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quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Proximidade ou Distância do Poder?

A cada quatro anos o ritual é o mesmo: alguns, satisfeitos com o resultado; outros, chateados porque queriam que alguém diferente vencesse. Tanto nas eleições presidenciais quanto na Copa do Mundo são muito frequentes os casos em que as pessoas estão tão investidas no resultado que chega a parecer que são elas mesmas que estão na disputa. No entanto, se na Copa do Mundo havia uma quase unanimidade torcendo pela seleção brasileira até sua desclassificação, com relação às eleições, a pluralidade política dentro da comunidade judaica garantia intensas divergências quanto aos candidatos preferidos.

A tradição judaica apresenta posições ambíguas com relação à proximidade de governos e governantes. Até mesmo dentro de uma mesma obra, encontramos posições conflitantes. De um lado, há o reconhecimento de que o poder corrompe, e que os sacrifícios necessários para manter a proximidade daqueles que detêm o poder pode corromper também. Em Pirkei Avot, encontramos, por exemplo, um trecho que afirma “tenha cuidado com as autoridades, pois elas não fazem amizade com uma pessoa, exceto para suas próprias necessidades; eles parecem amigos quando é de seu próprio interesse, mas não ficam ao lado de um homem na hora de sua angústia.” [1] Na mesma obra, o sábio Sh’maiá costumava dizer “Ame o trabalho, despreze posições de poder; e não fique muito à vontade com as autoridades.” [2]  Comentando sobre a opinião de Sh’maiá, o rabino Shmuly Yanklowitz afirma: “Vamos ser claros. Não devemos desprezar o poder. O poder pode ser usado para alcançar tanto bem em grande escala. Em vez disso, desprezamos as tentações do dinheiro e da fama, que muitas vezes acompanham o poder. Devemos virar as costas ao poder que é abusado para ganho próprio.” [3] Estas opiniões, provavelmente refletiam experiências pessoais negativas que seus autores tinham experienciado com os detentores do poder na sua época.

De outro lado, no entanto, encontramos opiniões que expressam experiências positivas com o papel que o governo exerce na sociedade. Na mesma obra de Pirkei Avot, rabi Chanina, o vice-sumo sacerdote dizia: “reze pelo bem-estar do governo, pois se não fosse pelo medo que inspira, toda pessoa engoliria seu vizinho vivo.” [4] O Talmud, comentando sobre essa passagem, afirma “assim como no caso dos peixes do mar, no qual o maior peixe engole os outros peixes, assim também no caso das pessoas, que se não fosse o medo do governo, a pessoa mais poderosa engoliria as outras.” [5] Aqui, uma postura que valoriza muito mais a figura governamental no papel de mediação de conflitos sociais, especialmente na proteção dos segmentos mais vulneráveis.

Na parashá desta semana, Vaiechi, lemos sobre o falecimento de Iossêf, a criança mimada que aprendeu de seus erros e se tornou um grande estadista, o vice-rei do Egito. A proximidade dos filhos de Israel com uma autoridade desta envergadura, alguns argumentam, foi o que possibilitou à família sobreviver à seca que se abateu sobre a região e, desta forma, dar origem ao povo judeu. Uma outra interpretação possível, no entanto, é que o privilégio do qual desfrutaram os filhos de Israel pela proximidade com Iossêf foi o que deu origem à antipatia dos egípcios pelos israelitas, que culminou no processo de escravização sobre o qual leremos na próxima parashá.

As distintas opiniões a respeito da relação entre a comunidade judaica e o governo apontam para um equilíbrio que, de um lado reconhece o papel positivo que o Estado e seus governantes podem ter na garantia da ordem e da justiça social sem, de outro lado, corromper nossos valores na busca por aproximação do poder político pelas vantagens e privilégios que essa proximidade possa trazer. 

Que, além das nossas palavras, também nossas ações em 2023 nos aproximem de uma sociedade mais justa, mais acolhedora, que reconheça a força de sua diversidade e a potência que é seguir o seu sonho!

Shabat Shalom e Feliz 2023!  


[1] Pirkei Avot 2:3

[2] Pirkei Avot 1:10

[3] Shmuly Yanklowitz, “Pirkei Avot: A Social Justice Commentary”, comentário sobre Pirkei Avot 1:10.

[4] Pirkei Avot 3:2

[5] Talmud Bavli Avodá Zará 4:3



quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Qual a tua narrativa neste Chanucá?

Chanucá é, entre as festas judaicas, provavelmente a que mais tem narrativas para celebrar a sua comemoração. O nome da festa Chanucá (חנוכה) significa “dedicação” ou “inauguração” e faz referência à re-dedicação do Templo de Jerusalém após a vitória militar dos Macabeus no século II aEC. Esta história, relatada nos livros Macabeus I e II, não foi incorporada ao Tanach, mas faz parte da Bíblia Católica.

Segundo os historiadores [1], a terra de Israel era dominada pelo Império Selêucida, Sírios de cultura grega (Helenista). Em seus esforços para integrar a terra de Israel ao resto do Império, os Selêucidas tinham trazido inovações urbanas para Jerusalém e outras cidades e oferecido pertencimento ao império. Para parte da população judaica, especialmente a elite, estas eram ofertas atraentes, ainda que implicassem abrir mão de parte do que diferenciava os judeus de outros povos. Para outra parte da população judaica, especialmente o campesinato, as contrapartidas para integração ao império não se justificavam e significavam romper o pacto judaico com Deus. Quando o rei selêucida Antiocus IV nomeou um de seus aliados, Jason, para a posição de Sumo Sacerdote e este revogou práticas judaicas, tais como a circuncisão, o descanso no Shabat e a proibição de sacrifícios a deuses pagãos a insatisfação dos campesinos aumentou.

Em 166 aEC, uma família de Modiin deu início a uma revolta contra a elite judaica associada aos sírios. O patriarca, Matitiahu, era o líder político do movimento; seu filho, Iehudá (apelidado Macabi, ou “martelo” em aramaico), era o líder militar. Ao longo de quatro anos, uma guerra civil dividiu o mundo judaico e, apesar de seu menor poderio militar, o campesinato derrotou a coligação da elite judaica com os selêucidas.

Quatro séculos antes, o rei Shlomô tinha celebrado a inauguração do Primeiro Templo em Sucot, com oito dias de festa [2]. Por isso, os Hasmoneus (a dinastia judaica que se estabeleceu após a vitória) decidiram seguir a mesma prática, comemorar Sucot fora de época e celebrar a reinauguração do Templo por oito dias.

Apesar desta perspectiva, na qual a batalha de Chanucá foi uma guerra civil, a história ficou marcada como uma vitória dos judeus sobre os Selêucidas (ou sobre os Gregos, de quem eles tinham herdado a cultura Helenista). Nos séculos seguintes, a região caiu sob domínio romano e os atritos entre judeus e dominadores foram se acentuando. Na primeira guerra Judaico-Romana (66-73 EC), o Templo de Jerusalém foi destruído.  Na terceira guerra Judaico-Romana (132-136 EC), também conhecida como “Revolta de Bar Kochbá”, a população judaica da Terra de Israel foi dizimada [3]. Nos séculos seguintes, os Rabinos tinham muita preocupação que a mensagem de Chanucá encorajasse novas revoltas militares contra os romanos e levasse ao extermínio no povo. Por isso, quando a história de Chanucá é relatada no Talmud, a ênfase é retirada do conflito militar e, pela primeira vez, aparece a narrativa do milagre do óleo. Em resposta à pergunta “O que é Chanucá?”, o Talmud responde: “no dia 25 de Kislev começam os dias de Chanucá, que são oito. (...) Quando os Gregos entraram no Santuário, eles tornaram impuros todos os vidros de óleo que lá estavam. Quando a dinastia dos Hasmoneus os venceu, eles procuraram e encontraram apenas um vidro de óleo com o lacre do Sumo Sacerdote e nele havia apenas óleo suficiente para um dia. Aconteceu um milagre e puderam acender [a menorá] por oito dias.” [4] Muitas das práticas que hoje temos sobre Chanucá derivam desta perspectiva, incluindo o nome “Chag Urim”, “festa das luzes”.

No final do século 19, com o crescimento do movimento sionista em partes da Europa Central e Oriental, a mensagem da auto-afirmação do povo judeu através do levante dos Macabeus  parecia bem mais alinhada com os caminhos políticos do povo judeu do que em séculos anteriores. Neste momento, a mensagem de Chanucá passa por nova transformação, enfatizando os atos de bravura dos Hasmoneus, sua coragem política e astúcia militar. Neste processo, ajudou a crescente abertura e diálogo entre as comunidades judaicas emancipadas e seus vizinhos cristãos, cuja versão da Bíblia tinha incorporado os livros de Macabeus I e II, com a narrativa histórica do feriado.

Um século antes, o mestre chassídico, rabino Levi Yitzhak de Berditchev, tinha escrito que há 3 tipos de milagres: os milagres aparentes, que subvertem a ordem natural, como as dez pragas ou a abertura do Mar, como comemoramos em Pessach. Há também os milagres escondidos que acontecem sem a intervenção humana, como a história de Purim, que, na sua leitura, é uma sequência de acontecimentos direcionados pela mão de Deus sem, no entanto, que a ordem natural seja quebrada. Finalmente, há os milagres escondidos, que acontecem através das ações humanas, como a história de Chanucá, na qual foi através das ações dos Macabeus que os poucos desarmados puderam derrotar os muitos e fortes.

Chanucá 5783 começa no próximo domingo, dia 18/12. Que em nossa comemoração possamos definir nossas próprias narrativas e que tenhamos a coragem de determinar os caminhos que vamos trilhar e a força para sustentar que até mesmo o improvável aconteça. Que ao acendermos as velas e pela nossa conduta consigamos, de fato, trazer mais luz para um mundo que tem insistido, tantas vezes, em mergulhar na escuridão.

