos países, o antissemitismo não é política de estado. Mesmo com o aumento das células neonazistas no Brasil, as autoridades continuam, na sua imensa maioria, parceiras na luta contra o ódio.

3.      É importante destacar que o antissemitismo não é o único, nem o maior problema de intolerância ou de ódio que enfrentamos hoje em dia. Precisamos atuar em parcerias com a sociedade mais ampla, reconhecendo que o ódio e o preconceito são nosso inimigo comum. Se nos calamos quando indígenas, negros, mulheres, membros da comunidade LGBTQIA+ ou de outros grupos religiosos são atacados, não temos o direito de nos indignarmos quando estas comunidades se silenciam frente a ataques antissemitas. Mais do que nunca, o famoso poema do pastor luterano Martin Niemöller[6] é relevante hoje:

Quando os nazistas pegaram os comunistas,
eu fiquei em silêncio;
eu não era comunista.

Quando eles prenderam os social-democratas,
eu fiquei em silêncio;
eu não era um social-democrata.

Quando eles pegaram os sindicalistas,
eu não protestei;
eu não era um sindicalista.

Quando eles levaram os judeus,
eu fiquei em silêncio;
eu não era um judeu.

Quando eles vieram me buscar,
não havia mais ninguém para protestar.

Membro do povo de Israel e do Egito, comprometido com o destino da nação egípcia e da sua família, colaborando para seu sucesso em um cenário de crise regional. Esse é Iossêf, que nesta semana reconhece aos seus irmãos quem ele realmente é. 

Que possamos, também nós, termos orgulho da nossa identidade judaica e brasileira, e nunca precisemos esconder parte de quem somos, ao mesmo tempo em que combatemos toda forma de ódio, discriminação, preconceito e intolerância, com especial atenção ao antissemitismo, que nos atinge de forma direta. Que sempre possamos condená-lo, independentemente de outros interesses e que nunca o manipulemos para avançar nossas próprias agendas.

Que em 2023 possamos avançar na direção de um mundo mais inclusivo, mais acolhedor, mais aberto, mais humano.

Shabat Shalom!

 

 



[4] . https://blogs.timesofisrael.com/i-hate-talking-about-anti-semitism/

[5] . https://www.hartman.org.il/auschwitz-or-sinai/

[6] . https://en.wikipedia.org/wiki/First_they_came_…






quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Qual a tua narrativa neste Chanucá?

Chanucá é, entre as festas judaicas, provavelmente a que mais tem narrativas para celebrar a sua comemoração. O nome da festa Chanucá (חנוכה) significa “dedicação” ou “inauguração” e faz referência à re-dedicação do Templo de Jerusalém após a vitória militar dos Macabeus no século II aEC. Esta história, relatada nos livros Macabeus I e II, não foi incorporada ao Tanach, mas faz parte da Bíblia Católica.

Segundo os historiadores [1], a terra de Israel era dominada pelo Império Selêucida, Sírios de cultura grega (Helenista). Em seus esforços para integrar a terra de Israel ao resto do Império, os Selêucidas tinham trazido inovações urbanas para Jerusalém e outras cidades e oferecido pertencimento ao império. Para parte da população judaica, especialmente a elite, estas eram ofertas atraentes, ainda que implicassem abrir mão de parte do que diferenciava os judeus de outros povos. Para outra parte da população judaica, especialmente o campesinato, as contrapartidas para integração ao império não se justificavam e significavam romper o pacto judaico com Deus. Quando o rei selêucida Antiocus IV nomeou um de seus aliados, Jason, para a posição de Sumo Sacerdote e este revogou práticas judaicas, tais como a circuncisão, o descanso no Shabat e a proibição de sacrifícios a deuses pagãos a insatisfação dos campesinos aumentou.

Em 166 aEC, uma família de Modiin deu início a uma revolta contra a elite judaica associada aos sírios. O patriarca, Matitiahu, era o líder político do movimento; seu filho, Iehudá (apelidado Macabi, ou “martelo” em aramaico), era o líder militar. Ao longo de quatro anos, uma guerra civil dividiu o mundo judaico e, apesar de seu menor poderio militar, o campesinato derrotou a coligação da elite judaica com os selêucidas.

Quatro séculos antes, o rei Shlomô tinha celebrado a inauguração do Primeiro Templo em Sucot, com oito dias de festa [2]. Por isso, os Hasmoneus (a dinastia judaica que se estabeleceu após a vitória) decidiram seguir a mesma prática, comemorar Sucot fora de época e celebrar a reinauguração do Templo por oito dias.