Chag Urim Sameach!


[1] Zion, Noam & Spectre, Barbara (2000). A Different Light: the Big Book of Hanukkah, p. 53-106.

[2] Crônicas II 7:8-11

[3] De acordo com Cassius Dio, um historiador que viveu naquela época, 585.000 judeus foram mortos, além daqueles que morreram de doenças e fome. Quase 1000 vilarejos foram completamente destruídos.

[4] Talmud Bavli Shabat 21b


quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Abandonando os lugares que nos aprisionam

Ein mucdám u-meuchár ba-Torá” é um princípio rabínico de acordo com o qual as passagens relatadas na Torá não estão, necessariamente, em ordem cronológica. Algo que apareça mais cedo no texto pode ter acontecido depois de algo que será relatado mais tarde. Na esperança de que este princípio valha para a forma como tratamos do calendário judaico, vou me permitir tratar de Pessach, festa para a qual ainda faltam mais de cinco meses!

Durante o seder e a contação da história na hagadá, em geral damos pouco destaque à discussão entre Rav e Shmuel, dois sábios da primeira geração de Amoraim da Babilônia, tendo vivido no terceiro século da Era Comum. Rav e Shmuel travavam debates frequentes que foram registrados nas páginas do Talmud. Com relação ao seder de Pessach, ambos aceitavam o princípio estabelecido na Mishná (que havia sido compilada na geração anterior, a última dos Tanaim), de que “Os pais devem ensinar de acordo com a inteligência e a personalidade de cada criança. Comece descrevendo degradação e culmine com a libertação” [1] Ees debatiam, no entanto, qual era o significado da degradação e da libertação sobre a qual deveriam ensinar as crianças. 

Shmuel disse: comece com “fomos escravos na terra do Egito” e continue contando, da escravidão física à libertação política. Rav disse: comece com Terach, o pai de Avraham, e o estado de idolatria em que nossos antepassados se encontravam. “Um dia nossos antepassados eram escravos da idolatria e idolatravam deuses pagãos. Agora, depois do Har Sinai, Deus nos trouxe mais próximos do serviço Divino.”

A parashá desta semana, Lech Lechá, nos traz o início do processo de redenção espiritual sobre o qual Rav entendia que o Seder de Pessach deveria tratar. Nela, Deus diz a Avram: “Abandone a sua terra, do lugar em que você nasceu e a casa do teu pai e vá para a terra que te mostrarei”. O movimento de Avraham, ao deixar a casa dos seus pais e buscar seu caminho em direção à terra de Cnaán não foi apenas uma migração geográfica: foi um processo de renascimento espiritual.

Somos, na imensa maioria, descendentes de imigrantes, de pessoas que deixaram suas terras de origem e se instalaram no Brasil, um processo muitas vezes doloroso de desenraizamento de um lugar conhecido e busca de novas referências em uma nova terra. Somos, por característica cultural, um povo que segue o exemplo de Avraham, sempre em busca de novas referências de visão de mundo; um processo que pode ser igualmente difícil e doloroso, de rejeitar as antigas certezas mas de ainda não estar seguro de quais serão as novas crenças.

A jornada de Avraham, que tem início na parashá desta semana, pode nos servir de referência nessa travessia. O caminho não é, nem nunca foi, linear. Avraham avança e recua, demonstra bondade e caráter (como quando resgata seu sobrinho Lot, que havia sido sequestrado) ao mesmo tempo em que também comete seus erros (como quando, no Egito, tenta passar Sará como se fosse sua irmã). Nossos caminhos tampouco são lineares, aprendemos ao longo da jornada, nos fortalecemos e nos preparamos para os novos desafios.

Que neste shabat consigamos abandonar os lugares e as crenças que nos aprisionam e busquemos nossa redenção no caminho, no esforço de caminhar e aprender.

Shabat Shalom!


[1] Mishná Pessachim 10:4

[2] Bereshit Rabá 39:11



quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Distantes no calendário, próximas nos valores

Muitas vezes, representamos o calendário judaico como um círculo, ao redor do qual escrevemos os meses, os feriados, as estações do ano e as espécies agrícolas cuja colheita na terra de Israel acontecem em cada época. Mais apropriado, me parece, seria representar o ano judaico como uma elipse, na qual existem dois pontos focais: os feriados da primavera, notadamente Pessach e Shavuot, e os feriados do outono, Rosh haShaná, Iom Kipur,  Sucot e Simchat Torá. Muitas são as semelhanças (e também as diferenças) entre as comemorações, apesar das diferentes narrativas e  de estarem diametralmente opostas quando vistas no ciclo anual.

Pessach é conhecida por comemorar a nossa libertação da servidão mas, nas páginas do Talmud, há uma disputa rabínica sobre qual é a servidão da qual fomos libertados. Shmuel acreditava que se tratava da escravidão física aos egípcios e que comemorar Pessach significava celebrar um processo de libertação política. Rav, por outro lado, acreditava que se tratava da escravidão espiritual à idolatria e ao paganismo. Para ele, comemorar Pessach implicava falar de um processo de libertação espiritual.

Rav provavelmente se sentiria validado pelos primeiros feriados de Tishrei, Rosh haShaná e Iom Kipur, que focam no nosso processo de crescimento espiritual, na introspecção e na avaliação das nossas condutas. Shmuel, por outro lado, gostaria de Sucot, na qual mudamos nossa orientação para o que é mais concreto, para a fragilidade dos lugares em que vivemos, em particular os segmentos mais vulneráveis das nossas sociedades.

Em determinado momento do seder de Pessach, abrimos as portas e cantamos Eliahu haNavi, lembrando-nos do profeta que, de acordo com a tradição, anunciará a chegada da Redenção. Sempre pensei que fazíamos este gesto com a esperança de que seria neste ano que chegaríamos à Era Messiânica. Há alguns anos, escutei do rabino Neil Gilman z”l outra interpretação para o gesto: de acordo com ele, depois de passarmos tantas horas cantando sobre a liberdade, poderíamos sair do seder com a ilusão de que o mundo já havia sido libertado. Assim, abrimos a porta para nos dar conta de que há muito trabalho ainda a ser feito para chegarmos a um mundo em que todos possam celebrar sua redenção pessoal e libertação nacional. Da mesma forma, há uma tradição de fincar a primeira estaca da sucá ao sairmos da sinagoga ao final de Iom Kipur. Depois de tantas horas focadas no nosso crescimento espiritual, buscamos equilíbrio trabalhando no mundo, martelo e estacas na mão.

O estudo e a prática da tradição judaica também fazem parte das mensagens destes dois pontos focais do calendário. No foco da primavera, comemoramos em Shavuot a entrega da Torá no Monte Sinai e celebramos passando a noite inteira em estudo; no foco do outono, celebramos a conclusão e o reinício do ciclo de leitura da Torá. Como uma criança que acaba de escutar uma história e, por ter gostado profundamente, pede para que a contem de novo, o povo judeu mal termina um ciclo de leitura da Torá e começa um novo, com muita dança e alegria.

Dois pontos focais na elipse do nosso calendário com mensagens muito semelhantes: a vida judaica deve buscar um equilíbrio entre o crescimento espiritual e o trabalho no mundo e a Torá, com suas setenta faces e inúmeras interpretações, é a ferramenta fundamental para atingir-se este equilíbrio.

Neste domingo à noite (dia 09/10), começamos as comemorações de Sucot e na próxima segunda-feira à noite (dia 17/10), começaremos a comemorar Simchat Torá. Cheque a programação e aproveite a chance de trazer mais significado e textura ao teu ano!

Shaná Tová e Chag Sameach!


terça-feira, 16 de agosto de 2022

A mudança tem que vir de todos!

O Sh’má é talvez a frase mais conhecida da liturgia judaica. De acordo com a tradição, ele é dito logo ao acordar e também ao se deitar; está entre as primeiras frases em hebaico que crianças judias aprendem e, muitas vezes, também a última frase pronunciada. Além da sua primeira frase, “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um” [1], muitos de nós decoramos também o primeiro parágrafo em hebraico e em português: “e amará Adonai teu Deus, com todo teu coração, toda a tua alma e toda a tua força….”. Estas duas passagens vêm da Torá e faziam parte da parashá da semana passada [2]. Nem todo mundo sabe, no entanto, que os dois capítulos subsequentes estão em outras passagens da Torá. O terceiro parágrafo [3], que fala do talit e do tsitsit como instrumentos que, ao olharmos para eles, nos recordam de cumprirmos as mitsvot, está no livro de baMidbar e o segundo parágrafo, que fala de punições e recompensas para quem segue as orientações Divinas está na parashá desta semana [4].

Para quem presta atenção nas traduções destas passagens e compara o conteúdo do primeiro e do segundo parágrafos, parece haver uma certa redundância entre as aberturas dos dois textos: “Ame Adonai, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com a tua força” inicia o texto do primeiro parágrafo; “se vocês realmente escutarem os Meus mandamentos, que hoje ordeno a vocês para amarem Adonai teu Deus, e servirem a [Deus] com todo o teu coração e de toda a tua alma” é a abertura do segundo. Os comentaristas não deixaram esta semelhança entre os textos passar despercebida. Rashi nota que, enquanto o comentário do primeiro parágrafo é formulado no singular, o do segundo parágrafo é dirigido a toda a comunidade. Considerando que o foco do segundo parágrafo é a forma como Deus responde quando a humanidade escuta (ou não) Suas palavras, Ramban explica que as respostas Divinas não vêm em resposta às nossas ações individuais, mas apenas às da maioria da sociedade.