Apesar desta perspectiva, na qual a batalha de Chanucá foi uma guerra civil, a história ficou marcada como uma vitória dos judeus sobre os Selêucidas (ou sobre os Gregos, de quem eles tinham herdado a cultura Helenista). Nos séculos seguintes, a região caiu sob domínio romano e os atritos entre judeus e dominadores foram se acentuando. Na primeira guerra Judaico-Romana (66-73 EC), o Templo de Jerusalém foi destruído.  Na terceira guerra Judaico-Romana (132-136 EC), também conhecida como “Revolta de Bar Kochbá”, a população judaica da Terra de Israel foi dizimada [3]. Nos séculos seguintes, os Rabinos tinham muita preocupação que a mensagem de Chanucá encorajasse novas revoltas militares contra os romanos e levasse ao extermínio no povo. Por isso, quando a história de Chanucá é relatada no Talmud, a ênfase é retirada do conflito militar e, pela primeira vez, aparece a narrativa do milagre do óleo. Em resposta à pergunta “O que é Chanucá?”, o Talmud responde: “no dia 25 de Kislev começam os dias de Chanucá, que são oito. (...) Quando os Gregos entraram no Santuário, eles tornaram impuros todos os vidros de óleo que lá estavam. Quando a dinastia dos Hasmoneus os venceu, eles procuraram e encontraram apenas um vidro de óleo com o lacre do Sumo Sacerdote e nele havia apenas óleo suficiente para um dia. Aconteceu um milagre e puderam acender [a menorá] por oito dias.” [4] Muitas das práticas que hoje temos sobre Chanucá derivam desta perspectiva, incluindo o nome “Chag Urim”, “festa das luzes”.

No final do século 19, com o crescimento do movimento sionista em partes da Europa Central e Oriental, a mensagem da auto-afirmação do povo judeu através do levante dos Macabeus  parecia bem mais alinhada com os caminhos políticos do povo judeu do que em séculos anteriores. Neste momento, a mensagem de Chanucá passa por nova transformação, enfatizando os atos de bravura dos Hasmoneus, sua coragem política e astúcia militar. Neste processo, ajudou a crescente abertura e diálogo entre as comunidades judaicas emancipadas e seus vizinhos cristãos, cuja versão da Bíblia tinha incorporado os livros de Macabeus I e II, com a narrativa histórica do feriado.

Um século antes, o mestre chassídico, rabino Levi Yitzhak de Berditchev, tinha escrito que há 3 tipos de milagres: os milagres aparentes, que subvertem a ordem natural, como as dez pragas ou a abertura do Mar, como comemoramos em Pessach. Há também os milagres escondidos que acontecem sem a intervenção humana, como a história de Purim, que, na sua leitura, é uma sequência de acontecimentos direcionados pela mão de Deus sem, no entanto, que a ordem natural seja quebrada. Finalmente, há os milagres escondidos, que acontecem através das ações humanas, como a história de Chanucá, na qual foi através das ações dos Macabeus que os poucos desarmados puderam derrotar os muitos e fortes.

Chanucá 5783 começa no próximo domingo, dia 18/12. Que em nossa comemoração possamos definir nossas próprias narrativas e que tenhamos a coragem de determinar os caminhos que vamos trilhar e a força para sustentar que até mesmo o improvável aconteça. Que ao acendermos as velas e pela nossa conduta consigamos, de fato, trazer mais luz para um mundo que tem insistido, tantas vezes, em mergulhar na escuridão.

Chag Urim Sameach!


[1] Zion, Noam & Spectre, Barbara (2000). A Different Light: the Big Book of Hanukkah, p. 53-106.

[2] Crônicas II 7:8-11

[3] De acordo com Cassius Dio, um historiador que viveu naquela época, 585.000 judeus foram mortos, além daqueles que morreram de doenças e fome. Quase 1000 vilarejos foram completamente destruídos.

[4] Talmud Bavli Shabat 21b


sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Dvar Torá: Revertendo Invisibilidades (CIP)


Neste ano sui-generis em que nós estamos vivendo, os encontros que de turmas que estamos tendo estão, em geral, associados aos jogos do Brasil na Copa, como foi caso hoje. Em outros anos, no entanto, estaríamos em reuniões e confraternizações de fim de ano: inúmeros happy hours, dos quais nunca reclamamos, e só ficava difícil acordar e ir pro trabalho na manhã seguinte depois da bebedeira noturna da qual tínhamos participado. 

Aqui na CIP o final do ano é a oportunidade de concluir vários dos nossos programas com participações no Cabalat Shabat: na semana passada foi a vez da Escola Lafer, e hoje, a do Manhigut.

Há pouco mais de três anos, eu tive minha primeira experiência conduzindo um shabat da Escola Lafer, que eu tinha recém começado a coordenar. No final da minha prédica, em reconhecimento à equipe profissional e voluntária, eu convidei todos a subirem na bimá. Quando eu estava lendo os nomes, eu escuto da primeira fila, uma das nossas morot dizer “ele esqueceu de mim…”. Rapidamente, eu coloquei o nome da morá na lista que eu ainda estava lendo e evitei por um triz que ela se sentisse ainda mais desprestigiada. 

Quem nunca? Quem nunca esteve na posição de se sentir invisível? De escutar um comentário no qual a pessoa, sem ter tido a menor intenção de te ofender, simplesmente não te considerou. Num grupo de pais da escola, em que participam pais e mães, alguém se referir no coletivo “então, amigas….”. Ou quando falam sobre o Brasil como um país cristão, ignorando todas as outras perspectivas religiosas que tanto contribuíram para a construção deste país. Ou quando assumem que todos os judeus têm a mesma posição política, claramente te excluindo da tua própria comunidade.