O rabino Arthur Waskow escreveu uma interpretação do segundo parágrafo do Sh’má [5], no qual ele associa nosso comportamento com relação à natureza, nos relacionamentos interpessoais e com nossa própria ambição e cobiça à forma como o planeta, a vida, Deus nos tratam. Nas suas palavras, se continuarmos “cortando o mundo em partes e escolher partes para adorar – deuses de raça ou de nação, deuses da riqueza e do poder, deuses da ganância e do vício”, então continuaremos enfrentando crise climáticas cada vez mais graves e um clima de ódio que acabará consumindo nossa existência.

Como destacou Ramban, estas consequências negativas são resultado do nosso comportamento coletivo e as soluções devem ser também entendidas de forma ampla. É certo que cada um de nós precisa cuidar da forma como se relaciona com o meio ambiente e com as outras pessoas, mas precisamos também desenvolver mecanismos sociais que garantam que estes esforços não sejam de apenas algumas pessoas bem intencionadas, mas a nossa nova forma de viver. 

Quem sabe, da próxima vez que escutarmos o Sh’má e seus três parágrafos, começamos a vislumbrar como gerar esta mudança social profunda?

Shabat Shalom!



[1] Aqui outros significados possíveis destra frase: https://youtu.be/ZUKF3Y_TdrQ

[2] Deut. 6:4-9.

[3] Num. 16:37-41.

[4] Deut. 11:13-21.

[5] https://bit.ly/3Aw6T4z



quinta-feira, 28 de julho de 2022

Moshé é de Vênus, as tribos são de Marte

Eu li uma vez um livro cuja tese central é que homens e mulheres operam de acordo com modelos mentais distintos. Em um dos primeiros exemplos do livro, a esposa pergunta se eles podem ir visitar sua família no final de semana e o marido responde que eles podem, se ela quiser. Ela se ofende, entendendo que ele está tratando a questão como uma concessão a ela e ele não consegue entender por que ela está ofendida se ele concordou com o pedido que ela havia feito. Apesar das generalizações de gênero, os exemplos dados no livro eram interessantes para entender como pessoas cheias de boas intenções e sem motivos efetivos para discórdia podem entrar em conflito simplesmente por falhas de comunicação – porque operam de acordo com modelos mentais distintos e preenchem as lacunas em branco que toda comunicação tem, baseados em seus próprios pressupostos e não nos da pessoa com quem estão conversando. 

Na parashá desta semana, temos um destes exemplos de falha de comunicação que quase termina em um grande conflito. O povo de Israel está chegando à Terra Prometida e as tribos de Reuven e Gad abordam Moshé com uma proposta: como eles tinham bastante gado e tinham percebido que a terra ao leste do rio Jordão era adequada para a criação de animais, eles pediam para receber porções de terra neste território ao invés do território a oeste do Jordão, no qual eles estavam prestes a entrar.

A resposta de Moshé foi bastante forte em rejeitar a proposta. Assumindo que o pedido vinha acompanhado da intenção de não cruzar o rio Jordão com o resto do povo e, desta forma, não fazer parte dos esforços de guerra do qual todos esperavam que eles participassem, Moshé estabeleceu um paralelo entre a conduta das duas tribos e aquela dos dez enviados para investigar a terra que voltaram falando da impossibilidade de conquistarem o território que Deus havia lhes prometido e, desta forma, tinham convencido o povo de Israel que melhor seria morrer no deserto ou voltar para o Egito.

Em sua proposta, no entanto, as tribos de Reuven e Gad não se recusavam a marchar com as demais tribos e a ajudar a conquistar a terra de Israel. Seu pedido, como esclareceram na sequência, era para que, uma vez tendo conquistada toda a terra, que eles pudessem receber os territórios a leste do rio Jordão.

Muitas vezes cometemos este mesmo erro. Assumimos, sem perguntar, as motivações de outras pessoas ou a entonação incorreta para algumas expressões. Muitas vezes, uma vírgula mudaria completamente o significado de uma frase e, sem ter percebido isso, saímos agindo, acreditando que sabemos o que ela queria dizer. Certa vez perguntei a um amigo se ele tinha conseguido fazer algo que almejava muito mas que era difícil de conseguir. “Não foi por falta de oportunidade”, ele me respondeu. Vendo minha expressão de choque, ele se corrigiu: “Não foi, ‘vírgula’, por falta de oportunidade.”

Na pressa de hoje, com conversas corridas e mensagens instantâneas sem pontuação ou entonação, estas confusões têm se tornado ainda mais frequentes. Não temos mais tempo (nem os recursos) para percebermos que a razão da confusão pode ter sido a falta de uma vírgula, uma entonação mal interpretada ou até mesmo modelos mentais distintos. 

Qual a saída, então? Uma passagem famosa de Pirkei Avot, o tratado da Mishná conhecido como Ética dos Pais, nos orienta a “julgar todas as pessoas com uma presunção favorável”. Precisamos tomar mais cuidado com nossa comunicação… Na dúvida, o melhor é esclarecer o que queremos dizer; perguntar e ter certeza de que nossa interpretação está certa. Se os membros das tribos de Reuven e Gad tivessem se expressado de forma mais cuidadosa e se Moshé tivesse perguntado mais detalhes sobre os planos deles antes de explodir em fúria, o conflito teria sido evitado.

Nesta semana começamos o mês de Av, penúltimo do calendário judaico. Em breve, estaremos comemorando Rosh haShaná e Iom Kipur e nos dando conta de todas as transgressões que cometemos através das palavras. Que neste shabat, prestemos especial atenção ao como falamos e como escutamos, buscando aumentar a compreensão e diminuir as falhas de comunicação.

Shabat Shalom!


quinta-feira, 7 de julho de 2022

Fé e razão em equilíbrio

A partir da Hascalá, o Iluminismo Judaico, no final do século XVIII, estudiosos do judaísmo, em particular no mundo judaico liberal, passaram a buscar a racionalidade nas práticas religiosas e se afastar das explicações místicas, considerando-as supersticiosas ou baseadas em crendices. Este fenômeno atingiu seu ápice na metade do século passado, quando até mesmo o estudo de fontes místicas nos seminários rabínicos liberais não era visto com bons olhos. O rabino Abraham Joshua Heschel, cujos livros continuam nos inspirando e orientando décadas depois de sua morte, era um dos que insistia em ensinar estes textos apesar da resistência e dos olhares feios. Nos anos em que ele ensinou no JTS, a escola rabínica vinculada ao movimento Conservador em Nova York, ele tinha um pequeno grupo de alunos com quem estudava os textos chassídicos, cheios de mitologias e de perspectivas sobre as dinâmicas Divinas. Antes vistos como “estranhos”, estes discípulos de Heschel acabaram se tornando os grandes teólogos da geração seguinte. O rabino Art Green, com quem eu estudei, era um destes desbravadores que ousaram desafiar a perspectiva do que era o “judaísmo apropriado.” Além de Heschel, Martin Buber (que publicou contos sobre o mundo chassídico, cheios de perspectivas místicas) e Gershom Scholem (que estudou academicamente o misticismo judaico) ajudaram a resgatar perspectivas menos racionais às práticas judaicas.

A parashá desta semana, Chucat, tem uma destas passagens que será bem difícil explicar para quem busca explicação racional para tudo que está na Torá. O texto nos diz que o contato com um cadáver torna uma pessoa ritualmente impura e que a forma de recuperar a santidade ritual é através das cinzas de uma vaca vermelha sem qualquer defeito que havia sido abatida e queimada de acordo com o processo detalhado no texto.

Muito antes da Hascalá, este ritual já atraía a curiosidade dos comentaristas. Rabi Iochanan ben Zacai, que liderava o Sanhedrin na época da destruição do Segundo Templo, disse aos seus alunos que não havia qualquer explicação racional para ele, uma explicação (ou falta dela) compartilhada por vários outros sábios do Talmud e do Midrash. De acordo com outros comentaristas, entre eles Nachmanides e Nechama Leibowitz, o ritual pode não ter explicação racional, mas sua utilidade está em deixar claro para os judeus que a proximidade com cadáveres não é bem vista, em particular tendo em vista práticas de outras religiões nas quais estes corpos são adorados.

Há momentos em que o racionalismo judaico nos serve muito bem e outros nos quais precisamos reconhecer que não temos controle sobre tudo e que alguns assuntos ficam melhor se não forem explicados completamente. Práticas relacionadas à morte, em particular, exercem um fascínio sobre nós. Mesmo pessoas que têm pouquíssima afinidade com a religião buscam práticas religiosas quando falece alguém muito próximo e têm dúvidas sobre o que acontece quando alguém morre. Quando estas perguntas são feitas a mim, costumo dizer que há inúmeras respostas judaicas diferentes sobre o que acontece depois da morte e que o que cada um de nós acredita é resultado tanto do que o judaísmo tem a ensinar quanto da fé. Não devemos ter vergonha em reconhecer que algumas crenças não tem base racional e que são fundamentadas unicamente na fé.

Que consigamos encontrar o equilíbrio e construir juntos perspectivas judaicas que permitam que mantenhamos nosso intelecto ativo quando tratamos de temas religiosos ao mesmo tempo em que deixa espaço para a fé em nossa vida interior.


Shabat Shalom!


quinta-feira, 9 de junho de 2022

Por um Judaísmo sem castas

Em uma das passagens de que eu mais gosto na Mishná, o texto diz que o primeiro ser humano foi criado sozinho para que ninguém possa chegar a outra pessoa argumentando que seus antepassados são mais nobres que os do outro [1]. Afinal de contas, se formos realmente à raiz das nossas árvores genealógicas, perceberemos que todos descendemos da mesma pessoa! Este aspecto equalizador é bastante presente na tradição judaica e resultado direto de outro princípio da criação do ser humano: a ideia de que fomos criados à imagem de Deus. De acordo com o professor Nahum Sarna, em outras culturas era comum que os reis fossem vistos como criados à imagem Divina, mas o judaísmo inovou ao democratizar este aspecto, atribuindo-o não apenas aos reis, mas a toda a humanidade [2].

Em algumas passagens da Torá, por outro lado, não apenas a humanidade, mas também o povo de Israel é enxergado através de distinções de tribo, de origem e de status. Em particular, a tribo de Levi, à qual pertenciam Moshé, Aharón e Miriám, recebe um papel importante nas funções comunitárias. Enquanto o povo em geral passou por um censo para determinar quem eram os homens aptos a servir no exército, os Levitas passaram por um censo distinto e a eles foram atribuídas funções de proteção do Mishcán, o templo móvel que acompanhou os hebreus durante os 40 anos em que vagaram pelo deserto, e outras tarefas administrativas.

Entre os levitas, os descendentes de Aharón (os Cohanim) receberam funções sacerdotais hereditárias e ficaram responsáveis pela condução das funções religiosas. A dimensão religiosa de sua conduta fez com que também na condução de suas vidas privadas, os Cohanim fossem sujeitos a regras específicas: por exemplo, não poderiam casar-se com alguém que fosse divorciado nem poderiam entrar em contato com um cadáver. Na parashá desta semana, Deus instruiu Aharón e seus filhos a respeito de uma bênção especial ao povo, que ficou conhecida como “Bircat haCoahnim”, a "bênção sacerdotal” e que apenas os Cohanim poderiam pronunciar [3]. 

Há muitos séculos, desde a destruição do Segundo Templo e o desenvolvimento do Judaísmo Rabínico, a liderança religiosa do povo judeu não é mais atribuída aos Cohanim, nem é transmitida de forma hereditária. Há quase dois mil anos, nosso povo tem sido liderado por rabinos que se destacam pela sua erudição e espiritualidade, não necessariamente pela sua linhagem. Ao mesmo tempo em que perderam sua relevância sacerdotal, no entanto, os Cohanim mantiveram algumas regras no seu tratamento que, alguns (dentre os quais eu me incluo) acreditam, devem ser revistas.

Em uma tradição judaica que acredita que todos fomos criados à imagem Divina e somos dotados da mesma dignidade intrínseca, não há mais lugar para privilégios ou restrições baseadas apenas na família em que alguém nasceu. Por que os cohanim deveriam ser chamados antes que outros grupos para a leitura da Torá? E por que não poderiam acompanhar um grande amigo no enterro de seu pai? Não faz sentido, na minha opinião, que eles tenham suas oportunidades de união matrimonial limitadas apenas porque vêm de uma família com história sacerdotal.

Apesar de não ser Cohen, não me sinto constrangido quando canto Bircat haCohanim ao final de todo Cabalat Shabat e peço a Deus que abençoe e proteja toda a nossa comunidade. Pelo contrário, me sinto honrado pela possibilidade que recebo de participar com vocês nos momentos centrais de suas vidas, dos nascimentos aos enterros e de todos os dilemas contidos entre os dois e de transmitir, em cada um destes encontros, minha paixão por um judaísmo relevante para os tempos em que vivemos e em linha com nossos valores.

Shabat Shalom


quinta-feira, 19 de maio de 2022

Transformando valores em ações

É interessante ver como, às vezes, conseguimos todos concordar com relação a alguns grandes ideais (ou algumas palavras vagas) apesar de apresentarmos profundas discordâncias com relação aos detalhes destes conceitos (ou, por outro lado, nunca termos parado para pensar que detalhes seriam estes). Há um incentivo perverso nestas situações a nos mantermos nestes lugares comuns sobre os quais concordamos e não detalharmos o que eles significam, “para não criar discórdia”

Há alguns anos, por exemplo, fui convidado a participar de um evento inter-religioso que seria centrado ao redor de três palavras: “vida”, “família” e “paz”. À primeira vista parecia uma excelente ideia, quem poderia ser contra estes três conceitos?! Quando começamos a conversar mais sobre cada um deles, no entanto, percebi que meu entendimento era diametralmente oposto àquele das pessoas que estavam me convidando. Mesmo ideias aparentemente bem definidas como vida, família e paz podem esconder interpretações subjetivas e nada consensuais. Delicadamente, declinei o convite mas nunca esqueci daquela situação.

“Vida”, “família” e “paz” são valores fundamentais da tradição judaica, quando eles têm significados específicos, não em qualquer definição possível. Da forma análoga, a questão da “Justiça” é também valor central e que, por isso, não fica restrito a afirmações genéricas do tipo “você deve buscar a mais absoluta forma de justiça” [1], mas estabelecendo abordagens concretas com relação ao estabelecimento de um sistema judicial honesto, que não favoreça nem os poderosos nem os oprimidos [2].

A discussão da responsabilidade social judaica, seja com relação ao meio-ambiente ou com outras pessoas, também pode levar a falsos consensos a menos que esteja baseada em políticas concretas. Na parashá desta semana (beHar), encontramos mecanismos concretos de tornar estas responsabilidades efetivas. A Torá não se limita a compromissos genéricos com a justiça ambiental: estabelece que a terra deve descansar completamente a cada sete anos, permitindo que se regenere antes de voltar a produzir. Da mesma forma, nossa parashá vai além do desejo de que uma sociedade justa e igualitária se estabelecesse entre os israelitas: cria a regra de que o acúmulo de terras seria cancelado a cada cinquenta anos, retornando à distribuição original, como definida quando o povo entrou na terra de Israel pela primeira vez. 

Quantos de nós podemos dizer que agimos de forma semelhante à prescrita pela Torá na passagem desta semana? Me parece que muitas vezes afirmamos nossa simpatia por conceitos abstratos exatamente porque sabemos que eles não terão qualquer impacto na vida que levamos, que não nos forçarão a mudar em nada o que já fazemos. Por exemplo, manifestamos nossa preocupação com o meio ambiente ao mesmo tempo em que não mudamos nossos hábitos de consumo; expressamos o sonho de uma sociedade menos injusta mas não nos mostramos dispostos a abrir mão dos privilégios de que desfrutamos. E, assim, em muitas outras situações nos manifestamos comprometidos com algumas causas sem fazermos qualquer esforço para avançá-las de fato.

Que a parashá desta semana nos ajude a alinhar nossas ações, nossos anseios e nossas palavras, dando concretude aos valores judaicos que dizemos defender.

Shabat Shalom, 


[1] Deut. 16:20

[2[ Por ex.:  Deut. 16:18-19; Ex. 23:1-3


quinta-feira, 10 de março de 2022

O pequeno alef e os sacrifícios a que somos chamados

“Chamou a Moshé e Adonai lhe falou da Tenda do Encontro, dizendo…”. Com este verso começa a parashá desta semana e o livro de Vaicrá, Levítico, o terceiro dos cinco livros da Torá. Quem chamou a Moshé não fica claro e tem sido o objeto de grande debate e especulação entre os comentaristas ao longo dos séculos.

Como componente adicional do mistério, a última letra da primeira palavra deste verso é um alef, que neste caso é escrito em um tamanho menor que as demais letras da página. Quem poderia ter chamado a Moshé para que Deus o instruísse nas regras dos sacrifícios, tema de grande parte deste terceiro livro?

Há comentaristas para quem o alef em tamanho pequeno é sinal de que é o “eu” (“aní”, em hebraico) de Moshé quem o chama e interpretam que cada um deve escutar a sua voz mais profunda, a sua consciência mais verdadeira, para definir quais são nossos interesses que nos levariam a um envolvimento verdadeiro e que sacrifícios estamos dispostos a fazer, de que estamos dispostos a abrir mão.

Uma outra interpretação para o pequeno alef vai na direção contrária e o associa à Shechiná, ao aspecto do Divino que está mais próximo do mundo em que vivemos e presente em todas as coisas e em todas as pessoas. Nesta leitura, escutar o chamado do pequeno alef é prestar atenção ao mundo que nos rodeia para decidir os sacrifícios que precisamos fazer. Se na primeira interpretação, perguntávamos ao nosso eu mais profundo em que deveríamos nos envolver, desta vez, paramos para escutar o que o mundo grita que suas necessidades mais prementes são. Olhamos ao redor, enxergamos o Divino na face das pessoas que nos são próximas e também nas de quem nos é mais distante. Quais são as causas e projetos cuja urgência clama pelo nosso envolvimento, mesmo que não seja o assunto que mais nos interessa?

Em qualquer destas duas abordagens, a questão do sacrifício pessoal tem valor central. Vivemos em um tempo de fartura material como, provavelmente, a humanidade jamais tenha visto. Temos, em geral, muito mais “coisas” do que conseguiríamos aproveitar nas nossas vidas, geramos uma quantidade imensa de lixo a cada dia, e, mesmo assim, temos enorme dificuldade em desapegar, em abrir mão de coisas que nos são caras. Quando fazemos uma doação, é é dinheiro que não nos faltará ou um sapato que já não usamos mais; quando damos algo nosso de presente, é, via de regra, algo do qual enjoamos. 

Várias situações anedóticas, no entanto, relatam que pessoas que têm muito menos apresentam maior propensão a dividir o pouco que têm, mesmo que depois lhes falte, mesmo que o feijão fique aguado como consequência do convidado adicional à mesa. O Livro de Vaicrá aponta para este comportamento como desejável: Deus nos instrui a abrir mão das melhores frutas, dos melhores animais, de doarmos aquilo do qual, na verdade, sentiremos falta. E, então, o pequeno alef ao final da primeira palavra do livro nos convida a perguntarmos de que nossa verdade mais íntima nos instrui a abrirmos mão? Em quais causas acreditamos mais profundamente e com a qual queremos contribuir, que realidades gostaríamos de transformar, em que projetos sentimos que precisamos estar envolvidos, mesmo que tenhamos que abrir mão de outros interesses?