Quem também já não cometeu um desses deslizes, involuntário, na maioria das vezes sem se dar conta de que estava excluindo alguém. E a pergunta que sempre precisamos fazer é: “o que fazemos quando nos damos conta do nosso descuido? Como podemos reparar o erro?!”

Se vocês derem uma olhada na página 21 do sidur, no comecinho da Amidá, vocês verão que, na benção em que invocamos o Deus dos nossos antepassados, nos referimos ao Deus dos nossos patriarcas, Avraham, Itschak, Iaacóv, e das nossas matriarcas, Sará, Rivcá, Rachel e Leá. Quem está na CIP há algum tempo sabe que nem sempre foi assim nos nossos sidurim. Na edição anterior do Shabat Shalom, que só substituímos em 2020, ainda fazíamos referência apenas aos patriarcas e no Shavua Tov, o sidur que usamos durante a semana, em uma edição de 2013, há duas colunas: permitindo que quem queira optar pela “versão tradicional” continue omitindo as mulheres, enquanto quem optar pela “versão igualitária”, as inclui. Certamente, já avançamos quando tornamos visíveis as mulheres de quem descendemos, e não apenas os seus maridos. Reconhecendo e aplaudindo este avanço, precisamos reconhecer que continuamos tornando invisíveis parte das mulheres de quem descendemos.

A parashá desta semana, Vaietsê, conta da fuga de Iaacóv, depois de ter se passado por seu irmão Essáv e recebido a benção da primogenitura no lugar dele. Durante os 20 anos seguintes, Iaacóv, que até então tentava trilhar seu caminho sempre levando vantagem, algumas vezes trapaceando mesmo, vê os papéis se inverterem. Seu sogro, titio Laván, o trapaceia inúmeras vezes, começando com seu casamento, em que ele queria casar com a filha mais nova, Rachel, mas quando acorda se vê casado com a filha mais velha, Leá. E essas são as duas matriarcas cujos nomes fecham a lista que passamos a mencionar na Amidá: Sará, Rivcá, Rachel e Leá.

Elas não são, no entanto, as únicas mulheres com quem Iaacóv tem seus doze filhos homens, aqueles que darão origem às doze tribos de Israel. Quando Rachel não podia ter filhos, deu Bilá, sua serva, para Iaacóv como sua esposa, “para que [pudesse] ter um filho através dela” [1]. Bilá e Iaacóv tiveram Dan e Naftalí. Quando Leá deixou de ter filhos, ela também entregou sua serva, Zilpá, para Iaacóv como esposa [2] e ela teve, com Iaacóv, Gad e Asher. Juntas, elas deram à luz um quarto dos filhos de Iaacov mas, mesmo assim, não têm sido reconhecidas como matriarcas do povo judeu.

Heather Burrow afirma: “Elas são frequentemente apresentadas como objetos semelhantes a escravos, sem voz na narrativa, que agem apenas a mando de outros. Elas nunca são apresentadas como sujeitos com voz, agência ou poder. Assim, elas foram esquecidas como indignas ou ignoradas como se não fossem merecedoras de destaque”, mas, depois de estudá-las, ela ganha uma nova perspectiva “(…) sua história ressoa com tantos que não têm voz ou poder. É uma história da silenciosa humildade de mulheres marginalizadas cujos filhos têm uma vida melhor como resultado. Eu afirmo que essas duas mulheres são identificáveis e dignas de emulação por razões diferentes das Matriarcas mais conhecidas.” [3]

No texto bíblico, são poucas as referências a Bilá e a Zilpá. Nunca ouvimos uma palavra que elas tenham pronunciado. O pouco que sabemos é que Bilá sofre um ato de violência sexual por parte de Reuven, o filho mais velho de Iaacóv.

Na falta de informação vinda da Torá, os midrashim fazem a festa. Sobre Bilá, há quem diga que ela era sobrinha de Dvora, a ama de leite de Rivcá; outros comentários indicam que tanto Bilá quanto Zilpá eram meia-irmãs de Rachel e Leá, filhas de Laván com concubinas suas [4]. Alguns midrashim indicam que, quando Rachel faleceu, Bilá assumiu seu lugar, criando Iossêf e Biniamin [5] e passando a ocupar, de fato, o papel de esposa de Iaacóv. Neste espaço de falta de informação e indefinições, há midrashim que a consideram como parte de seis matriarcas, associando inclusive, o número de bençãos na Amidá de Rosh haShaná, nove, à soma dos 3 patriarcas às 6 matriarcas.

Em tempos recentes, há sinagogas que, considerando que Bilá e Zilpá representam todos os segmentos da comunidade judaica que, ao longo dos séculos, foram invisibilizados e decidiram incoporá-las ao lado de Sará, Rivcá, Rachel e Leá. Assim, de forma simbólica, incorporam também pessoas que nunca se enxergaram nas figuras retratadas nas páginas do sidur. A imensa maioria das sinagogas, no entanto, mais apegadas a formulações mais tradicionais, continuam se referindo a apenas quatro matriarcas ou até apenas aos seus maridos.

Queridos formandos do Manhigut: que vocês sejam capazes de liderar uma comunidade judaica em que todos se encontrem representados, capazes de descobrir sua voz na dinâmica comunitária. Que a liderança de vocês possa ser um fator de crescimento e amadurecimento do mundo judaico e que sua participação judaica possa ajudar cada um de vocês a crescer e amadurecer.

Shabat Shalom!


sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Dvar Torá: Sodoma: uma cidade como as nossas (CIP)


Nesta semana nós tivemos a segunda aula de um curso que eu estou dando com a arte-educadora Karen Greif Amar juntando midrash e as artes plásticas. Como nós começamos o curso algumas semanas depois de Simchat Torá, estamos um pouco atrasados em relação ao ciclo de leitura semanal. Nesta segunda semana do curso tratamos da segunda parashá da Torá: Noach.

Entre os midrashim que lemos, há um [1] que conta que, antes de criar este mundo em que vivemos, Deus criou vários outros. Criou e destruiu, criou e destruiu, criou e destruiu, até que se satisfez com este mundo e resolveu mantê-lo. Ao que parece, a resolução para manter este mundo sem ser destruído não durou muito. Ainda no finalzinho de parashat Bereshit, o texto indicava:
ה׳ viu quão grande era a maldade humana na terra - como todo plano elaborado pela mente humana não era nada além do mal o tempo todo. E ה׳ lamentou ter feito a humanidade na terra. Com o coração entristecido, ה׳ disse: “Exterminarei da terra os homens que criei: os homens com os animais, os répteis e as aves do céu; pois lamento tê-los feito.” [2]
Todos nós conhecemos ao final daquela história: um grande dilúvio veio e matou quase toda a vida sobre a Terra. Noach e sua arca salvaram alguns animais de cada espécie para que pudéssemos continuar nossa jornada por aqui. Para indicar que nunca mais Deus faria outro dilúvio destruir toda vida sobre a terra, Deus estabelece o arco-íris, sinal do pacto que Deus firmava com Noach.

Eu fico pensando na história de Noach quando leio a parashá desta semana, Vaierá — em particular, o começo da história de Sodoma e Gomorra, quando Deus se dá conta do que está acontecendo nestas cidades:
Então ה׳ disse: “A indignação de Sodoma e Gomorra é tão grande, e seu pecado tão grave! Descerei para ver se eles agiram de acordo com o clamor que Me alcançou; se não, tomarei nota.” [3]
Apesar da decisão prévia simbolizada pelo arco-íris, Deus decide — depois de considerar os protestos de Avraham — destruir as cidades, ainda que poupasse o resto do mundo. Podemos ir pela tecnicalidade de que desta vez não foi um dilúvio, mas uma chuva de enxofre e fogo, que matou tudo que lá vivia mas, pela segunda vez, Deus retoma o hábito de criar mundos e destruí-los, que parecia ter abandonado quando criou o nosso universo.

O que pode ter levado Deus a reverter sua decisão depois de tê-la reafirmado após o Dilúvio? Os midrashim buscaram com afinco esta explicação.

Alguns textos [4] afirmam que Sodoma era uma cidade extremamente rica, de solo fértil e cheia de prata, ouro e pedras preciosas. No entanto, apesar de serem caracterizados como as pessoas mais ricas da Terra, seus cidadãos não se preocupavam com o bem estar alheio. Cometiam fraudes contra os visitantes, impediam que as aves pudessem comer dos frutos da terra, cometiam inúmeras injustiças que mantinham seus privilégios intactos.

Algumas história contam que eles estabeleceram regras que proibiam a ajuda aos necessitados, um crime cuja pena era a pena de morte. Há diversas versões com relação a quem foi a jovem e quem ela ajudava, mas os midrashim apontam para uma moça que, tendo ajudado uma pessoa em necessidade e tendo sido descoberta pelos moradores de Sodoma, foi morta na fogueira. Teriam sido os seus gritos que chegaram aos ouvidos de Deus, justificando Sua intervenção. 

Mesmo antes dos midrashim, os profetas já apontavam em direções semelhantes para a má conduta de Sodoma. No livro do profeta Ezequiel, ele diz, em nome de Deus: “Este foi o pecado de sua irmã Sodoma: arrogância! Ela e as filhas tinham muito pão e uma tranquilidade imperturbável; no entanto, ela não apoiou os pobres e necessitados.” [5]

Quando eu comecei a estudar esse assunto, nunca tinha escutado sobre essas histórias que falam de arrogância, de egoísmo, de manutenção de privilégios, de indiferença para com os segmentos mais vulneráveis. Histórias que falam da tendência humana de, muitas vezes, se preocupar apenas com seus próprios desejos e necessidades, sem considerar quem mais é afetado pelas suas ações. Quando conseguimos ser a melhor versão de nós mesmos, reconhecemos estes impulsos e podemos atuar para amenizá-los. Em outras situações, simplesmente nos rendemos e somos tomados pelo que há de pior na humanidade. Por tudo isso, teria sido apropriado que esses midrashim tivessem se tornado os textos básicos de uma religiosidade preocupada com nossa conduta no mundo. Não foi o que aconteceu.