Um midrash famoso fala que Avraham chegou à percepção da existência de um Deus único ao perceber que, assim como um farol não se consumia pelo fogo porque havia um faroleiro que cuidava dele, que se o mundo não era consumido pelo caos, o Divino precisava existir para garantir a continuidade do mundo. Vários teólogos dizem que vivemos em uma época de Hester Panim, na qual Deus esconde Sua face. É nossa vez de escutarmos nossa voz interna e de enxergarmos a realidade externa e de fazermos os sacrifícios que conseguirmos para garantir que o caos não engula completamente o nosso mundo. 

Qual é a causa que verdadeiramente te interessa? Qual a necessidade sobre a qual você enxerga o mundo gritando e pedindo ajuda? O que você está disposto a sacrificar para garantir que vivamos todos em uma realidade mais justa, mais equilibrada, mais inclusiva e mais acolhedora?

Shabat Shalom!


quinta-feira, 3 de março de 2022

O que vem depois da saída de Mitsrayim?

Duas conversas que eu tive esta semana apontaram em direções opostas. Em uma delas, a pessoa me disse: “o que é, é; o que não é, não é”, com uma convicção evidente de quem acredita na clara distinção entre as categorias das quais falava. Na outra conversa, a pessoa mencionou a Caixa de Schrödinger, o experimento teórico da Física Quântica na qual um gato é mantido em uma caixa de metal fechada, com um dispositivo atômico e um vidro de veneno. Passada uma hora, sem sabermos se o dispositivo atômico havia sido ativado, o experimento considera que o gato está paradoxal e simultaneamente vivo e morto. A menção a este conceito abstrato foi para exemplificar que, às vezes, as categorias se misturam e as coisas estão em várias delas ao mesmo tempo.

Fiquei pensando nisso ao ler a passagem da Torá deste shabat. Nela, alguns conceitos centrais do comprometimento judaico com a Justiça Social, que já tinham sido mencionados em outras partes da Torá, são relembrados. Um trecho se destaca: “Não haverá necessitados em teu meio – pois Adonai te abençoará na terra que Adonai, teu Deus, te dá como posse hereditária na condição de que você escute a voz de Adonai, teu Deus, mantendo e cumprindo toda esta mitsvá que Eu te ordeno hoje. (...) Se, no entanto, houver uma pessoa necessitada em teu meio, um de teus parentes em qualquer um dos teus assentamentos na terra que Adonai, teu Deus, te dá, não endureça teu coração nem feche a tua mão para o teu necessitado.” [1]

Assim, Deus deixa claro que a garantia do bem estar do povo de Israel depende de que nós mesmos sigamos os valores judaicos de ajuda ao próximo. A tradição judaica já nos dá as ferramentas para garantir uma situação de bem estar social, sem a necessidade de milagres ou de intervenção Divina direta. De alguma forma, o sistema que estabelece estes valores e regras já é a intervenção Divina. E, considerando a forma integrada como a comunidade judaica vive em muitas partes (incluindo o Brasil), nosso comprometimento não deve ser apenas com outros judeus, mas com todos aqueles com quem compartilhamos esta terra, em suas maravilhas e em seus desafios.

Mas por que esta é a passagem escolhida pela tradição para ser lida em Pessach? Haverá, certamente, quem argumente que é pela menção ao sacrifício de Pessach, à contagem do Omer e à comemoração das três Festas de Peregrinação (Pessach, Shavuot e Sucot) no final da passagem [2] e eles estão, provavelmente, certos. Eu gostaria de propor um motivo adicional para que esta seja a leitura neste momento do ano. A saída de Mistrayim e a conquista da liberdade pelos hebreus são a narrativa fundacional mais importante da tradição judaica, cara em particular aos conceitos relacionados ao nosso compromisso com a Justiça Social. Em inúmeras passagens da Torá, a proteção aos vulneráveis é explicitamente vinculada ao conceito de que “vocês foram estrangeiros na terra de Mitrayim.” No seder de Pessach revivemos a dor da opressão e a alegria da redenção – por isso, renovamos nosso compromisso com a criação de um mundo no qual possamos viver todos em liberdade e com dignidade. O texto da Torá desta semana reafirma que este compromisso não pode existir apenas de forma abstrata - ele  tem implicações concretas sobre nossa conduta, determinando ações que devemos ter e outras nas quais não podemos nos engajar.

Da mesma forma que o Shabat nos permite viver um “gostinho do mundo vindouro” e renova nosso compromisso com construir esta realidade já a partir da Havdalá, Pessach deve renovar nosso comprometimento com um mundo mais justo, onde Liberdade não seja privilégio de alguns, mas possa ser a realidade de todos. Esse é o lembrete que a leitura da Torá deste 8º dia de Pessach nos deixa.

Shabat Shalom,


[1] Deut. 15:4-5,7. 

[2] Deut. 16:1-17.

[3] Veja, por exemplo, Ex. 22:20, Lev. 19:34, Deut. 10:19.


 


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Atenção: Comunidade em Construção

Confesso que nunca gostei muito de praticar esportes, tampouco de assisti-los pela TV. Hoje em dia, quando meu filho passa horas assistindo outras pessoas jogando seus videogames favoritos, eu lhe pergunto se jogar não é mais divertido que assistir, parece que ele não entende a pergunta, como se não existisse, de fato, diferença para ele. o único período em que eu acompanhei esportes pela TV foi na década de 80, quando o Brasil tinha grandes pilotos de corrida. Naquela época, seguíamos duas competições: a Fórmula-1, que era transmitida pela Globo, e a Fórmula Indy, que passava na Bandeirantes. Esta última mesclava circuitos tradicionais, com curvas para os dois lados com circuitos ovais, em geral com curvas apenas para a esquerda, como a famosa 500 Milhas de Indianápolis. Nos dois tipos de circuito, muitas aconteciam a cada volta mas, a menos que um carro se acidentasse ou desistisse no meio, todos retornavam ao mesmo ponto e iniciavam uma nova volta.

Fiquei pensando nas repetições, volta após volta, das corridas de carro ao considerar o que temos vivido nos últimos anos com a pandemia e como a parashá desta semana tem se relacionado com os ciclos (ou as voltas) que temos vivido. Foi nesta parashá, Vaiakhel, que tivemos em 2020 o primeiro Cabalat Shabat a portas fechadas, com medo do que estava por vir. Quando lemos esta parashá em março de 2021, estávamos no começo da segunda onda, assustados (com razão) com a piora do quadro de saúde pública. Neste ano, depois de termos atravessado mais uma piora na saúde pública, estamos com a impressão de que deixamos para trás o pior da crise trazida pela variante Ômicron, começamos a nos preparar para o retorno a atividades presenciais na CIP, tanto para a equipe profissional quanto para nossa comunidade.

A palavra “Vaiakhel”, o nome da parashá, vem da mesma raíz que “kehilá”, “comunidade” ou “congregação”, e se refere ao momento em que Moshé “congrega” todo o povo para transmitir as instruções de Deus com relação à construção do Mishcán. Ao longo dos últimos dois anos, fomos desafiados a repensar o que significa estar em comunidade. Não são raras as situações em que, ao encontrar alguém pela primeira vez, me dizem “eu já te conheço, mas você ainda não sabe quem eu sou.” Frente à minha cara de espanto (pelo menos nas primeiras vezes que me disseram isso), a pessoa continua: “acompanho os serviços da CIP online, então já acostumei a rezar com você na sala da minha casa, só você que não consegue ver que estamos lá, juntos.” Quem já participou destes serviços religiosos online sabe que há uma comunidade que “se encontra” no mundo virtual, manda saudações de Shabat Shalom, reage uns aos comentários dos outros. Será que é esse o novo formato de comunidade com o qual precisamos nos acostumar, em que não nos vemos mas reconhecemos que estamos participando da mesma experiência?

Uma outra vivência online é o minián diário da CIP. Nos encontramos por Zoom, o que permite que sejamos vistos e também vejamos os participantes. Pessoas de todo o país, que antes não tinham a oportunidade de rezar juntas, passaram a se encontrar diariamente. Ao longo dos últimos dois anos, tivemos vários casos de famílias enlutadas que, graças à tecnologia, puderam congregar membros que viviam em continentes distintos. Antes do serviço e ao seu final, conversam um pouco, conhecem mais da vida de cada um. Será esta a nova forma de interatividade das nossas comunidades, em que nos reunimos virtualmente para um propósito, cada no seu canto?

Nossas aulas passaram a ser online também. Aos alunos de São Paulo, passamos a reunir alunos de Brasília, de Manaus, de Recife, até de Portugal. Em pequenas salas virtuais, estes alunos discutiram textos judaicos antigos e o usaram de ponto de partida para falar de suas vidas. Se conheceram e se estabeleceram como grupo (contando também, é claro com o apoio de um grupo de whatsapp) e passaram a se encontrar também fora das telas (quem está na mesma cidade…). Será que na nossa nova comunidade a tecnologia servirá de catalisador para encontros presenciais?

O sentido, o formato, o significado das nossas comunidades nunca foi tão fluido. Ao planejarmos a volta ao mundo presencial, consideramos de que aspectos de vida comunitária sentimos falta e que gostaríamos de recuperar e o que ganhamos com a incorporação de novas estratégias de construção comunitária, que gostaríamos de manter. Na elaboração destes planos, a pergunta básica que fica é qual será a cara da comunidade no século XXI pós-Covid. Há quem fale em metaversos e outras modalidades de interação virtual para argumentar que precisamos nos acostumar a relacionamentos que se estabelecem principalmente através das telas, sem a necessidade de estarmos todos no mesmo espaço. Particularmente, apesar de reconhecer que a tecnologia veio para ficar e não faz sentido pensar em descartá-la, sinto falta do contato interpessoal, da conversa ao redor da mesa de kidush ou do cafezinho, do abraço e do aperto de mão na chegada e na despedida.

Nesta parashá, Moshé transmite ao povo de Israel, reunido em comunidade, o pedido de doações para a construção do Mishcán, o projeto comunitário da época. A resposta de todo o povo é tão intensa que os artesãos lhe pedem para orientar o povo a parar de trazer novos donativos. Qualquer que seja o formato da nova comunidade que estamos construindo, que possamos sempre estar dispostos a entregar um pouco de nós mesmos para este projeto coletivo e que a CIP continue sendo um ponto de encontro de pessoas, de ideias e de valores que mantém o judaísmo relevante para muito mais voltas no circuito da vida.

Shabat Shalom.


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Inovação e Tradição também nos nossos Símbolos

Imagine que alguém te lance um desafio: você precisa desenhar o logo para uma nova iniciativa, um projeto inovador e enraizado na tradição judaica. Pare alguns minutos para pensar quais seriam os elementos básicos que você usaria para desenhar esta marca.

Sem ver o que você preparou, as chances são grandes que tenha ido por um de dois caminhos: algo baseado em uma estrela de David ou em uma menorá. Se olharmos para as grandes entidades judaicas, estes sãos os caminhos que a maioria delas trilha: só para identificar algumas, a CIP, a Bnai Brith, a Hebraica e as três grandes escolas judaicas da minha adolescência (Peretz, Renascença e Bialik) foram pelo caminho da menorá; já a Fisesp, a Conib, o Hospital Albert Einstein e o Macabi buscaram releituras da estrela de David.

De onde vieram estes dois ícones tão associados à comunidade judaica contemporânea. As primeiras estrelas de David que encontramos associadas ao mundo judaico datam do séc. IV EC, em decorações de sinagogas na região da Galileia, em Israel. Na mesma época, no entanto, o símbolo também aparecia em igrejas cristãs naquela região. Na idade média, tanto místicos judeus quanto muçulmanos adotavam a estrela de seis pontas (que chamavam de “Selo de Salomão”) como talismã em suas práticas. Foi apenas nos últimos séculos que o símbolo, já com o nome de estrela de David, se estabeleceu como referência exclusivamente judaica, tendência que ganhou força quando foi escolhida como símbolo pelo movimento sionista no século XIX.

A menorá, por outro lado, tem origem muito mais antiga: vem da Torá e aparece no texto da parashá desta semana [1]. A instrução bíblica para sua construção remete a diversas referências botânicas: copos em formas de flor de amendoeira, cálices, pétalas e hastes que saem de um tronco central. Ao ler o texto, se não identificarmos imediatamente que o texto está falando de uma menorá, poderíamos imaginar que trata-se da descrição de uma árvore. De fato, vários estudiosos apontam que o desenho da menorá, com suas hastes saindo de um eixo central e com bulbos sob cada cada haste, é, de fato, baseado em um arbusto presente no Oriente Médio [2], um tipo de sálvia silvestre.

Há quem veja a origem para a menorá em árvores presentes na mitologia judaica (como a árvore do conhecimento do bem e do mal, na história do Jardim do Eden). No total, há 535 referências a árvores ou a madeira no Tanach, um montante que excede qualquer outro ser vivo, exceto pelos seres humanos. 

Outros acadêmicos apontam para o fato de que a cultura e religião israelitas substituíram práticas religiosas canaanitas, nas quais árvores eram, muitas vezes, objeto de adoração. Uma dessas árvores em particular, a Asherá, era considerada a mãe de todas as outras divindades e encontramos na Torá e na literatura rabínica forte polêmicas com relação a ela [4]. Para quem aponta na Asherá (ou em outras árvores que serviam de objeto de adoração pagã) a origem da Menorá, a Torá teria feito o que a tradição judaica fez tantas vezes: incorporou elementos de outras culturas, judaizando-as, ou seja: mantendo alguns elementos, mas removendo os aspectos que estavam em contradição com os valores judaicos. Da mesma forma. a estrela de David não nasceu necessariamente judaica mas se tornou um símbolo “nosso” pelos usos que lhe atribuímos. Quem imagina que as comunidades judaicas ao longo da história viveram isoladas das sociedades mais amplas, sem contato com suas culturas, pode ficar chocado com este tipo de argumentação, mas ele aponta para o caminho que, também olhando para o futuro, possibilita a contínua criatividade judaica em diálogo com outros segmentos sociais e culturais.

A verdade é que minha pesquisa de logos judaicos mais recentes revelou novas tendências que, nem sempre, se baseiam só na Menorá ou na Estrela de David. Entidades judaicas mais recentes têm se permitido maior criatividade em sua linguagem visual (veja, por exemplo, os logos da Moishe House, dos Jovens Sem Fronteiras, do Cursinho Romã ou da Academia Judaica) – um sinal de seu desejo de poder definir em seus próprios termos quais aspectos de identidade judaica desejam incorporar em sua atuação. Mais seguros em nossas identidades e integração social, temos nos permitido também maior arrojo gráfico e visual.

Que neste Shabat possamos encontrar novas formas de sermos inovadores e de termos a tradição presentes em nossas vidas,

Shabat Shalom!


[1] Ex. 25:31-40

[2] https://bit.ly/3rnwZSM

[3] https://bit.ly/3rqyeR2 

[4] Veja, por exemplo, Deut. 16:21 e Talmud Bavli Avodá Zará 48a



quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Muitas formas de santificar o Shabat

Foi Ahad haAm, o intelectual e fundador do Sionismo Cultural, quem famosamente formulou o conceito de que “mais do que o povo judeu guardou o Shabat, foi o Shabat que guardou o povo judeu.” De fato, as práticas de shabat têm, além de suas dimensões haláchicas (relacionadas à lei judaica), imensa importância simbólica.

É na parashá desta semana, Itró, na qual lemos pela primeira vez sobre o encontro com o Divino no qual recebemos o Decálogo, as Dez Afirmações. A quarta delas diz respeito ao Shabat [1], relacionando-o com o descanso Divino após a criação do universo em 6 dias. Na segunda instância na qual o Decálogo é formulado na Torá [2], a observância do shabat está relacionada à redenção e à libertação da escravidão em que os hebreus viveram em Mitsrayim. Em comum, as duas formulações nos instruem a santificar este dia e proíbem que nele seja desenvolvido qualquer trabalho.

Muitas vezes, quando falamos sobre práticas de shabat, focamos nas proibições específicas, tenham elas origem bíblica ou rabínica: as pessoas discutem se podem dirigir, escrever, carregar objetos na rua no Shabat. De forma mais ampla, no entanto, como podemos entender a ideia de santificar um dia?

Geralmente, a ideia de santificação está associada a tornar algo distinto, especial. Se é assim, como podemos tornar o Shabat especial? Que práticas podemos desenvolver para que este dia tenha realmente sabores, odores, prazeres que são só dele? 

Há pessoas para quem o cheiro de chalá saindo do forno nas sextas-feiras à tarde já começa a estimular os sentidos para um dia diferenciado. Tem gente para quem a presença na sinagoga para o Cabalat Shabat se tornou um ritual importante para marcar a mudança na qualidade do tempo; há outros para quem o serviço religioso do sábado de manhã ajuda a estabelecer um tempo mais calmo, sem compromissos de hora marcada. O café da manhã de sábado tem importância central para algumas famílias; os jogos de tabuleiro depois do almoço ou a prática de sair caminhando pelo bairro, visitando amigos para um cafezinho sem compromisso ajudam a determinar um ritmo diferenciado.

Qualquer que seja ele, vale a pena buscar o TEU caminho para fazer do shabat um dia com textura diferente do resto da semana, um dia que celebre a dignidade infinita de todo ser-humano, merecedor da liberdade e criado à imagem do Divino que formou o mundo e, em seguida, descansou. 

Que este seja um shabat de paz, de encontros e de novas descobertas!

Shabat Shalom! 


[1] Gen. 20:8-11

[2] Deut. 5:12-15



quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Escravos de ontem e escravos de hoje

Se você buscar na internet pela pessoa que primeiro formulou o conceito de que “um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la”, descobrirá mais de uma versão sobre sua autoria: há quem diga quem tenha sido Sir Edmund Burke (1727-1797)  e quem afirme que a frase é muito mais recente e atribua sua autoria a George Santayana (1863-1952). Quem quer que tenha sido o seu autor, existe alguma tensão entre a frase e a percepção judaica da história.

Dizem que não há ninguém tão obcecado com a sua própria história quanto o povo judeu. Nos definimos através de nossos antepassados, recontamos com freqüência nossas experiências históricas com uma devoção religosa. Até mesmo quando Deus se apresenta ao povo no alto do Monte Sinai, o faz apresentando suas credenciais históricas: “Eu sou Adonai, teu Deus, que te tirou da terra de Mitsrayim, da Casa da Escravidão.” [1] 

No entanto, mesmo com a ênfase no conhecimento da nossa história, a tradição judaica busca, não apenas lembrar, mas reviver seus episódios centrais. Nas festividades judaicas, por exemplo, tentamos, ao máximo possível, reviver eventos históricos: tanto situações alegres como a Saída de Mistrayim, que revivemos no Seder de Pessach e o Recebimento da Torá, que revivemos como Ticún de Shavuot e na leitura das Dez Afirmações na manhã seguinte, quanto episódios que gostaríamos de esquecer, como as tragédias associadas a Tishá b’Av, pela qual observamos práticas de luto mesmo milênios depois dos eventos terem acontecido. Na liturgia diária, recitamos o Mi Chamôcha e nos transplantamos para a vivência e os sentimentos da geração que cruzou o Mar dos Juncos em direção à liberdade.

Em algumas situações, no entanto, parece quase uma maldição que grupos e povos não consigam escapar de situações de opressão e continuem, não por escolha própria, revivendo seus momentos mais trágicos. De alguma forma, a data de Tishá b’Av, à qual fiz referência acima, é um exemplo judaico deste fenômeno, um ponto focal de tragédias históricas que foram sendo acumuladas ao longo dos séculos, incluindo o atentado à AMIA em Buenos Aires, ocorrido em 18 de julho de 1994 (10 de Av de 5754); episódios de antissemitismo do qual gostaríamos de escapar, esforço no qual ainda não tivemos sucesso.