O mais curioso, ou o mais triste, é que a destruição de Sodoma e Gomorra recebeu uma outra narrativa. Ao invés de destacar a falta de solidariedade, de empatia, de generosidade, muitas tradições religiosas preferiram apontar para as práticas sexuais da cidade, insinuando que teria sido a homossexualidade de seus habitantes que teria dado origem à ira Divina. Sodomia, ainda hoje, aparece no dicionário como uma prática de homosexualidade masculina. 

Ao invés de olhar para nossas próprias falhas e identificar áreas em que podíamos crescer, estas abordagens ao texto apontaram para o “outro” como o problema, como a causa da ira Divina. Erramos e perdemos duas vezes: ao não percebermos em Sodoma e Gomorra um espelho para nossas próprias ações de egoísmo, arrogância e violência e ao apontarmos o dedo acusador para grupos inocentes de qualquer culpa.

A prática de responsabilizar o grupo com menos chance de responder ao nosso ataque não ficou restrito às lições religiosas de Sodoma e Gomorra. Ao longo da história — da NOSSA história — inúmeras são as situações em que, ao invés de reconhecer sua responsabilidade pelos problemas que a cercam, a humanidade elegeu atribuir a culpa a um grupo apontado como bode expiatório.

Que as lições da destruição de Sodoma e Gomorra sejam de fato aprendidas, que procuremos nossos fantasmas e resolvamos nossos problemas olhando mais pra dentro e apontando menos o dedo acusador para o primeiro que passar.

Shabat Shalom

[1] Bereshit Rabá 3:7
[2] Gen. 6:5-7
[3] Gen. 18:20-21
[4] Tosefta Sotá 3:3, Pirkei de Rabi Eliezer 25
[5] Eze 16:49-50

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Abandonando os lugares que nos aprisionam

Ein mucdám u-meuchár ba-Torá” é um princípio rabínico de acordo com o qual as passagens relatadas na Torá não estão, necessariamente, em ordem cronológica. Algo que apareça mais cedo no texto pode ter acontecido depois de algo que será relatado mais tarde. Na esperança de que este princípio valha para a forma como tratamos do calendário judaico, vou me permitir tratar de Pessach, festa para a qual ainda faltam mais de cinco meses!

Durante o seder e a contação da história na hagadá, em geral damos pouco destaque à discussão entre Rav e Shmuel, dois sábios da primeira geração de Amoraim da Babilônia, tendo vivido no terceiro século da Era Comum. Rav e Shmuel travavam debates frequentes que foram registrados nas páginas do Talmud. Com relação ao seder de Pessach, ambos aceitavam o princípio estabelecido na Mishná (que havia sido compilada na geração anterior, a última dos Tanaim), de que “Os pais devem ensinar de acordo com a inteligência e a personalidade de cada criança. Comece descrevendo degradação e culmine com a libertação” [1] Ees debatiam, no entanto, qual era o significado da degradação e da libertação sobre a qual deveriam ensinar as crianças. 

Shmuel disse: comece com “fomos escravos na terra do Egito” e continue contando, da escravidão física à libertação política. Rav disse: comece com Terach, o pai de Avraham, e o estado de idolatria em que nossos antepassados se encontravam. “Um dia nossos antepassados eram escravos da idolatria e idolatravam deuses pagãos. Agora, depois do Har Sinai, Deus nos trouxe mais próximos do serviço Divino.”

A parashá desta semana, Lech Lechá, nos traz o início do processo de redenção espiritual sobre o qual Rav entendia que o Seder de Pessach deveria tratar. Nela, Deus diz a Avram: “Abandone a sua terra, do lugar em que você nasceu e a casa do teu pai e vá para a terra que te mostrarei”. O movimento de Avraham, ao deixar a casa dos seus pais e buscar seu caminho em direção à terra de Cnaán não foi apenas uma migração geográfica: foi um processo de renascimento espiritual.

Somos, na imensa maioria, descendentes de imigrantes, de pessoas que deixaram suas terras de origem e se instalaram no Brasil, um processo muitas vezes doloroso de desenraizamento de um lugar conhecido e busca de novas referências em uma nova terra. Somos, por característica cultural, um povo que segue o exemplo de Avraham, sempre em busca de novas referências de visão de mundo; um processo que pode ser igualmente difícil e doloroso, de rejeitar as antigas certezas mas de ainda não estar seguro de quais serão as novas crenças.

A jornada de Avraham, que tem início na parashá desta semana, pode nos servir de referência nessa travessia. O caminho não é, nem nunca foi, linear. Avraham avança e recua, demonstra bondade e caráter (como quando resgata seu sobrinho Lot, que havia sido sequestrado) ao mesmo tempo em que também comete seus erros (como quando, no Egito, tenta passar Sará como se fosse sua irmã). Nossos caminhos tampouco são lineares, aprendemos ao longo da jornada, nos fortalecemos e nos preparamos para os novos desafios.