Outros povos vivem situações semelhantes. Olhe, por exemplo, para a comunidade afro-descendente no Brasil. Sequestrados de seus lares em outro continente, foram trazidos para cá à força, escravizados, brutalizados, desumanizados. Após mais de três séculos de regime escravocrata, puseram fim à escravidão legal sem criar as condições para a integração social das pessoas que tinham sido escravizadas. Como afirmou a filósofa Djamila Ribeiro: “a gente tem mais tempo no Brasil de escravidão do que sem escravidão, e isso impacta na construção das desigualdades no país, impacta na população negra e indígena, sobretudo. Não tem como a gente esquecer, mais de 300 anos de opressão num país que tem pouco mais de 500, como que isso, tanto no período da escravidão, mas depois no pós-abolição, que não foram deixadas políticas de reparação para incluir a população negra.” [2]

Na parashá desta semana, temos duas vezes o relato de como Deus orientou Moshé a instruir o povo a pedir aos egípcios objetos de prata e de ouro e predispôs os egípcios a atender o pedido dos israelitas, lhes dando tudo o que eles queriam [3]. A saída dos hebreus carregando objetos valiosos recebidos dos egípcios, que já tinha sido anunciada em outras passagens da Torá [4], tem atraído a atenção de muitos comentaristas. O verbo usado na Torá para “pedir” ao descrever a ação dos hebreus (lish’ol) pode ser entendido também como “tomar emprestado” e não foram raros os comentaristas que indicaram uma ação pouco ética dos hebreus (e de Deus, que os instruiu!), ao pedirem emprestado objetos valiosos sem a intenção de devolvê-los. Philo, um filósofo judeu que viveu em Alexandria, no séc. I E.C., por outro lado, considerava que as riquezas recebidas pelos hebreus tinham sido indenizações pelos anos de trabalho escravo; na mesma linha de raciocínio, Nachmanides (1194-1270) acreditava que os presentes oferecidos pelos egípcios eram um reconhecimento de sua culpa e um pagamento de reparação pelos danos causados aos hebreus. Ainda que a violência contra os hebreus tenha sido engendrada pelo Faraó e que nem todos os egípcios tenham tomado parte nela, Deus permitiu que todos percebessem sua responsabilidade e que ajudassem para a sua resolução.

É difícil não estabelecer paralelos entre a situação da saída dos hebreus de Mitsrayim e aquela na qual se encontraram as pessoas libertadas de sua condição de escravidão no Brasil, sem que a sociedade que as havia oprimido reconhecesse sua culpa ou providenciasse reparações. Quase um século e meio depois, seus descendentes continuam vivendo permanentemente — não por escolha própria — as consequências da violência que sofreram por mais de três séculos, um ciclo de opressão que se renova e retro-alimenta. 

Que assim como fez com os egípcios, que a fagulha Divina que reside em cada um de nós nos predisponha a encararmos a situação de nossos semelhantes com humildade, empatia e reconhecendo os privilégios que herdamos em uma sociedade profundamente injusta e desigual e para que ajamos na direção de diminuir estas injustiças e desigualdades.

Shabat Shalom!


[1] Ex. 20:2

[2] bit.ly/3yQoB05

[3] Ex. 11:2-3, 12:35-36.

[4] Gen. 15:13-14, Ex. 3:21-22.



quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Que nossos filhos sejam bençãos!

A primeira vez que a palavra brachá, bênção, aparece na Torá é quando Deus abençoa Avraham na passagem que conhecemos como Lech Lechá: “Eu te abençoarei e engrandecerei o teu nome e você será uma bênção.” [1] Antes disso, o conceito já tinha aparecido como verbo “abençoar”  na criação da humanidade, do shabat e ao final do episódio do Dilúvio. Nesta mesma história, temos a primeira instância em que uma pessoa abençoa o Divino, quando Noach estava no processo de abençoar alguns filhos e amaldiçoar outros [2]. A prática de os pais usarem de sinceridade absoluta quando abençoavam seus filhos, indicando suas falhas junto com as suas qualidades, parece ter sido a norma em tempos bíblicos, ainda que soe um pouco cruel hoje em dia.

Na parashá desta semana, Vaiechi, esta prática ganha tons ainda mais fortes. Iaacov, pressentindo que sua morte se aproximava, convoca seus filhos para abençoá-los seguindo a prática da sinceridade absoluta. Alguns deles recebem bênçãos doces e carinhosas, como Iehudá, a quem Iaacov estabelece como líder entre seus filhos. A outros, como Shimón e Levi, que tinham sido responsáveis pelo massacre em Shchem, Iaacov reserva reflexões duras, que melhor seriam chamadas de maldições do que de bênçãos.

Os comentaristas bíblicos têm debatido a abordagem de Iaacóv por muitos séculos. Abarbanel, um comentarista português do século XV, entendia que a preocupação do patriarca era com a identificação, entre todos os seus filhos, daqueles que tinham maior poder de liderança. Pinchas Peli, um rabino israelense que faleceu em 1989, por outro lado, acredita que o objetivo de Iaacov era ajudar seus filhos a identificarem suas próprias qualidades e defeitos e, desta forma, encontrar seu caminho dali pra frente.

Além de seus doze filhos homens, Iaacov também abençoou os dois filhos de Iossêf, Efraim e Menashé. Ao final da sua bênção aos netos, Iaacov indica que esta deve ser a prática daquele momento em diante: “através de você, Israel abençoará, dizendo ‘que Deus te faça como Efraim e como Menashé.’” [3] Esta tem sido a frase dita por muitos pais judeus a seus filhos homens ao abençoá-los. As filhas mulheres, que não foram mencionadas na bênção que Iaacov deu aos filhos, receberam uma outra formulação: “que Deus te coloque como Sará, Rivcá, Rachel e Leá.”

Há muitas interpretações sobre porque abençoar os filhos pedindo que eles sejam como Efraim e Menashé. Há quem opine que isso se deve ao fato de eles serem os primeiros irmãos na Torá que não têm conflitos entre si; outros acham que a honra se deve ao fato de eles terem nascido na Diáspora e, apesar de terem vivido sempre no Egito, terem sido capazes de manter sua identidade judaica. 

Qualquer que seja o motivo, a formulação da bênção como instituída por Iaacóv sempre me incomodou e eu não a uso para abençoar meus filhos. Por mais inspiradores que algumas figuras bíblicas sejam (e não coloco Efraim e Menashé na lista das que mais me inspiram), espero que meus filhos possam crescer e se tornar eles mesmos, não cópias de outra figura, seja ela bíblica ou histórica. Uma história chassídica famosa conta que, ao chegarmos aos céus, não seremos comparados a outras figuras, mas à melhor versão de nós mesmos e é isso que eu desejo aos meus filhos.

A poetisa litúrgica norte-americana Marcia Falk escreveu a respeito da bênção proposta por Iaacov: “por que desejaríamos que uma criança fosse outra coisa senão o que ela tem de melhor? Não viver a própria vida - não ser fiel à configuração única de dons e potenciais que nutrem o eu por dentro - é uma tragédia. No entanto, deixar a criança ser ela mesma, abrir mão de expectativas que não emergem da realidade de quem a criança é, é uma das lições mais difíceis que os pais têm de aprender.” [4] Desde que meus filhos nasceram, eu uso a alternativa escrita por Falk: “Seja quem você é e seja abençoado/abençoada em tudo que você é.” Assim, busco seguir o exemplo Divino ao abençoar Avraham, desejando que meus filhos possam se tornar, eles mesmos, bênçãos.

Que neste shabat abençoado, possamos todos encontrar paz, bençãos e muita luz.

Shabat Shalom!


[1] Gen. 12:2

[2] Gen. 9:24-27

[3] Gen. 48:20

[4] Marcia Falk, “The Book of Blessings”, p. 450.



quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Conta-me com quem casas?!?!

Daniel Boyarin, professor de Cultura Tamúdica na Universidade de Berkeley, fala bastante da intertextualidade dentro do Tanach, termo através do qual aponta para três características do texto bíblico: (1) há citações frequentes, explícitas ou não, de passagens escritas em períodos anteriores, (2) existe a possibilidade de enxergarmos o texto em si como uma situação em que acontece o diálogo entre passagens distintas, e (3) códigos culturais (conscientes ou não) podem encorajar ou reprimir a produção de novos textos. [1]

Em palavras mais simples, passagens do Tanach podem ser vistas em diálogo com outras passagens e devemos ter isso em consideração quando as consideramos. Nas parashiot das últimas semanas, vimos uma ênfase na rejeição de casamentos entre homens hebreus e mulheres canaanitas. Foi assim que Avraham pediu a seu servo que fosse buscar uma esposa para Itschác na terra de seus antepassados e que Rivcá e Itschác pediram a Iaacóv que fosse à casa de seu tio buscar uma esposa. 

Na parashá desta semana, por outro lado, temos o primeiro caso de um hebreu se casando com uma mulher de família local: Iehudá se casa com a filha de Shuá, sem que o nome dela seja mencionado na Torá. Por um caminho tortuoso (que vale muito a leitura, mas que não acrescentaria nada aqui), Iehudá acaba também tendo filhos gêmeos com Tamar: Peretz e Zarach. Além de ter dado nome ao povo judeu, Iehudá, através de Peretz, se tornou ancestral do Rei David, o rei paradigmático das histórias do Tanach.