Que neste shabat consigamos abandonar os lugares e as crenças que nos aprisionam e busquemos nossa redenção no caminho, no esforço de caminhar e aprender.

Shabat Shalom!


[1] Mishná Pessachim 10:4

[2] Bereshit Rabá 39:11



sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Dvar Torá: Que bom que não pensamos todos o mesmo (CIP)


Há alguns dias, antes do anúncio público que veio só hoje, minha filha veio toda animada me contar que a Gisele Bundchen e o Tom Brady estavam se separando. Aos 14 anos, ela adora ficar a par de tudo o que acontece no mundo das celebridades, sabe a data de lançamentos de todos os álbuns da música pop e conhece no detalhe a lista de filmes e séries que seus atores favoritos fizeram.

Apesar de achar a Gisele Bundchen linda e de ter torcido muito pelos arremessos certeiros do Tom Brady quando ele jogava no New England Patriots, não me interesso nada pela vida conjugal dos dois. Isso dito, preciso reconhecer que tem um tipo de stalking que eu, sim, pratico: gosto de visitar os sites de sinagogas em outros lugares e investigar quem são seus rabinos. Em uma destas empreitadas, descobri uma colega que tinha escrito um artigo para um livro editado pela Central Conference of American Rabbis, o sindicato rabínico reformista, que trata de um tema que muito me interessa: a conexão do judaísmo com a justiça social. Não foram nem cinco minutos entre descobrir o livro e tê-lo disponível no meu Kindle. O nome do livro, traduzido para o português: Resistência Moral e Autoridade Espiritual: Nossa Obrigação Judaica com a Justiça Social [1].

Logo no primeiro artigo do livro, o rabino Seth Linner, um dos seus editores,  escreve sobre “Judaísmo e o Mundo Político”. Ele abre o artigo dizendo que inúmeras vezes lhe perguntaram por que o judaísmo se importa tanto com a política e o estrutura como uma longa resposta a este questionamento.

A pergunta faz sentido e parece especialmente apropriada tendo em vista o clima político que temos vivido no Brasil nos últimos anos. Com alguma frequência, escutamos na imprensa comentários de que as religiões deveriam se ocupar da fé, da vida espiritual de suas comunidades, e deixar o debate sobre a vida cotidiana para líderes políticos ou outros analistas. Do ponto de vista cristão pode ser que esta conduta faça sentido, mas a tradição judaica, que vai muito além da religião no que foi definido por Mordecai Kaplan como uma Civilização Judaica, sempre se preocupou com formas de santificar a o comum, o cotidiano, de lhe atribuir intencionalidade, de empregá-la com os valores que nossa tradição transmite.

Nas páginas do Tanach e do Talmud, a vida espiritual ocupa um pequena minoria dos textos. A ênfase está na discussão da forma como tratamos uns aos outros, como protegemos os segmentos mais vulneráveis de nossas sociedades, como combatemos nas guerras, como estruturamos sistemas judiciais imparciais, como pagamos nossos funcionários de forma justa, como cuidamos dos recursos naturais e até quais estruturas de segurança precisam existir em nossas construções. Esses são apenas alguns exemplos de como a tradição judaica se preocupa com o concreto, com a vida que levamos além dos momentos que poderiam ser rotulados como “rituais” ou “religiosos”.

O parágrafo final do artigo do rabino Limmer resume bem esta posição:
Por que o judaísmo se preocupa com a política? Porque a Torá nos ensina que a santidade deve entrar no mundo através de nossas interações com os outros. Porque os profetas protestaram contra a injustiça, sejam pecados no santuário ou abuso de poder no reino político. Porque o Talmud estabelece um sistema intrincado de leis que nos liga aos nossos vizinhos, quer busquemos essa conexão social ou não. Porque, por mais de três mil anos, nossa tradição nos ensinou que todo ser humano é pessoalmente responsável pela posição moral do mundo inteiro.
Tudo isso dito, é claro que não estamos defendendo que um líder religioso defenda do púlpito o voto em um candidato ou em outro — isso seria claramente abuso do seu poder religioso.

O fato de que o judaísmo encare o universo da política como uma área natural para o seu exercício torna ainda mais preocupante do ponto de vista judaico a situação que vivemos hoje. Ao longo da última semana, podcasts da Folha de S. Paulo [2], e do O Globo [3] trataram da polarização afetiva, dos conflitos entre amigos e dentro de famílias que têm levado a rupturas sociais antes inimagináveis. Parte do caldo de cultura que tem permitido que essa polarização aconteça é uma radicalização das narrativas, com a efetiva negação da legitimidade de posições políticas destoantes, além da perda de referências que faz com que já não saibamos o que é verdadeiro e o que não é. 

Dentro da extensa lista de temas sobre os quais o judaísmo se interessa, a possibilidade da divergência ocupa lugar central. Uma das passagens talmúdicas mais famosas a este respeito conta que as escolas de Hilel e de Shamai debateram por três anos um assunto sem conseguir chegar a um consenso. Após este tempo, uma voz divina anunciou: “אלו ואלו דברי אלוהים חיים”, elu veelu divrei Elohim chayim, “tanto umas quanto as outras são as palavras vivas de Deus.” [4] Apesar de opostas, as posições dos dois lados carregavam verdades. Hoje, numa eleição que já foi caracterizada inúmeras vezes como uma guerra entre o bem e o mal, me parece absolutamente improvável que alguém conseguisse enxergar verdades na posição de seu opositor político. Mais do que isso, passamos da disputa eleitoral à guerra eleitoral, um fenômeno que não tem acontecido só no Brasil. 

Na campanha presidencial norte-americana de 2008, em um evento com seus eleitores, John McCain, um eleitor se levantou e lhe disse que tinha medo porque Barack Obama, contra quem McCain concorria, estava aliado aos terroristas. A resposta de McCain foi: “eu preciso te dizer que ele é uma pessoa decente e uma pessoa de quem você não precisa ter medo como presidente dos Estados Unidos”. O público passou a vaiar seu próprio candidato. Na sequência ele disse a outra eleitora, ainda sobre Barack Obama: “ele é um homem de família decente e um cidadão, com quem eu tenho discordâncias em questões fundamentais e é sobre isso de que se trata esta eleição.” [5] Talvez tenha sido pela sua decência em defender  a verdade e seu opositor que McCain perdeu aquela eleição — como outros ciclos eleitorais demonstraram, mentiras têm um poder imenso para criar fanatismo, medo e entusiasmo na eleição. McCain perdeu a eleição de 2008, mas continua sendo apontado como um exemplo de político que não estava disposto a corromper seus valores para vencer a qualquer custo.

A possibilidade de encontrar decência na pessoa de quem se diverge, tratá-la com respeito, é vista cada vez mais como uma esperança ingênua, a descrição de um mundo ao qual nunca mais voltaremos. Quem sabe, o judaísmo e sua visão da política pode ter algo a contribuir para alimentarmos este sonho, mesmo que ele seja fruto da nossa ingenuidade.

Na parashá desta semana lemos a história da Torre de Babel [6]. O texto conta que “toda a terra tinha o mesmo idioma e usava as mesmas palavras”, “דברים אחדים”, dvarim echadim. “Palavras”,  “דברים”, dvarim — a mesma expressão usada para o que a voz Divina, reconheceu como vindas de Deus no caso de Hilel e Shamai, ainda que refletindo posições opostas, é aqui usada para fazer referência às palavras únicas da geração de Babel. As pessoas, então, decidem construir uma torre que chegasse ao céu. Incomodado com o plano, Deus destrói a torre, os dispersa por toda a terra e estabelece múltiplos idiomas. 

O filósofo israelense Ieshaiahu Leibowitz, tem uma leitura bastante inusitada desta passagem e que me parece apropriada para o momento que vivemos. Ele escreveu:
Parece-me que este decreto não foi um castigo mas, pelo contrário, uma medida tomada para o benefício da humanidade. A grande importância do episódio da Torre de Babel não é, de forma alguma, a tentativa de construir uma torre, mas remete para o que foi dito anteriormente, que "a terra – a humanidade renovada após o dilúvio – tinha uma língua e as mesmas palavras”. Após o fracasso da construção, diversos idiomas foram criados, o que levou a diversos discursos. Parece-me que a raiz do erro (ou pecado) da “geração da separação” não foi a construção de uma cidade e uma torre, mas o objetivo de usar esses meios artificiais para garantir uma situação de "uma linguagem e um discurso" – de centralização, o que, em linguagem moderna é conhecido como “totalitarismo". Uma linguagem e um discurso é, de acordo com muitas pessoas ingênuas em nossos dias, a descrição de uma situação ideal: toda a humanidade em um único bloco sem diferenciação e, como resultado, sem conflitos. Mas quem realmente entende saberá que não há nada mais ameaçador do que este conformismo artificial: uma cidade e uma torre como o símbolo da concentração de toda a humanidade em um único tópico – onde não haverá diferenças de opinião e onde não haverá mais conflito sobre diferentes pontos de vista e valores. Não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que esta – que não deve haver exceções e que não deve haver desvios do que é aceito e acordado, situação mantida pelos meios artificiais de uma cidade e uma torre. [7]
Para Leibowitz, ingênua é a crença de que estaríamos em uma situação ideal caso todos concordássemos sobre o melhor destino para nossas sociedades. A diversidade de opiniões, por outro lado, é o que possibilita o aparecimento de novas opinões, de oxigenação de modelos, de ideias, de perspectivas. 

Parafraseando John McCain, a maioria das pessoas de quem discordamos politicamente é formada por pessoas decentes, dignas, inteligentes e bem informadas. Elas têm o direito de ter uma opinião diferente da tua sem que isso negue sua humanidade, sua dignidade ou sua honestidade. É graças à diversidade política que podemos contemplar com que modelo de sociedade sonhamos e qual o projeto político que terá maior sucesso em nos levar lá. A alternativa é adotar um modelo de “דברים אחדים", dvarim echadim, de "palavras únicas” e abrir mão da possibilidade de crescer a partir do encontro de pontos de vista que reflitam simultaneamente as palavras vivas de Deus.