Seguindo as orientações do professor Boyarin, podemos ler estas passagens em diálogo umas com as outras -- algumas argumentando fortemente que o casamento com não judeus levaria à extinção do judaísmo e outros dizendo que, pelo contrário, é até bom incorporar pessoas e ideias novas à nossa tradição. Há algumas décadas, em muitas famílias quando um filho ou uma filha tinham um relacionamento amoroso fora da comunidade judaica, era motivo de grande consternação (como foi para Rivcá a mera possibilidade de que Iaacóv se casasse com uma mulher de Cnaán [2]), com medo de que aquele ramo familiar se afastasse permanentemente da tradição e da cultura judaicas. Hoje, no entanto, a realidade é, em muitos casos, bastante diferente. Encontro muitas famílias nas quais a parte não judia é até mais interessada na educação judaica dos filhos do que os parceiros judeus; em outros casos, mesmo que o pai e a mãe sejam os dois judeus, não expressam nenhuma intenção de ir além do mero superficial na vivência judaica da família. A vitalidade da vida judaica das famílias não é necessariamente determinada pela porcentagem judaica de cada casal - mas pela relevância que cada um encontra no judaísmo que conhece.

Será que conseguiríamos conceber uma conversa imaginária entre Rivcá e seu neto, Iehudá sobre estes temas? Ela falaria de suas angústias e medos, ele falaria da necessidade de ter liberdade para encontrar quem realmente ama. Ambos teriam razão, ambos falariam das suas verdades e, quem sabe, depois de chorarem um pouco, conseguiriam vislumbrar um futuro de criatividade judaica, em diálogo com a realidade onde viviam, no qual famílias se constituem por vários motivos e escolhem rumos que não são predestinados. Esta conversa pode nos ajudar também a pensar como nos relacionamos com as sociedade primordialmente não-judaicas nas quais vivemos.

Neste domingo acenderemos a primeira vela de Chanucá, uma festa que, desde a sua narrativa de origem, está associada ao diálogo com outras culturas (ou à falta dele): que costumes incorporamos, que roupagem judaica lhes damos, que histórias contamos a seu respeito. Que na sociedade multicultural em que vivemos, consigamos encontrar caminhos para nos relacionarmos com gente de todas as culturas e construir cada vez mais pontes, ao mesmo tempo em que nos preparamos para um futuro judaico intenso, vibrante, criativo e relevante.

Shabat Shalom!


[1] https://doi.org/10.2307/1455327 

[2] Gen. 27:46



quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Percebendo as bençãos ao nosso redor

Quando eu ainda era aluno de rabinato, fiz um estágio como capelão hospitalar. O programa era bastante intensivo e passávamos os dias visitando pacientes e discutindo com nossos colegas e supervisores como cada visita tinha sido. A cada duas semanas, um de nós ficava de plantão e passava a noite no hospital, dando apoio espiritual a qualquer emergência que pudesse ocorrer. 

Em um dos meus plantões, fui acordado no meio da noite. Um sujeito esperava há algum tempo por um transplante de pulmão e, finalmente, tinham encontrado um doador! Cercado de amigos e parentes, ele me pedia uma benção antes da operação. Antes de lhe dar a benção, eu lhe pedi que reconhecesse as bençãos que literalmente flutuavam ao seu redor… ele tinha recebido uma segunda chance na vida e, cercado das pessoas que mais o amavam no mundo, se preparava para este recomeço. “Lindo, rabino”, ele me respondeu, “agora, por favor, você pode dar a minha benção?!”

Nossa relação com as bençãos varia muito — para alguns de nós, o que realmente vale é o que acontece no mundo físico, no qual as bençãos talvez não impactem muito. Para outros, no entanto, as bençãos representam pontes entre o espiritual e o material e, ainda que seus efeitos não sejam imediatos, abrem nossos olhos e corações para as bençãos reais que nos cercam.

Na parashá desta semana Iaacov e Rivcá tramam para enganar Itschác, para que ele dê a Iaacov a benção da primogenitura que planejava dar a Essáv. O rabino Gunther Plaut pergunta a respeito desta história: “mas como uma benção dada à pessoa errada pode ter qualquer efeito?” E ele adicionou à pergunta: “para começar, uma benção não é um contrato legal mas uma reza. Ainda assim, quando emitida por um pai, acredita-se que ela tenha um poder especial pois Deus está envolvido quando um pai dá sua benção a seu filho. Uma benção não é como uma mercadoria que pode ser tomada de volta quando se percebe que ela é falha. Uma vez dada, está nas mãos de Deus.” [1]

Ao final da enganação de Iaacov e Rivcá, Essáv procura seu pai, esperando receber a benção prometida, trazendo o cozido que Itschác havia pedido. Quando ele escuta que a benção já havia sido dada a Iaacóv, sua decepção é evidente. “Você não guardou uma benção para mim?!”, ele pergunta ao pai. “Abençoe-me também, pai”, ele pede aos prantos. Há momentos nos quais nos sentimos como Essáv, como se todas as bençãos tivessem sido dadas e nenhuma sobrado para nós… E ainda assim, durante toda a nossa vida, recebemos bençãos sem nos darmos conta. Infelizmente, muitas vezes prestamos mais atenção aos tropeços que damos na vida do que às coisas maravilhosas que nos acontecem diariamente. 

As bençãos da tradição judaica, assim como aquelas que formulamos em momentos especiais, se não têm a capacidade de transformar a realidade objetiva, pelo menos conseguem transformar como enxergamos a vida e perceber as maravilhas das quais desfrutamos. Ao abrirem os nossos olhos, acabam de fato impactando a realidade de forma direta.

Que este seja um shabat especialmente abençoado, cheio de paz, de encontros e de olhos abertos para as bençãos que nos rodeiam.

Shabat shalom,


[1] W. Gunther Plaut, “What did Isaac Know?”, Learn Torah With…. 5755: a Collection of the Year’s Best Torah, Alef Design Group, 1996, p. 43.


quinta-feira, 21 de outubro de 2021

A busca permanente pela santidade e por valores, até na comida!

Nos meus estudos rabínicos, tive um professor um pouco sui-generis: era o rabino Stephen M. Passamaneck z”l, que os alunos chamavam carinhosamente de “Dr. P”. Capelão da Polícia de Los Angeles, ele muitas vezes começava a aula colocando seu revólver sobre a mesa da sala, se deliciando com a expressão de choque no rosto de muitos alunos (o meu entre eles). Foi com o “Dr P” que eu aprendi o princípio segundo o qual “a Torá quer dizer o que os Rabinos disseram que a Torá quer dizer.” Do ponto de vista racional, eu sei que ele estava completamente correto e não faltam exemplos de afirmações bíblicas que o Rabinos interpretaram de forma criativa, determinando a leitura que temos delas até hoje. Um dos melhores exemplos dessas prática é com relação ao verso “olho por olho, dente por dente” [1], prática que, os rabinos perceberam, se levada à risca, causaria toda a humanidade a ficar cega e banguela. Em uma longa discussão no Talmud [2], os Rabinos concluíram que o preceito bíblico obviamente fala de uma compensação financeira a ser recebida pela vítima de uma agressão física! De forma semelhante, o preceito de que “não cozinhe o bezerro no leite de sua mãe” [3] foi interpretado pelos Rabinos como a proibição de preparar, comer ou obter benefícios de alimentos preparados com carne e leite (ou seus derivados). Hoje, é até difícil encontrar alguém que, tendo aprendido esta interpretação, consiga ler os versos bíblicos no seu sentido literal.

A parashá desta semana apresenta um desafio para esta leitura com relação à mistura de carne e leite. Três pessoas se aproximam da tenda de Avraham, que corre para pedir que eles parem e sejam recebidos pelo nosso primeiro patriarca. Os visitantes param, lavam seus pés, tomam água, comem pão e encontram uma sombra onde descansar da viagem. Avraham não ficou satisfeito e lhes trouxe um prato à base de carne, além de manteiga e leite [4]. Não seria difícil explicar a clara oposição entre as comidas que Avraham oferece aos seus visitantes e as regras alimentares da Cashrut, visto que essas instruções ainda não haviam sido formuladas. Nossos Rabinos, no entanto, se sentiram profundamente incomodados vendo o primeiro patriarca misturando carne e leite e buscaram formas de interpretar o texto que eliminassem esta possibilidade: Maimônides (1135-1204) entendeu que toda esta passagem não passou de um sonho profético de Avraham e que, portanto, não houve qualquer tipo de consumo de comidas não casher; um midrash sugere que Avraham trouxe opções de carne e de leite para que seus convidados tivessem escolha, mas que ele ficou observando para garantir que ninguém misturasse a carne e o leite; outros comentaristas afirmam que os visitantes tomaram o leite primeiro e lavaram suas bocas antes de consumir a carne, assim como prescreve a lei judaica.

Me parece que mais razoável do que estes malabarismos interpretativos, seria reconhecer que as práticas judaicas, incluindo as leis de Cashrut, são construções históricas que refletem uma busca constante e progressiva pela kedushá, a santidade com a qual procuramos encher as nossas vidas. A forma como a busca pela kedushá na alimentação se dava na época de Avraham não era a mesma da época dos profetas, muito menos no período do Segundo Templo ou nos nossos dias. 

Hoje, esta busca pela santidade é expressa em uma conduta guiada por valores, que não são necessariamente os mesmos para todas as pessoas. Para muita gente, ligar suas práticas alimentares à tradição judaica e ao que faziam seus antepassados lhes confere um profundo senso de conexão; para outras pessoas, faz mais sentido buscar práticas contemporâneas como o vegetarianismo, seguir uma dieta vegana ou consumir exclusivamente produtos orgânicos. Práticas distintas, mas todas buscando refletir valores (ou santidade!) através da alimentação. 

Que cada um da sua forma, consigamos todos encher nossas vidas de santidade, nas práticas cotidianas e na forma como escolhemos nos alimentar!


Shabat Shalom


[1] Ex. 21:24, Lev. 24:20

[2] Talmud Bavli Bava Kama 83b-84a

[3] Ex. 23:19, Ex. 34:26, Deut. 14:21

[4] Gen. 18:1-8