Neste domingo, com toda responsabilidade, pense na sociedade com que você sonha e escolha quem te parece ter mais chances de te aproximar dela — sem ódio, sem ressentimentos, sem cancelamentos e sem rompimentos de pessoas que você sempre considerou dignas; não será o voto delas nem o teu que deve te fazer mudar essa opinião. 

Shabat Shalom e bom voto!

[1] Seth M. Limmer e Jonah Dov Pesner, “Moral Resistance and Spiritual Authority: Our Jewish Obligation to Social Justice”, CCAR Press, 2019.
[2] https://open.spotify.com/episode/1awSmQ40tNt6xUaxFtCQMU?si=a12575c5b69f4100
[3] https://open.spotify.com/episode/6hk4S3p63agYyy58EFdvwV?si=ccb1baba71354c3b
[4] Talmud da Babilônia, Eruvin 13b
[5] https://www.youtube.com/watch?v=M0u3QJrtgEM 
[6] Gen. 11:1-9
[7] Yeshayahu Leibowitz, “Earot leParshiot haShavua”, Ch. 2: Bereshit - Noach 


quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Distantes no calendário, próximas nos valores

Muitas vezes, representamos o calendário judaico como um círculo, ao redor do qual escrevemos os meses, os feriados, as estações do ano e as espécies agrícolas cuja colheita na terra de Israel acontecem em cada época. Mais apropriado, me parece, seria representar o ano judaico como uma elipse, na qual existem dois pontos focais: os feriados da primavera, notadamente Pessach e Shavuot, e os feriados do outono, Rosh haShaná, Iom Kipur,  Sucot e Simchat Torá. Muitas são as semelhanças (e também as diferenças) entre as comemorações, apesar das diferentes narrativas e  de estarem diametralmente opostas quando vistas no ciclo anual.

Pessach é conhecida por comemorar a nossa libertação da servidão mas, nas páginas do Talmud, há uma disputa rabínica sobre qual é a servidão da qual fomos libertados. Shmuel acreditava que se tratava da escravidão física aos egípcios e que comemorar Pessach significava celebrar um processo de libertação política. Rav, por outro lado, acreditava que se tratava da escravidão espiritual à idolatria e ao paganismo. Para ele, comemorar Pessach implicava falar de um processo de libertação espiritual.

Rav provavelmente se sentiria validado pelos primeiros feriados de Tishrei, Rosh haShaná e Iom Kipur, que focam no nosso processo de crescimento espiritual, na introspecção e na avaliação das nossas condutas. Shmuel, por outro lado, gostaria de Sucot, na qual mudamos nossa orientação para o que é mais concreto, para a fragilidade dos lugares em que vivemos, em particular os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades.

Em determinado momento do seder de Pessach, abrimos as portas e cantamos Eliahu haNavi, lembrando-nos do profeta que, de acordo com a tradição, anunciará a chegada da Redenção. Sempre pensei que fazíamos este gesto com a esperança de que seria neste ano que chegaríamos à Era Messiânica. Há alguns anos, escutei do rabino Neil Gilman z”l outra interpretação para o gesto: de acordo com ele, depois de passarmos tantas horas cantando sobre a liberdade, poderíamos sair do seder com a ilusão de que o mundo já havia sido libertado. Assim, abrimos a porta para nos dar conta de que há muito trabalho ainda a ser feito para chegarmos a um mundo em que todos possam celebrar sua redenção pessoal e libertação nacional. Da mesma forma, há uma tradição de fincar a primeira estaca da sucá ao sairmos da sinagoga ao final de Iom Kipur. Depois de tantas horas focadas no nosso crescimento espiritual, buscamos equilíbrio trabalhando no mundo, martelo e estacas na mão.

O estudo e a prática da tradição judaica também fazem parte das mensagens destes dois pontos focais do calendário. No foco da primavera, comemoramos em Shavuot a entrega da Torá no Monte Sinai e celebramos passando a noite inteira em estudo; no foco do outono, celebramos a conclusão e o reinício do ciclo de leitura da Torá. Como uma criança que acaba de escutar uma história e, por ter gostado profundamente, pede para que a contem de novo, o povo judeu mal termina um ciclo de leitura da Torá e começa um novo, com muita dança e alegria.

Dois pontos focais na elipse do nosso calendário com mensagens muito semelhantes: a vida judaica deve buscar um equilíbrio entre o crescimento espiritual e o trabalho no mundo e a Torá, com suas setenta faces e inúmeras interpretações, é a ferramenta fundamental para atingir-se este equilíbrio.

Neste domingo à noite (dia 09/10), começamos as comemorações de Sucot e na próxima segunda-feira à noite (dia 17/10), começaremos a comemorar Simchat Torá. Cheque a programação e aproveite a chance de trazer mais significado e textura ao teu ano!

Shaná Tová e Chag Sameach!